Esta resenha foi feita com base na edição em inglês da Vertigo. Todas as traduções, porém, correspondem à edição da Panini Books, cuja tradução é assinada por Jotapê Martins.
Fenômeno mundial de público e de crítica, Sandman consolidou o gênero de quadrinhos adultos. Em Prelúdios e noturnos, primeiro volume da série, o inglês Neil Gaiman criou um novo paradigma de HQ. Um épico original que mistura mitologia grega clássica, lendas urbanas modernas e fantasia negra, numa prosa contemporânea de primeira linha, apresentando ao público o Mestre dos Sonhos (Sandman) e sua família, os Perpétuos.
Fonte: Livraria Cultura
Nota ao Leitor:
Esta série de dez resenhas mensais será escrita na forma de um Diário de Sonhos ou, como prefiro, de um Noitário de Reminiscências. Mas neste caso, não as minhas e sim as de um autor chamado Neil Gaiman e sua coletânea onírica chamada de Sandman, baú imaginativo e fantástico disfarçado de história em quadrinhos. Como em todo texto do gênero, buscarei reflexões, interpretações ou impressões que podem não passar de deslocamentos, projeções ou sublimações da mente desperta. Todavia, como num sonho, o que vale é a jornada, não o desfecho. Apenas um lembrete, desses que podem te economizar alguns segundos de leitura que seriam melhor investidos no preparo de um café ou em servir um cálice de vinho: caso não tenhas interesse algum em resumos editoriais ou já saibas do que se trata “Sandman”, pule os “Prelúdios Referenciais” abaixo. Ah… dependendo da bebida, saberei se preferes despertar ou adormecer. Indiferente da resposta – e da bebida – a meta é visitar o Sonhar, Morfeus e a arte de Gaiman. Boa viagem!
Prelúdios Referenciais.
Nestas resenhas, optei pela divisão de Sandman em 10 volumes, que não corresponde ao original (75 edições mensais, publicadas entre 1989 e 1996) ou à edição definitiva, dividida em 4 tomos (publicada pela Panini). Apesar de utilizar a paginação destes quando referir ao texto, penso Sandman como uma saga dividida numa dezena de partes fechadas. Os leitores mais antigos reconhecerão essa divisão tanto nas edições norte-americanas como em sua primeira versão nacional, publicada pela Conrad, entre 2005 e 2008. Sobre o enredo, Sandman é sobre sete irmãos que não são humanos, alienígenas nem divinos, sendo anteriores aos deuses ou ao próprio universo. Trata-se de personificações antropomórficas que estiveram lá no início de tudo e que estarão lá quando a música estelar parar de tocar, as luzes se apagarem e o salão de festas for trancado. Seus nomes são Sonho, Morte, Desejo, Desespero, Delírio (antigo Deleite), Destruição e Destino, ou, seguindo a brincadeira dos Ds, Dream, Death, Desire, Despair, Delirium (Delight), Destruction e Destiny, respectivamente. Todavia, Sandman não trata apenas dessa antiga/moderna família disfuncional, mas em especial de homens e mulheres – e outros seres ambíguos e igualmente interessantes – que sonham, morrem, desejam, desesperam, deliram, destroem e sofrem os revezes da fortuna. Em resumo, Sandman é sobre nós. E isso basta, por enquanto.
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A divisão da série em 10 volumes. Capas de Dave McKean.
Dr. Dee: Olá, senhorita. Eu gostaria de uma xícara de café enquanto espero.
Bette Munroe: Claro, meu anjo. São cinquenta centavos. Hã… mas o que você está esperando?
Dr. Dee: Ah, você sabe… o de sempre. O fim do mundo.
Prelúdios e noturnos é sobre (re)encontrar respostas que esquecemos, pessoas que um dia amamos, determinações que perdemos, espaços mentais que nunca existiram, exceto na imaginação. Em termos de enredo, o primeiro volume de Sandman é bem linear: aprisionado por mais de setenta anos por uma ordem mística que objetiva controlar a Morte, Sonho ou Morfeus ou Sandman – ou qualquer outro nome que lhe demos ou lhe deram – liberta-se e empreende uma jornada em busca de três amuletos de poder que lhe permitirão reconstruir seu reino e recuperar sua vitalidade. Tal aprisionamento compreende o primeiro capítulo da série, a busca pelos amuletos – uma algibeira, um elmo e um rubi – é contada nos outros seis e o último capítulo relata um encontro com a irmã mais velha do sorumbático protagonista.
