[Resenha] Ouro, fogo & megabytes

Ouro-Fogo-e-Magabytes-capaSinopse:

‘Como esconder uma suspensão escolar dos pais, resgatar uma criatura mágica das garras de uma poderosa e mal-intencionada corporação e ainda por cima salvar o país de um desastre sem precedentes? Anderson Coelho, um garoto nada extraordinário de 12 anos, divide sua vida entre a pacata realidade escolar e uma gloriosa rotina virtual repleta de aventuras em Battle of Asgorath, jogo de RPG online em que jogadores do mundo todo vivem num universo medieval, cheio de fantasia. Lá, Anderson – ou Shadow, nome de seu avatar – tem vida de estrela: é o segundo colocado do ranking mundial. E são justamente suas habilidades que chamam a atenção de uma misteriosa organização, que o escolhe para comandar uma missão surpreendente junto com um grupo de ecoativistas nada convencionais. Ao embarcar para São Paulo, Anderson mergulhará de cabeça em uma aventura muito mais fantástica que as vividas em seu computador. Os encontros com hackers ambientalistas, ativistas com estranhos modos de agir e muitas criaturas folclóricas oferecerão a Anderson Coelho respostas não só sobre sua missão, mas também sobre sua própria vida, enquanto um novo mundo se descortina diante de seus olhos’

Fonte: Livraria Saraiva

Ao ler Ouro, fogo & megabytes, primeiro volume da série O Legado Folclórico, do paulistano Felipe Castilho, senti-me voltando no tempo. Primeiro, revendo minhas leituras adolescentes da saudosa série Vaga-Lume, da editora Ática. Nela, vivi a inesquecível experiência de me divertir com histórias de ação, aventura e mistério em cenários que, salvo exceções, eram essencialmente brasileiros. Segundo, relembrando os livros de Harry Potter, que li já adulto, nos quais as descobertas e desafios da adolescência foram tramados por J. K. Rowling em livros infantojuvenis que nunca recorriam a muletas narrativas que alguns escritores adultos usam para pretensamente se comunicar com o público jovem, como simplificação de linguagem, óbvias lições de moral quando não explicações detalhistas e muitas vezes entediantes.

Dos primeiros, Castilho revive o ambiente urbano de São Paulo ou de qualquer cidade brasileira com propriedade e leveza. As aventuras de Anderson Coelho – o nome do seu herói, vampirizado de Matrix e do sobrenome que resume a literatura nacional para muitos leitores estrangeiros (ai!) – e da Organização – ONG anárquica e apaixonante – são construídas de modo a nunca deixar o leitor emergir da história. Eu, particularmente, que tenho problemas sérios de concentração em séries novas, mal parei pra respirar nos três dias em que devorei as quase trezentas páginas do romance.

Da autora inglesa, por outro lado, Castilho toma emprestado um mundo mágico – ops!, folclórico – que coabita a nossa própria realidade, com um grupo de heróis que coordena ações sociais, resgates impossíveis, coletas ecológicas e propicia reflexões mais do que bem-vindas sobre moralidade, ética, direitos humanos e dos animais, meio ambiente e política. E tudo isso, por mais incrível que pareça, sem nunca ser panfletário. Parece pouco, mas não é. Hoje, tratar de assuntos como esse de forma orgânica, sem levar leitores jovens ou adultos a cair no sono, é um desafio hercúleo, para brincar com outra referência indireta que a série de Castilho faz a outra saga literária, desta vez a de Percy Jackson, e à mitologia grega.

A capa de Octavio Cariello e o autor Felipe Castilho

A capa de Octavio Cariello e o autor Felipe Castilho

Mas em O Legado, o que temos é a nossa mitologia, as nossas raízes, as nossas histórias – míticas ou históricas ou orais – rememoradas de forma imaginativa e deliciosa, insisto: para jovens e adultos. Num momento em que a voz nacional ganha relevo – ao menos em literatura fantástica – e problemas como inclusão e representatividade são cada vez mais relevantes, é delicioso perceber como Castilho e seus coadjuvantes mulatos, indígenas, orientais e caucasianos, têm papel verossímil e importante no decorrer da narrativa, isso para não falar de seu protagonista negro. Sim, Ouro, fogo & megabytes é um dos primeiros romances fantásticos nacionais a apresentar um herói negro, o que coloca seu criador ao lado de autores como Cirilo Lemos, Ana Cristina Rodrigues, Jim Anotsu, Camila Fernandes e Christopher Kastensmidt, entre outros escritores que estão abrindo os nossos olhos e ouvidos a rostos e vozes muitas vezes deixados de lado. Num país como o Brasil, no qual a miscigenação tornou qualquer ideia de etnia única impraticável, já estava mais do que na hora de vermos a literatura, e ainda mais a literatura infantojuvenil, assumindo esse papel de conscientização social.

