[Resenha] A Jornada do Escritor

jornada_capaSinopse:

Em 1949, no clássico O herói de mil faces, o estudioso Joseph Campbell conceituou a chamada Jornada do Herói: uma estrutura presente nos mitos e replicada em todas as boas histórias já contadas e recontadas pela humanidade. Em A Jornada do Escritor, Christopher Vogler faz uma detalhada e esclarecedora análise desse conceito, tomando como base diversos filmes importantes. Resultado de anos de estudo sobre mitos e arquétipos, somados à experiência de Vogler na indústria cinematográfica norte-americana, esta edição, revisada pelo autor, é uma obra de referência fundamental não apenas para quem deseja escrever boas histórias – bebendo da fonte dos mais belos e fascinantes mitos já criados pela mente humana –, como para quem quer entendê-las melhor, relacionando-as à própria vida.

Fonte: Aleph

Quando o assunto é escrita literária, há uma discussão comum sobre a diferença entre forma e conteúdo. Alguns dizem que o importante é a boa história que se conta. Outros valorizam mais a boa forma de se contar velhas histórias. A Jornada do Escritor defende este último argumento, ao detalhar de forma instigante e pontual o conteúdo arquetípico de toda a história, detendo-se em temas como heróis, vilões, mestres, ferramentas e aventuras. Todavia, em vez de se preocupar com como as histórias são contadas, Vogler está mesmo interessado em o que elas apresentam para fazer sucesso.

Desse modo, o leitor deve baixar suas expectativas caso deseje encontrar em Jornada o típico manual de escrita criativa que centra sua atenção em narrativa, descrição, ambientação, caracterização e diálogos, entre outros elementos tão caros a qualquer discussão sobre estilo literário. Por outro lado, deve elevar – sem medo – suas esperanças de encontrar um texto delicioso que não apenas analise de forma sensível as complexas sutilezas que formam o enredo e o desenvolvimento de uma boa história como também amplie essa discussão ao abordar a busca do herói como a busca existencial de todos nós.

O sumário do livro já indica quão divertida tal jornada será. Na primeira parte, ela é mapeada em capítulos dedicados aos arquétipos do herói, do sábio, do arauto, da sombra e do aliado, entre outros. Na segunda, temos a cartografia dessa grande aventura, que incluem limiares, pórticos, castelos, cavernas e despenhadeiros, alegóricos ou reais, que permitirão ao herói ou à heroína aquilo que o autor chama de “retorno com o elixir”, que pode ser o elixir da vitória contra o dragão, do sucesso material ou da conquista romântica, entre outros temas possíveis.

Um dos muitos diagramas da Jornada do Herói e Vogler em um de seus seminários sobre A Jornada do Escritor

Um dos muitos diagramas da Jornada do Herói e
Vogler em um de seus seminários sobre A Jornada do Escritor

O livro de Vogler é fascinante sobretudo pela forma apaixonada como defende o poder central das histórias de mudar percepções, fortalecer espíritos e motivar jornadas, externas ou internas. Partindo de conceitos presentes não apenas em estudos de antropologia que objetivam mitos primitivos como uma esclarecedora releitura dos pressupostos aristotélicos, o autor convida o leitor a uma jornada sempre divertida e instigante, ora interessado no mapeamento da “estrutura mítica” prometida no subtítulo do livro, ora apenas refletindo sobre questões fundamentais sobre arte, escrita e histórias.

Com um pé calcado nos arquétipos de Carl G. Jung e nas ideias de Joseph Campbell sobre a Jornada do Herói estudada no clássico O herói de mil faces, Vogler monta seu livro como uma grande aventura de iniciação na qual escritores, criadores e leitores podem aprender sobre suas inspirações culturais e sobre seus próprios aprendizados como seres humanos. Soa como autoajuda? Talvez, mas se este for o caso, trata-se de autoajuda da mais alta qualidade, ao lado dos tomos de psicanálise de Freud e Jung, que veem no autodesenvolvimento do indivíduo – no caso de Vogler, no do herói – a principal meta de nossa existência.

Assim, ao estudar os exemplos de Luke Skywalker, Indiana Jones ou Jack Dawson, podemos apenas avaliar a consistência (ou falta dela) em muitas das histórias que conhecemos ou testar nossas habilidades analíticas em tantas outras que nos fascinam. O único porém do intento de Vogler, como os exemplos acima denunciam, é centrar-se quase exclusivamente em exemplos retirados de grandes filmes hollywoodianos. Compreende-se, dado o tempo que o autor trabalhou como consultor para grandes estúdios. Porém, tem-se a impressão de que pouco ou nada existe exceto o “modo” norte-americano e cinematográfico de contar histórias. E nós sabemos que existe. Aos interessados mais em literatura do que em cinema, pode-se pensar que o livro deveria chamar-se a Jornada do roteirista e não a do escritor.

Exceto por isso, Jornada é um livro encantador, que não esconde sua natureza de manual criativo, apesar de Vogler deixar claro, muitas e muitas vezes, que as estruturas sugeridas e estudadas são mais balizas de percurso – podendo ser alteradas, ignoradas ou recriadas – e menos regras fixas ou obrigatórias. Os apêndices que concluem a edição são igualmente instigantes e motivam o trabalho criativo como poucos livros que já encontrei, em especial as seções “As histórias são vivas” e “A sabedoria do corpo”.