No final da década de 1980, o inglês Neil Gaiman tinha vinte e poucos anos e chegava ao mercado norte-americano de quadrinhos – basicamente um mercado escrito por meninos para meninos, no qual editoras como DC Comics dominavam com os gêneros “super herói” e “super herói mesclado a terror”. Alan Moore – grande referência de Gaiman no início da carreira – começava a mudar esse painel com a série Monstro do Pântano, ao mesclar horror ficcional com terrores reais, complexos personagens masculinos e heroínas femininas nem um pouco em perigo, abordando temas como morte, sexualidade e crises existenciais, além de criar um marcante elenco coadjuvante que incluía John Constantine, anti-herói ocultista que protagonizou o início da linha Vertigo e o seu título mais longevo, Hellblazer.
Partindo desse panorama, não surpreende que os primeiros números de Sandman sofram pelas limitações de um gênero que lutava contra o próprio desgaste, lembrando que a principal meta do autor era justamente transcendê-lo. Como Shakespeare batalhando com Marlowe em Titus Andronicus*, em sua série Gaiman confronta a influência direta de Moore e de seu American Gothic (memorável saga de Monstro do Pântano) principalmente na terceira edição de Sandman (“Sonhe um breve sonho comigo”), protagonizada por Constantine, e na sexta (“24 horas”). Em vista do desafio de inserir-se nesse gênero e de confrontar o maior roteirista daqueles anos, os primeiros capítulos de Sandman podem parecer, aos leitores desavisados, apenas histórias de horror moderno e/ou fantástico. Todavia, submerso nessa aparente superfície convencional estava um autor formando as bases da maior série da década.
A obrigação do autor inglês para com a continuidade da DC Comics também o força, neste primeiro volume, a se referir a personagens como o Sandman da Era de Prata, o vigilante noturno Wesley Dodds, a Liga da Justiça composta por Senhor Milagre e Ajax o Marciano, além do grande “vilão” deste arco – Doutor Destino, psicopata que tem a posse do Rubi dos Sonhos, sendo o responsável por um hediondo massacre na supracitada “24 Horas”. Todavia, ao lado desse elenco super-heroico e da remissão ao gênero horror, Gaiman logo evidencia que seu interesse estaria menos em personagens fantásticos e mais em pessoas comuns, cujos dramas se fariam presentes desde as primeiras páginas.

Capas de Sandman 1-4. Arte de Dave McKean.
Exemplificam isso os coadjuvantes aprisionados pela Doença do Sono na primeira edição e os responsáveis pela prisão de Morfeus. Além de Rodrerick e Alex Burgess, pai e filho responsáveis pela Ordem dos Antigos Mistérios, há John Hathaway, que deseja ressuscitar o próprio filho; Ellie Masrten, que delira com as histórias de Lewis Carroll e sua Alice; Daniel Bustamonte, que sonha com um “castelo do ar”; Stefan Wasserman, que se desespera com a destruição humana em meio à Primeira Guerra Mundial e Unity Kinkaid, vítima de um Sonho perpétuo e de um perpétuo Desejo, ambos responsáveis pela concepção e nascimento de sua filha – personagem que voltará a aparecer no volume seguinte.
O foco nos protagonistas humanos retorna em “24 Horas”, uma das histórias mais assustadoras deste volume, senão de toda a série. Além de Bette Munroe, que concebe dramas romanescos enquanto serve café e torradas, temos Judy, namorada de Donna (que voltará a aparecer no volume Um jogo de você), o casal Fletcher, “feitos um para o outro” e Marsh, viúvo que tem um caso com Bette. Todos serão massacrados por John Dee, psicótico que utiliza o Rubi Onírico para alterar a realidade. Com sutil elegância, é Gaiman dispondo em seu palco narrativo/gráfico – abaixo do verniz da história de horror – seres humanos comuns e sua incapacidade de sonhar/criar/fantasiar soluções aos seus desesperos, às feridas que carregam pela vida ou ao inferno do convívio com o outro. Trata-se de um sonho sobre sonhadores, de uma narração sobre as pequenas e infindas histórias que criamos dentro de nossas cabeças a cada dia.
Tal exercício metaficcional, uma constante na série, é enriquecido por outras aparições por si só fascinantes. Destaco a paisagem do Sonhar, recortada dos quadrinhos de horror da década de 1970, na qual vivem vivem as três bruxas que são uma só, além de Caim e Abel (os irmãos guardiões das Mansões dos Segredos e da Casa dos Mistérios), o bibliotecário Lucien, e Eva, a primeira mulher, que vive na companhia de um corvo falante. Todos retornarão em sagas futuras, além do ilustre protagonista do quarto capítulo (“Uma esperança no inferno”): ninguém menos que Lúcifer Estrela da Manhã, personagem que não apenas roubaria a cena como ganharia uma série própria, escrita por Mike Carey entre 2000 e 2006.

Páginas de Sandman 1 e 8. Arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.
