[Resenha] Conversas sobre Jane Austen em Bagdá

austeninbaghdadEsta resenha foi feita com base na edição da Penguin. Todas as traduções de trechos foram feitas por mim.

Sinopse: May é uma professora de literatura inglesa, iraquiana residente em Bagdá. Bee é uma londrina, mãe de três meninas. Elas não deveriam ter nada em comum. Mas, quando um simples email as põe em contato, elas descobrem uma amizade que ultrapassa as diferenças de cultura, religião e idade. E, entre granadas, conversas, brincadeiras e segredos, elas traçam um plano para ajudar May a fugir de Bagdá.

Fonte: Livraria Cultura

Achei esse livro por acaso numa livraria e comecei a folheá-lo enquanto tomava um cafezinho, o que é algo que nunca se deve fazer, pois, apesar de ele nada ter a ver com Jane Austen (o que me atraiu no título, muito espertamente escolhido), logo eu estava envolvida na história e tive que comprá-lo. Estou um pouco atrasada: o livro é de 2010 (e no Brasil foi publicado em 2011) e se passa durante a guerra do Iraque, mas ainda assim a leitura foi proveitosa.

Ao contrário da maior parte das minhas leituras, esta não é uma ficção, e sim a história real de duas mulheres – Bee, uma jornalista britânica, e May, uma professora universitária iraquiana – que se conheceram por meio de uma entrevista e continuaram se falando por e-mail, desenvolvendo uma amizade virtual. O livro é composto pela troca de e-mails entre as duas, de 2005 a 2008. A relação eventualmente levaria May a escapar do próprio país, devastado pela guerra.

Por mais que eu ame literatura e crie laços emocionais beirando o patológico com personagens fictícios, histórias reais me atraem, especialmente quando parecem algo tirado de um romance. Nesse caso, a atração foi ainda maior pois o livro permite acesso a conversas muito íntimas.

Bee e May falam sobre suas vidas, passados, trabalho, a relação com o marido, os costumes de seus países, entre outros assuntos. As diferenças são grandes: enquanto a vida de Bee, mãe de três vivendo num país ocidental, não é tão interessante, May vive numa Bagdá ocupada por tropas americanas e que experimenta um “banho de sangue”. Sua rotina inclui ser parada e interrogada no caminho para o trabalho, ter sua casa invadida e revistada, encontrar cadáveres nas ruas, ouvir bombas e tiros, e descobrir que seu nome está numa lista de professores ameaçados de morte. O marido, mais jovem que ela, foi deserdado pela família devido ao casamento, e também corre risco constante, por ser sunita.

Essa guerra pode ter acabado (oficialmente), mas as histórias de May são fascinantes por mostrar algo que a maioria de nós não conhece, qualquer que seja o conflito: a vida dos civis. Ela conta sobre as dificuldades em conseguir comida, acesso à internet e combustível (só disponível no florescente mercado negro), e sobre a falta de liberdade que os habitantes de Bagdá vivenciavam – às vezes, ela e o marido passavam dias sem sair de casa, simplesmente porque não era seguro.

Em certo ponto, May questiona se Bee realmente compreende o que é viver numa zona de guerra: Bee admite que não, pois conhecer os fatos objetivamente é diferente de senti-los na pele. O leitor fica na mesma posição mas, como Bee, ganha com esse conhecimento. O livro nos obriga a refletir sobre como é fácil para nós, no Ocidente, ter ideias consolidadas sobre coisas que jamais poderemos realmente compreender. Se alguém nos perguntasse o que é melhor, democracia ou ditadura, a resposta da maioria seria óbvia, mas May amaldiçoa a intervenção americana e sente falta do regime de Saddam Hussein:

“Por que os malditos americanos nos invadiram? Uma ditadura com garantias e segurança é muito melhor para os civis do que a democracia sedenta de sangue que eles nos trouxeram. Cinco anos terríveis sem nenhum sinal de melhora. Estão nos fazendo perder o interesse na vida.”

Suas histórias e revelações sobre o mundo e os costumes islâmicos são muitas vezes chocantes, mas ela – uma mulher que estudou e já viveu no Ocidente – também aponta como grupos radicais e ignorantes deturparam os preceitos de sua religião para ganhar poder e oprimir o povo (e as mulheres, em especial).

A segunda metade do livro foca nas tentativas de May de sair do Iraque, e ela conta sobre funcionários não só corruptos como “preguiçosos”, e sobre as humilhações que sofre continuamente. É um alívio quando finalmente consegue sair do país, depois de muitas dificuldades e traumas.

Às vezes senti raiva de uma ou de outra das protagonistas e discordei de suas opiniões (achei Bee bem insensível em vários momentos), mas precisei me lembrar de que elas são pessoas reais, com defeitos e qualidades. Apesar de a leitura se arrastar em certas partes (como as histórias infinitas de Bee sobre suas filhas e os relatos da burocracia infernal que May enfrenta), os e-mails são geralmente curtos e você fica sempre naquela de “ler só mais um”. Há algumas “lacunas” na história, pois as duas também se falavam por telefone e mandavam mensagens de texto, mas nada que interfira na compreensão dos fatos.

Claro que o leitor cínico vai se perguntar se algumas partes desses e-mails são reais e se outras foram suprimidas para a publicação, mas mesmo que a obra tenha sofrido interferências editoriais, a leitura continua bem interessante (e há trechos suficientes que poderiam ter sido omitidos para suspeitarmos que as mensagens são legítimas). O que não deixa dúvida é que o leitor terminará o livro com uma nova perspectiva sobre a guerra, e que verá quão próximas de nós estão pessoas que, ao redor do mundo, passam por horrores inimagináveis.

*

Conversas sobre Jane Austen em Bagdá
Autoras: Bee Rowlatt e May Witwit
Tradutora: Sylvia R. V. de Lemos
Editora: Reler
Ano de publicação: 2011
352 páginas

Citações preferidas

Quando eu estava na escola, tive uma professora de inglês ótima. Um dia ela nos deu uma tarefa: tínhamos que decorar um poema para recitar para a classe. […] O motivo, ela disse, era que seria útil algum de nós fosse preso. Todo mundo riu, mas me lembro da justificativa dela: um poema pode te sustentar.

*

Eu acho que você deve apreciar o amor onde quer que o encontre, e se alguém não aprovar, é um sinal das próprias limitações da pessoa.

*

Um homem morre e vai para o inferno. Lá ele descobre que há um inferno diferente para cada país. Ele vai ao inferno alemão e pergunta: “O que eles fazem aqui?” Dizem para ele: “Primeiro eles te colocam numa cadeira elétrica por uma hora, então você deita numa cama de pregos por uma hora, e então o diabo alemão bate em você pelo resto do dia”.

O homem não gosta muito da resposta, então passa reto. Ele para no inferno russo e no inferno americano, e em muitos outros, e descobre que são mais ou menos iguais ao inferno alemão.

Então ele chega ao inferno iraquiano e vê uma longa fila de pessoas esperando para entrar. Surpreso, pergunta: “O que eles fazem aqui?” e respondem: “Primeiro eles te colocam numa cadeira elétrica por uma hora, então você deita numa cama de pregos por uma hora, e então o diabo iraquiano bate em você pelo resto do dia”. “Mas isso é igual aos outros infernos – por que as pessoas estão esperando para entrar?”

“Porque a manutenção é tão ruim que a cadeira elétrica não funciona, roubaram todos os pregos da cama, e o diabo é funcionário do governo, então ele chega, bate o ponto, e vai pra cantina!”

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