Sinopse:
Kurgala é um mundo abandonado por Quatro Deuses. Adapak é filho de um deles. E hoje ele está sendo caçado. Perseguido por um misterioso grupo de assassinos, o jovem de pele cor de carvão se vê obrigado a deixar a ilha sagrada onde cresceu e a desbravar um mundo hostil e repleto de criaturas exóticas. Munido de uma sabedoria ímpar, mas dotado de uma inocência rara, ele agora precisará colocar em prática todo o conhecimento que adquiriu em seu isolamento para descobrir quem são seus inimigos. Mesmo que isso possa comprometer alguns dos segredos mais antigos de Kurgala.
Fonte: Livraria Cultura
Pegue o mundo de Conan e o fatie em cubos que lembrem ora O senhor dos anéis ora as aventuras de Dungeons & Dragons. Adicione um pouco de referências a Star Wars e à obra de Lovecraft e ferva num caldeirão de cultura pop e de histórias de capa, espada e magia. Por fim, tempere com uma pitada de filosofia que dialogue com o difícil período entre a adolescência e a vida adulta. Sirva com o acompanhamento de uma taça de vívida narrativa literária. O resultado dessa receita é O espadachim de carvão, de Affonso Solano.
Em qualquer discussão sobre escrita criativa, há sempre uma oposição quanto às principais metas de um autor com sua obra: ela teria sua origem na história e no mundo ou no herói e no seu desenvolvimento? Se o escritor defende os primeiros, quase sempre tende a construir personagens planos ou pouco complexos. Se opta pelo segundo, raramente escapa de uma narrativa excessivamente subjetiva, quando não impressionista. No caso de Solano, trata-se de uma equilibrada (e rara) mistura de ambos. Se, por um lado, há em seu romance um cenário imensamente detalhado, que o autor levou mais de uma década para conceber, por outro, é inegável que se trata de um romance de formação, no qual acompanhamos o desenvolvimento do protagonista Adapak, o espadachim do título.
Em literatura fantástica, há escritores capazes de criar universos complexos e detalhados, em que a cultura, a língua, os jargões, as diferenças étnicas e éticas entre diferente populações (tudo isso presente em provérbios, religiões, tratos sociais e informações políticas e ideológicas) presentificam na mente do leitor o drama de seus heróis. Há outros, porém, que mais interessados em descrever o mundo do que em contar uma boa história, deixam seu leitor perdido em meio a dezenas de referências. Solano pertence ao primeiro grupo, não esquecendo de dosar esse detalhamento do universo com o principal: a história de seu herói. Tal ambientação primorosa de seu mundo é ilustrada pelo bonito mapa de Kurkala.
Tais exercícios demiúrgicos de criação correm sempre o risco de resultarem exaustivos ao leitor contemporâneo, que, vide sua cultura televisiva e cinematográfica, quando não quadrinística ou mesmo literária, muitas vezes prefere a ação ao detalhamento do cenário. Em Espadachim, encontramos as duas coisas, num romance que funciona como uma vigorosa aventura de capa e feitiçaria, que faria os leitores de Conan delirar, como também uma fábula sobre crescimento físico e psicológico. Assim como Adapak, todos nós deixamos a “caverna platônica da idealização” e adentramos no inóspito, amedrontador e nada amistoso mundo do aprendizado adulto.
Mas é sobre o seu herói que Solano deposita ainda mais energia. Em O espadachim de carvão, somos convidados a viajar com Adapak pelas terras exóticas e oníricas de Kurgala, enquanto fugimos de assassinos pérfidos, encontramos marujos & marujas pouco convencionais e forjamos parcerias improváveis. Como em todas as jornadas, há muito a se ganhar e muito a se perder, quando não a se aprender. E o herói que encerra este volume é um guerreiro bem diferente daquele que encontramos no primeiro capítulo, o qual joga o leitor no meio da ação e da violência que justamente fazem Adapak abandonar o conforto do seu lar. Nesta jornada, há várias feridas externas, entre elas uma perda inacreditável que além de deixar o leitor sem fôlego – pensando justamente no que seria essencial fisicamente a um espadachim – referencia um dos finais mais clássicos da história do cinema.
Mas são realmente as feridas internas as mais fascinantes e aquelas que nos fazem, enquanto leitores, simpatizar e sofrer com o chamuscado protagonista.
Sobre o protagonista, Adapak parte para uma aventura que no princípio objetiva simplesmente garantir sua sobrevivência. Trata-se de um jovem guerreiro praticamente monocromático na primeira metade da narrativa, cuja ingenuidade provoca grande empatia. Todavia, cada queda, traição, surpresa e derrota vai gradativamente enriquecendo e formando aquelas áreas cinzentas que todos nós aprendemos a apreciar em literatura e ainda mais na atual literatura fantástica, transpassada pelo realismo amoral de George R. R. Martin, por exemplo. Assim, Solano joga um herói ingênuo e vigoroso num mundo assustador, sombrio e nem um pouco amigável, forjando-o na luta, nas traições, nas perdas.