Sobre o título deste primeiro volume, a palavra “noturnos” remete aos vários gêneros de horror utilizados pelo autor, ao passo que os “prelúdios” se referem, nas palavras de Gaiman, ao “processo de descobrir qual seria minha abordagem para a série” (The Sandman Companion). A descoberta desta voz ou do tom estilístico ocorreria em “O som de suas asas”, em que estreia a irmã mais velha de Sonho. Nela, o que iniciara como um conto de terror sobre satãnistas ingleses, vilões insanos e demônios ladrões conclui como um tocante encontro entre dois irmãos que não se viam há décadas.
De um lado, um cabisbaixo Sonho dá farelos de pão a pombos. Do outro, uma charmosa e vivaz Morte o aconselha a crescer. Depois de recuperar seus amuletos, Morfeus renasce num mundo que demora a compreender. Fisicamente livre, está ainda preso ao Romantismo que marcava o século XIX, época em que foi aprisionado. É um Byron citadino chorando seu drama numa praça em meio ao mundo caótico e barulhento do final dos anos oitenta. O conselho da Morte é no mínimo irônico: “Viva e assuma suas responsabilidades!” Só então encontramos um Sandman ciente de que os tempos, assim como os sonhos, mudam e de que é preciso confiar menos nos amuletos e mais nas resoluções internas.
Como um rebento milenar que renasce depois de décadas, sua primeira busca é por velhas paisagens, antigos amuletos e primitivos hábitos de pensamento, entre eles a vingança. Quando Morfeus visita um inferno dantesco para recuperar seu elmo perdido, uma batalha retórica é travada diante de um desgostoso Lúcifer com rosto e voz de David Bowie. Num tecnológico mundo repleto de ruído e carente de sentido, Sandman dança por ondas de rádio oníricas em busca de um passado moribundo. O Sandman que ressurge, já perto do fim do primeiro volume, é um deus recuperado em armas, porém ferido em espírito. Um deus que percebe que não fez tanta falta quanto gostaria. É necessário justamente o encontro com sua irmã para lembrar-lhe de que, para além das decepções egocêntricas, há deveres que precisam ser realizados, sonhos a ser criados, pesadelos a ser silenciados – ou fomentados.
Ainda no final do primeiro capítulo, Gaiman faz Morfeus ecoar Puck, que por sua vez ecoa o criador de Sonho de uma noite de verão: “Ah, Senhor, como são tolos esses mortais”. Mas diferente da comédia elisabetana, Sandman não é sobre casais apaixonados, deuses enfadados ou tolos endiabrados, e sim sobre os pensamentos aterradores que vêm à tona na superfície delicada dos nossos cenários oníricos. Ler Sandman buscando a menção de todas as referências ou esperando uma perdida sabedoria, seja ela literária ou espiritual, é tarefa grandiosa demais para qualquer “tolo mortal” – e vários são os sites e os compêndios impressos que se dedicam a tal tarefa. Diferentemente, a leitura que proponho de Prelúdios e noturnos seria uma leitura de noites tranquilas e invernais, naquelas horas lentas nas quais desejamos que o tempo não seja destruído pelo desespero das horas. Em que aguardamos apenas por sonhos de deleite e delírio. Infelizmente, as noites findam, e o destino está fadado a lhes dar um fim. Quando essa hora chega e o despertador bate, às vezes, um sonho bom definha e morre.
Mas no caso deste volume de Sandman, o sonho está apenas começando.
Enéias Tavares
Santa Maria dos Ventos Tempestuosos, 22 de setembro de 2014.

Capas de Sandman 5-8. Arte de Dave McKean.
*A remissão a Shakespeare não é gratuita, uma vez que Gaiman o alocará como personagem de Sandman no próximo volume e como protagonista de duas outras edições, entre elas, a que encerrará a série.
P.S. : Aos leitores da Edição Definitiva, indico o projeto (p. 548-557) de Gaiman para a série, um assombro de diversão e planejamento criativo. Neste caso, um escritor abrindo sua gaveta e nos dizendo como chegou à sua criação, quais foram os primeiros passos, os desvios, as homenagens falsas e verdadeiras, os equívocos e os acertos.
P.S. 2: Ilustram esta resenha as artes de Dave Mckean para as primeiras oito capas “Sandman”. Elas são retratos dos personagens que aparecem até aqui: respectivamente Sonho, Hécate, Constantine, Lúcifer, Senhor Milagre, uma vítima anônima, Doutor Destino e Morte. Quanto às criações delas, indico o volume “Dust Covers”, que traz a reprodução das 75 telas pintadas/construídas/fotografadas por Mckean, além de comentários deste e de Gaiman. Isso numa época em que ambos precisaram “convencer” a DC de que nem todas as capas deveriam ter o protagonista da série. Mais uma das metas de Gaiman em “tentar alterar positivamente a cara dos quadrinhos” (The Sandman Companion, p. 32).