As oníricas e delicadas ilustrações de Michele Montez

As oníricas e delicadas ilustrações de Michele Montez

Quanto à edição da Aleph, ela torna a experiência da leitura ainda mais deliciosa. A capa em papel supremo com textura emborrachada engaja os sentidos físicos ao contato com o livro. O enigmático verde escuro da capa externa e o verde claro da interna, somados ao arquetípico labirinto da capa, são um convite à fruição do livro como objeto, uma preocupação constante da editora. A tradução de Petê Rissatti consegue recriar em português brasileiro o estilo fluido de Vogler sem perder sua delicada poesia. Por fim, o que mais me despertou a vontade de reler Jornada nesta edição foram as inspiradas e inspiradoras ilustrações assinadas pela artista de livros infantis Michele Montez, já presentes no original. Buscando um estilo de xilogravura – que lembra tanto arte medieval como gravuras de livros infantis oitocentistas –, seus desenhos enriquecem nossa paisagem imaginativa à medida que avançamos na leitura.

Tal avanço acompanha os passos dos nossos heróis e heroínas favoritos. Tal jornada entremeia-se a desfiladeiros íngremes, mares revoltos, planetas distantes ou a esquina do nosso bairro. Mas como em toda a jornada, nem nós como leitores, nem nossos grandes aventureiros voltarão intocados. Ao fechar as páginas de A Jornada do Escritor, sabemos que nosso olhar se alterou, seja para o desejo de contar histórias, seja para o prazer de escutá-las, lê-las, assisti-las ou – por que não? – vivê-las.

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A Jornada do Escritor: estrutura mítica para escritores
Autor: Christopher Vogler
Tradutor: Petê Rissatti
Editora: Aleph
Ano de publicação: 2007
Ano desta edição: 2015
488 páginas

Livro cedido em parceria com a Aleph.

Citações preferidas:

O arquétipo do Herói representa a busca pela identidade e totalidade do ego. No processo de nos tornamos seres humanos completos, integrados, somos todos Heróis enfrentando guardiões, monstros e ajudantes internos. Na busca por explorar nossa mente, encontramos professores, guias, demônios, deuses, colegas, serviçais, bodes expiatórios, mestres, sedutores, traidores e aliados como aspectos da nossa personalidade e personagens em nossos sonhos. Todos os vilões, pícaros, amantes, amigos e inimigos do Herói poder ser encontrados dentro de nós mesmos. A tarefa psicológica que enfrentamos é a de integrar essas partes separadas em uma entidade completa, equilibrada. O ego, o Herói que pensa estar separado de todas as suas partes, deve se incorporar a elas e tornar-se um ser único.

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O MODELO DE JORNADA DO HERÓI É UMA DIRETRIZ, não é uma receita ou fórmula matemática a ser aplicada com rigidez a cada história. Para ser eficaz, uma história não precisa seguir esta ou aquela escola, paradigna ou método de análise. A medida principal do sucesso ou excelência de uma história não é seu cumprimento de padrões estabelecidos, mas sua popularidade e seu efeito duradouros no público. Forçar uma história para que ela obedeça a um modelo estrutural é o mesmo que pôr os carros diante dos bois.

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Não perca as esperanças, pois escrever é magia. Mesmo o ato mais simples de escrita é quase sobrenatural, a linha limite entre telepatia. Agora, pense: podemos fazer algumas marcas abstratas num pedaço de papel em uma ordem correta, e alguém, a um mundo de distância e mil anos além, pode conhecer nossos pensamentos mais profundos. As fronteiras do espaço e tempo e mesmo as limitações da morte podem ser transcendidas por meio da escrita.

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No decorrer das minhas perambulações adultas pelo que é normalmente considerado literatura infantil, cheguei a poucas conclusões firmes sobre histórias, essas criações poderosas e misteriosas da mente humana. Por exemplo, cheguei a acreditar que histórias tinham poder curativo, que poderiam nos ajudar a lidar com difíceis situações emocionais ao nos dar exemplos de comportamento humano, talvez semelhantes em alguns aspectos às lutas pelas quais passamos em algum estágio da vida, e que poderiam nos inspirar a tentar uma estratégia diferente para viver. Acredito que histórias têm valor de sobrevivência para a espécie humana e que foram um grande passo na evolução de nossa espécie, pois nos permite pensar metaforicamente e passar adiante a sabedoria acumulada da raça na forma de narrativas. Acredito que histórias são metáforas pelas quais as pessoas medem e ajustam a vida ao compará-la àquelas dos personagens. Acredito que a metáfora básica da maioria das histórias é aquela da jornada, e que boas histórias trazem ao menos duas jornadas, uma externa e outra interna: uma jornada externa, na qual o herói tenta fazer ou conquistar algo difícil, e uma interna, na qual o herói enfrenta alguma crise do espírito ou prova de personagem que leva à transformação. Acredito que histórias são mecanismos de orientação, funcionando como bússolas e mapas para permitir que nos sintamos orientados, enfocados, conectados, mais conscientes, com maior percepção de nossa identidade, responsabilidades e de nossas relações com o restante do mundo.

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Uma resposta em “[Resenha] A Jornada do Escritor

  1. Muito interessante, quanto a qualidade da edição não tenho dúvidas ,Aleph é excelente. Quanto ao uso de heróis hollywodianos, acredito que tem o lado positivo de atingir mais leitores, já que além dos leitores propriamente ditos ,atrai alguns cinéfilos interessados pela Literatura. E, gostaria de saber sua opinião pessoal sobre essa questão de “o que realmente importa” , “a boa história que se conta ou a boa forma de se contar velhas histórias” ???

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