Intensifica esse contraste a narrativa do romance, que entrecruza, capítulo a capítulo, o presente das aventuras de Adapak por Kungala com o passado de sua formação, em especial sua relação com seu pai, a divindade Enki’ När, sua formação com Barutir e a decadência deste, além de sua relação ambígua e fascinante com Telalec, um dos melhores personagens deste primeiro volume. Isso quando o narrador não valoriza a relação do espadachim com suas armas feitas de ossos: Igi e Sumi, as espadas gêmeas. Esse contraste entre presente e passado faz o próprio leitor construir a biografia de Adapak no decorrer da leitura, tornando o exercício narrativo e imaginário bem divertido, quando não desafiador.
Um adendo delicioso do romance é a forma como o autor brinca com a linguagem de seu herói, fazendo com que este, em um dado momento do enredo, escreva um diário, que não apenas dá acesso à sua interioridade como também propõe interessantes formulações estilísticas. Que o autor estivesse interessado no que contar era de se esperar, mas que estivesse também atento ao como contar sua aventura, é sem dúvida uma agradável surpresa. Solano faz isso ao reinventar a utilização de sinais gráficos como um simples itálico ou ao fazer o herói corrigir seu próprio texto. Em outros termos, trata-se de um exercício de experimentação narrativa e estilística que eu espero que continue nos próximos volumes.
Exemplificam também isso os deliciosos tomos imaginários – ou não? – que abrem cada capítulo. Assim, antes de retornarmos às aventuras de Adapak, acessamos as leituras que formaram a visão de mundo do herói, como Tamtul e Magano contra o terror do abismo vermelho ou então Tamtul e Magano e o elmo do imperador sorridente. Será que um dia teremos a publicação de algum desses tomos? Eu, que adoro histórias dentro de histórias, espero que sim.
Por fim, indico o site oficial da série, que amplia e detalha em textos e imagens aquilo que imaginamos no decorrer da leitura. Nele, sugiro o Mapa de Kurgala, bem como a galeria de ilustrações, que sugere interessantes projetos futuros. O site funciona como expansão para o universo da série, bem como canal de comunicação com o autor. Com a divulgação na semana passada da capa do segundo volume, que será lançado na próxima Bienal do Livro do Rio de Janeiro, a expectativa pela continuidade da série só aumenta.
Felizmente, os leitores & leitoras não terão de esperar, como os apreciadores da saga de Tamtul e Magano, “até o sol seguinte” pelo “próximo capítulo das aventuras” de Adapak.
*
O espadachim de carvão
Autor: Affonso Solano
Editora: Casa da Palavra/LeYa
Ano de publicação: 2013
256 páginas
Citações favoritas:
– Obrigado por me salvar dos monstros, Adapak.
– Monstros não existem.
*
Ele diminuiu os passos para avaliar melhor o cenário, sentindo as pernas fraquejarem frente ao fato de que seria a primeira vez que conheceria pessoalmente um lugar assim. Adapak estava acostumado às descrições das cidades dos livros de fantasia que lera na adolescência, detalhando muralhas gigantescas guardadas por estátuas colossais de imperadores retratados em seus auges. Urpur falhava em atender tais expectativas; seus muros eram altos e resistentes, mas a engenharia grosseira os afastava da grandiosidade e beleza que o rapaz imaginara. Grandes blocos de pedra haviam cedido ao tempo e despencado, deixando espaços vazios ou remendos apressados feitos por profissionais que não se preocupavam com a estética. Em vez de estátuas magníficas, torres circulares vigiavam o mundo exterior. Ainda que decepcionado, o jovem não pôde deixar de respeitar a capacidade dos mortais de construir estruturas a partir dos recursos naturais do mundo, algo muito distante da realidade de sua Casa.
*
ESSE LUGAR PODE LHE ENSINAR ISSO, ADAPAK – disse o ser, erguendo-se e admirando a colossal caverna . – MINHA CASA PODE LHE ENSINAR A SE DEFENDER DE QUALQUER ANTAGONISTA. PODE TAMBÉM LHE OFERECER TODOS OS LIVROS QUE QUISER LER E LHE ENSINAR SOBRE OS LUGARES, POVOS E CULTURAS DE TODA KURGALA SEM QUE PRECISE VIAJAR. ESTE LUGAR PODE CURAR SEU CORPO QUANDO NECESSÁRIO, E ENSINAR-LHE A CUIDAR DE SI MESMO. BASTA QUE VOCÊ QUEIRA APRENDER.
*
Telalec viveu entre imperadores por muitos ciclos, jovem Filho de Enki’När – o ushariani disse, deslizando pensativo o coto do antebraço pelos fios da trança do queixo –, e tudo que encontrei forma crianças mimadas que se cercavam de coisas que não precisavam. Aqui não há móveis de madeira envernizadas, talheres de osso ou pinturas exaltando egos frágeis; esta Casa é como um castelo de areia, capaz de moldar o necessário e desmanchá-lo quando não mais. Os Quatro não precisam possuir bem materiais para se sentirem completos e isso os torna os verdadeiros imperadores de Kurgala. É uma pena que o mundo lá fora tenha perdido essa perspectiva desde que Eles… se retiraram.
*
“Vento nenhum é favorável quando não se sabe para onde se está indo.”
Illïat, em Tamtul e Magano contro o olho de Pht’Angü