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Prelúdios e noturnos
Sandman, volume 1
Tradutora: Ana Ban
Editora: Panini
Ano de publicação: 2010
614 páginas
Citações favoritas:
(A primeira é um diálogo no qual Sonho batalha retoricamente com um Demônio e vemos por que o Lorde Moldador é “o melhor naquilo que faz”. Nossos sonhos e pesadelos que o digam. A segunda é sobre a arte de contar histórias, num dos diversos momentos metaficcionais da série, sendo que a última frase sumariza toda ela. Por fim, um poema egípcio milenar e anônimo – reescrito em 1988 por Neil Gaiman – sobre a Morte vista da perspectiva do Sonho.)
Chorozon: Muito bem. O primeiro lance é meu. Sou um lobo medonho espreitando sua presa, sou um carnívoro implacável.
Sandman: Minha vez. Sou um caçador montado a cavalo, lanceador de lobos.
Chorozon: Eu sou uma mutuca picando o cavalo e derrubando o caçador.
Sandman: Eu sou uma aranha e, com minhas oito pernas, devoro moscas.
Chorozon: Eu sou uma cobra devoradora de aranhas e peçonhenta.
Sandman: Eu sou um touro esmagador de cobras e com patas pesadas.
Chorozon: Eu sou o bacilo do antraz, a bactéria assassina e destruidora de vida.
Sandman: Eu sou um mundo flutuando no espaço e gerando vida.
Chorozon: Eu sou uma Nova que explode… cremando planetas.
Sandman: Eu sou o universo… englobando todas as coisas, acalentando a vida.
Chorozon: Eu sou a antivida, a besta-fera do Juízo Final. Eu sou as trevas no fim da existência. O fim dos universos, deuses e mundo… de tudo. E o que você será, então, Senhor dos Sonhos?
Sandman: Eu sou a esperança.*
Em seus dias de folga, depois que arruma a casa, Bette Munroe escreve contos. Escreve à mão em blocos de papel ofício amarelo. Às vezes ela escreve sobre seu ex-marido, Bernard, e sobre seu filho, Bernard Jr., que foi estudar fora e nunca mais voltou. Ela faz as história terem finais felizes. No entanto, a maioria dos seus contos é sobre seus fregueses. Eles olham pra ela e veem apenas uma garçonete. Não sabem que ela guarda um segredo. Um segredo que impede que suas panturrilhas doloridas, seus dedos escaldados de café e seu cansaço a deixem ainda pior… é o seu segredo. Ela jamais contou ou mostrou esses contos a alguém. Um dia desses, ela sabe que vai embrulhar os blocos de papel ofício em papel pardo, enviá-los para Dear Abby, Earl Wilson ou Jackie Collins. Eles vão ler seus contos, vão publicá-los e todo mundo vai se maravilhar com sua descrição da vida feliz numa cidade pequena. “Mas você é uma escritora”, Johnny Carson lhe dirá. “Como sabe de que jeito é a vida de uma garçonete?” Ela sorrirá. Não lhe dirá nada. Será seu segredo. As pessoas acham que Bette conversa com elas tão naturalmente apenas porque ela é uma garçonete. Não percebem que é uma escritora recolhendo material. É só dizer pra essa gente que você é uma escritora que todo mundo se fecha feito ostra. Todas as histórias de Bette têm final feliz. É que ela sabe onde parar. Ela percebeu o grande problema das histórias. Se forem longas demais, sempre acabam em morte.
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Eu me indago a respeito da humanidade. A atitude das pessoas para com a dádiva de minha irmã é tão estranha. Por que elas temem as Terras sem Sol? É tão natural morrer quanto nascer. Mas todos têm medo dela. Angustiam-se. Inutilmente, tentam aplacá-la. Eles não a amam. Muitos milhares de anos atrás, ouvi uma canção num sonho, uma música mortal que celebrava sua dádiva. Eu ainda me lembro. “Hoje a morte está diante de mim: Como a recuperação de um doente. Como adentrar um jardim após a morte. Hoje a morte está diante de mim: como o aroma da mirra. Como velejar num dia de brisa agradável! Hoje a morte está diante de mim: Como o lar que um homem anseia rever, depois de muitos anos no cativeiro.” Esse poeta esquecido entendia suas dádivas. Minha irmã tem uma função a cumprir, assim como eu. Os Perpétuos têm suas responsabilidades. Eu tenho responsabilidades. Caminho ao lado dela, e as trevas erguem-se de minha alma. Perambulo com ela, e ouço o delicado bater de asas poderosas…