Sinopse:
Agora, Lestat pode mudar completamente. Um desconhecido que o persegue em vários lugares do mundo – Veneza, Hong Kong, Miami, Londres e Paris – propõe a troca de seu corpo com o do vampiro. É a oportunidade de Lestat sentir as sensações de um mortal. É a chance de Raglan James experimentar os poderes de um imortal. Esta é uma história contemporânea, passada no final dos anos 80, inclusive no Rio de Janeiro. Depois de alcançar o sucesso durante sua curta carreira de cantor de rock, Lestat se enfronha no candomblé e espiritismo, pelas mãos de David Talbot, um amigo mortal que recusa sua oferta de sangue negro. Torturado por seu amor, suas dúvidas e sua solidão secular, Lestat sonha ser humano outra vez. Ver o sol, beber e comer como qualquer outra pessoa. Mas uma coisa o perturba. E se o estranho não lhe devolver mais o corpo?
Fonte: Rocco
Em tempos de inúmeros romances vampirescos, Anne Rice não apenas é uma leitura necessária como deleitosa. No distante Entrevista com o vampiro (1976), traduzido para o português brasileiro por Clarice Lispector, Rice criou personagens vívidos e complexos, cuja caracterização nunca deixou de fascinar, além de uma ambientação que tornou seus cenários – Nova Orleans, em especial – atraentes a ponto de não mais conseguirmos distanciá-los de suas criaturas ou de sua narrativa. Rice retornaria ao gênero anos depois com O vampiro Lestat (1985) – romance de formação que opôs o melancólico e entediado narrador de Entrevista ao exuberante e intenso herói homônimo – e posteriormente com A rainha dos condenados (1988) – livro desafiador tanto por seus múltiplos narradores quanto por sua ousada trama, que propunha a extinção de 99% dos homens como forma de acabar com a violência, o estupro e as guerras.
Seja escrevendo em primeira pessoa – como nas Crônicas Vampirescas – seja em terceira – como nas histórias das bruxas Mayfair – Rice continua sendo uma das vozes literárias contemporâneas mais talentosas e desafiadoras num cenário estadunidense que prima, muitas vezes, por uma frígida simplicidade ou por uma equivocada feiura realista, herança errônea e espúria de Hemingway. Ou seja, enquanto outros autores investem no terror explícito, no romantismo sentimental ou no erotismo decadente, quando não exagerado, Anne Rice explora problemas existenciais, discussões sobre gênero e experimentações literárias por meio de cativantes figuras andróginas e sensuais que nada têm em comum com as bem comportadas releituras do desgastado vampírico atual. Diferente destes, os imortais de Rice não querem fazer sexo porque não podem; não querem casar porque desprezam convenções do tipo; e não têm intenção alguma de ter filhos, pois suas relações afetivas apontam em outras direções. Em outros termos, são as criaturas mais sensuais que poderíamos imaginar e incansáveis subversores das normas sociais tradicionais, heróis contra a corrente do tempo – literalmente – e dos costumes.
Findada a ameaça mundial apresentada em A rainha dos condenados, a autora voltou-se para um enredo menos ambicioso, porém não menos interessante. A história do ladrão de corpos (1991), cujo título brinca com os romances populares de horror que influenciaram Rice, apresenta Lestat entregando seu corpo imortal a um ladrão psíquico que lhe promete a possibilidade de passar dois dias num corpo mortal, experimentando as sensações que o vampiro tanto lamentou perder nos romances anteriores. Impetuoso e aventureiro, apesar de um tanto descuidado, Lestat aceita o acordo fáustico, dando início a uma série de experiências rotineiras, que vão desde refeições decepcionantes, falta de dinheiro, um encontro sexual que termina em estupro e uma febre que por pouco não tira a vida do tolo herói.
Tudo isso antes de descobrir que Raglan James, o ladrão de corpos do título, não pretende desfazer a troca. Um dos motes do livro é o clássico poema de William Blake, “The Tyger” (1794), que serve não apenas de chave simbólica para a compreensão do protagonista a respeito de sua própria natureza como também para os pesadelos com a menina Claudia, filha vampira que retorna dos mortos para lhe assombrar.
Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?
Tigre! Tigre! Brilho intenso
Pelas matas noite adentro,
Que eterno toque ou visão
Moldaria tua terrível simetria?
Lestat com suas vítimas; Raglan James com seus corpos roubados; a morte que ameaça a todos os personagens do livro. Todos tigres a incendiar a imaginação do leitor com seus múltiplos significados. Neste caso, muitas partes do romance apresentam cenas de conflito tão intensas quanto a imortal simetria do tigre demoníaco cujos olhos ardem na floresta noturna, imagem que serviria tanto ao herói de Rice quanto ao seu inimigo.
Todavia, imersa nessa trama de ação e suspense – talvez um dos livros de Rice mais vibrantes nesses quesitos – figura uma delicada reflexão sobre a condição humana em cenas poéticas que vão desde as sensações corpóreas mais comuns que Lestat (re)descobre ao (re)visitar a carne até discussões sobre espiritualidade e fé. Ladrão de corpos é um estudo sobre aquilo nos torna humanos e sobre o fulgurante ímpeto de seu protagonista.
Lestat é um dos heróis mais fascinantes da literatura contemporânea, não apenas por sua bela figura – algo de se esperar num protagonista do gênero – como também por seu entusiasmo resoluto, por sua determinação em face às adversidades, por sua recusa em desistir em momentos nos quais a derrota parece ser a única possibilidade. Em tempos de heróis melancólicos, quando não resmungões, a ousadia do herói de Rice é um sopro de ar fresco nos empoeirados calabouços do gênero. Quando se banaliza a vida eterna, como se pode compreender a mortalidade? Neste romance, em especial, Rice ressignifica a eternidade ao redimensionar a fragilidade humana e seus raros momentos de beleza e transcendência.
O toque de um amante. O gosto de suco de laranja. O raio de sol sobre a face. Os pés descalços sobre a orla da praia. A voz de um amigo querido. Mesmo quando Rice faz voltar à cena Louis ou quando apresenta o novo mascote do protagonista – um cão gigantesco chamado Mojo – são essas pequenas experiências do dia a dia que redimensionam o drama do protagonista e despertam a atenção do leitor. Em especial, a do leitor brasileiro, que vê várias alusões à nossa verdejante mata nativa, ao candomblé e ao carnaval carioca.
Porém, o aprendizado de Lestat só é possível em razão de outros dois importantes personagens: David Talbot, ancião da Ordem de Estudiosos Talamasca que está às portas da morte; e Gretchen, enfermeira católica com quem vive não apenas uma crise de fé como um encontro que comporta, além de sexo, um longo diálogo sobre o bem e o mal, Deus e o Diabo, e o dever humano neste planeta, indiferente de esses dois sujeitos existirem ou não. Tanto pelo conflito de Talbot, que lê o Livro de Jó e estuda as pinturas de Rembrandt, quanto no drama de Gretchen, Rice indica uma das principais referências de seu livro: Fausto, de Goethe. Haveria alguma redenção esperando por nós? Todos os personagens do romance, crentes ou ateístas, humanos ou monstros, parecem responder que sim.
E colocar uma freira católica indo para a cama com um jovem mortal possuído pelo espírito de um vampiro e brincando com posturas existencialistas e ateístas é o que exemplifica a importância da narrativa de Rice, sendo a própria autora vítima dos efeitos de uma educação religiosa repressora. Essa crise espiritual e seus diversos matizes são visíveis em muitas das passagens do Ladrão de corpos, bem como de seu romance seguinte Memnoch (1995). Nos últimos anos, Rice retornaria ao cristianismo encerrando – aparentemente – suas Crônicas Vampirescas e voltando-se para uma série de romances sobre Cristo e anjos, séries que, a despeito de suas qualidades narrativas, decepcionou boa parte dos leitores.
Felizmente ou infelizmente – do ponto de vista dos puritanos religiosos de plantão – a escritora anunciou há mais de um ano que havia rompido com o catolicismo tradicional e que retornaria ao seu herói mais estimado. Neste último dia das bruxas, foi lançado com grande aclamação o novo tomo das Crônicas Vampirescas, Prince Lestat (2014). Que outras aventuras deste herói audacioso, charmoso e rebelde venham à tona. Numa época de vampiros sorumbáticos ou vegetarianos, esse retorno é mais do que bem-vindo.
Isso porque em A história do ladrão de corpos e em outros de seus livros, Anne Rice propõe um novo tipo de vampiro ao século XXI: um ser apaixonado pela vida, pela arte e pelas questões existenciais ou éticas que tanto precisam – ainda – ser pensadas e discutidas. Saem as capas pretas e os castelos medievais e entram seres exóticos vestidos de esvoaçantes roupas de festa em velozes motocicletas ao som de batidas de rock. Drácula nos acena de longe. Lestat, por outro lado, sussurra ao pé do ouvido, bem próximo do nosso pescoço. Você vai ficar ou fugir? Gritar ou assentir?
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P.S.1.: Aos amantes da sétima arte, dois filmes recentes são recomendados por recuperarem de forma elegante muitas das questões tratadas por Rice em seus livros. Um deles é Byzantium (2013) – do mesmo Neil Jordan que dirigiu Entrevista com o vampiro em 1992 –, que reinterpreta o mito sob perspectiva do silenciamento e da opressão do feminino no decorrer dos séculos, com Gemma Arterton e Saoirse Ronan. O outro, é o formidável Only Lovers Left Alive (2013), de Jim Jarmurch, que apresenta um casal de vampiros (Tom Hiddleston e Tilda Swinton) encontrando na arte o único consolo para sua vida imortal. Adam é um amante de rock. Eve, uma leitora voraz de literatura. Quando fazem as malas para encontrar ninguém menos que Christopher Marlowe, discos e livros em vez de roupas, numa alusão perfeita aos únicos companheiros possíveis da raça humana no decorrer dos séculos.
P.S.2.: Quanto aos leitores interessados na obra de Rice, indico Prism of the Night (1992), biografia escrita por Katherine Ramsland; Conversations with Anne Rice (1996), conversa com a autora sobre sua vida, obra e opiniões sobre sexo, pornografia e arte, de Michael Riley; e The Unauthorized Anne Rice Companion (1996), editado por George Beahm, que republica diversas de suas entrevistas. Aos acadêmicos, sugiro Anne Rice: A Critical Companion (1996), editado por Jennifer Smith, um compêndio de crítica literária que interpreta os romances da autora a partir de diferentes correntes teóricas – feminista, pós-colonialista, psicanalítica etc; e The Gothic World of Anne Rice (1994), coletânea feita por Gary Hoppenstand e Ray B. Browne.
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A história do ladrão de corpos
Autora: Anne Rice
Editora: Rocco
Ano de publicação: 1993
467 páginas
Citações favoritas:
Acredito que Rembrandt vendeu a alma ao demônio quando era jovem. Foi um negócio simples. O demônio prometeu que ele seria o pintor mais famoso do seu tempo. O demônio enviou milhares de mortais para que Rembrandt os retratasse. Deu riqueza a Rembrandt, uma casa encantadora em Amsterdã, uma esposa e mais tarde uma amante, porque estava certo de que teria sua alma, no fim. Mas o encontro com o demônio provocou uma mudança em Rembrandt. Depois de ver a prova inegável do mal, passou a ser atormentado pela seguinte pergunta: “O que é o bem?”
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Louis lamentou minha morte, tenho de admitir. Mas, afinal, ele é tão bom nisso! Ele usa a desgraça como os outros usam o veludo. O sofrimento o enfeita como a luz das velas. As lágrimas o adornam como joias. Nada desse lixo combina comigo.
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Assim, estendemos a mão para o caos furioso, apanhamos alguma coisa pequena e brilhante e nos agarramos a ela, dizendo para nós mesmos que ela tem significado, que o mundo é bom, que não somos a encarnação do mal e que no fim iremos para casa.
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Séculos atrás, quando entrei pela primeira vez naquele palco, em Paris, quando vi os rostos felizes, quando ouvi os aplausos, foi como se o meu corpo e a minha alma tivessem encontrado seu destino. Senti a realização de todas as promessas do meu nascimento e da minha infância. Oh, havia outros atores, piores e melhores, outros cantores, outros palhaços. Tem havido milhões deles desde então e outros milhões virão a partir deste momento. Mas cada um brilha com um poder próprio intransferível. Cada um tem sua chance de vencer todos os outros para sempre, na mente dos que o ouvem ou o veem, e esse é o único tipo de realização na qual o ego – este ego, se quiser – se completa e triunfa. Sim, eu podia ter sido um santo, tem razão, mas teria de fundar uma ordem religiosa ou conduzir um exército numa batalha. Teria de fazer milagres de tal importância que o mundo todo se ajoelharia aos meus pés. Eu sou aquele que precisa ousar, mesmo que esteja errado – completamente errado.
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– Existe algum ser no mundo que faça uso de tudo que possui? – perguntei. – Talvez um pequeno número de seres geniais e corajosos conheçam os próprios limites. O resto de nós não faz outra coisa senão se queixar.
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Afinal, o que o nosso mundo significa para as estrelas lá em cima? O que elas pensam do nosso minúsculo planeta, repleto de insanas justaposições, circunstâncias fortuitas, a luta eterna, as ensandecidas civilizações espalhadas por toda a sua superfície, que sobrevivem não por força de vontade, fé ou ambição comum, mas por uma capacidade onírica de milhões para ignorar e esquecer as tragédias da vida e mergulhar na felicidade, como os passageiros daquele navio – como se a felicidade fosse tão natural aos seres humanos como a fome ou o sono, a necessidade de calor e o medo do frio.
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Apanhei o acendedor, encostei o pavio na chama antiga e criei uma nova explosão de luz, quente e amarela, finalmente firme, exalando o perfume forte da cera queimada. […] Eu sabia que a vela era para mim. […] Porque estava sozinho, por mais próximo que estivesse aquele amigo. E porque a felicidade voltara para ele, como um tormento que jamais poderia conquistar, o sorriso perverso já aflorando aos lábios, a sede crescendo dentro dele com o desejo de sair da igreja e vagar pelas ruas lisas e brilhantes da cidade. Sim. Para o vampiro Lestat, era aquela pequena vela, aquela vela miraculosa, que aumentava a quantidade de luz no universo! E queimava numa igreja vazia a noite toda, entre todas as outras pequenas chamas. Estaria queimando de manhã, quando chegassem os fiéis, quando o sol entrasse por aquelas portas. Mantenha sua vigília, pequena vela, na escuridão da noite e à luz do dia. Sim, por mim.