Quanto à narrativa, Castilho se mostra um excelente escritor de ação e aventura. O primeiro confronto, com uma monstruosa criatura em pleno centro paulistano, demora a acontecer, mas a partir dali a movimentação da trama deixa pouco espaço para respirar, e quando deixa, é para nos brindar com ótimos diálogos sobre mitos, lendas e Câmara Cascudo! O mote desse romance é uma clássica e vertiginosa história de resgate. Num momento climático, o narrador interrompe a própria história para dar seu testemunho, o que pode deliciar muitos leitores, numa brincadeira meta-ficcional bem vinda nesse romance que tem por epígrafe Promethea de Alan Moore.

Por fim, a editora Gutenberg merece louvas pela cuidadosa edição. A capa fantástica é de Octavio Cariello e seu Boitatá é de longe uma das coisas mais vibrantes a aparecer na capa de um romance nacional em muito tempo. Além disso, cada capítulo é introduzido por uma ilustração inédita de Thiago Cruz, que faz um interessante pastiche de estilos artísticos. Neste primeiro livro, são as ilustrações aparentemente simples dos livros infantojuvenis que são homenageadas. Nos volumes seguintes, o que devemos esperar do escritor e do ilustrador?

As Ilustrações de Thiago Cruz

As Ilustrações de Thiago Cruz

Por fim, destaco a primeira coisa que me chamou a atenção no texto de Felipe: a linguagem. O romance brinca com o estilo textual aparentemente cifrado das salas de bate-papo virtuais, nas quais Anderson se comunica com seus amigos de Rastelinho, sua cidade natal, enquanto vive sua jornada épica por São Paulo. Essa linguagem será contrastada no decorrer da trama com conversas, falas e discursos que propõem um afastamento da virtualidade e uma aproximação das pessoas que estão fisicamente próximas de nós. Uma das mensagens do livro? Talvez, mas Castilho parece mais interessado em contar uma história que divirta do que em passar mensagens, o que o torna um escritor importante de se acompanhar.

Que venham outras aventuras de Anderson Coelho e Cia – que já ganhou outros dois volumes: Prata, terra & lua cheia (2013) e Ferro, água & escuridão (2015). Neles, eu espero saber mais do principal antagonista de Coelho e da Organização: o empresário Wagner Rios. Tanto adolescentes como adultos se divertirão com a trama e pensarão sobre os assuntos nem um pouco maçantes que Castilho apresenta em sua saga. Meu veredito? Leia porque é divertido, bem escrito e instigante. Quão bom seria se outras obras apresentassem o mesmo.

*

Ouro, fogo & megabytes
Série: O Legado Folclórico
Autor: Felipe Castilho
Editora: Gutemberg
Ano de Publicação: 2012
288 páginas

Citações favoritas:

No rápido vislumbre que teve do homem, Anderson reparou duas coisas muito curiosas: que ele se afeiçoava àquela figura ranzinza do Patrão, mesmo após a aparente hostilidade demonstrada; e que o velho não tinha uma das pernas.

*

– Pense na Organização como um grupo de pessoas dispostas a fazer a diferença no mundo. A dar consciência a jovens que cresceriam nas ruas, na marginalidade, e dispostas a despertar o que há de melhor em pessoas que estão a cada dia se tornando mais robóticas.

*

– Você fala muito bem, garoto. Poderia comandar pessoas, um dia. – Wagner se levantou lentamente e enfiou as mãos nos bolsos da calça de tergal. Não parecia mais o homem simpático que abordara Anderson há pouco. Mostrava um lado frio, afiado como uma navalha. – Tomara que acorde logo e perceba que esse discurso libertário não o levará a lugar algum. Se quer um conselho de alguém que sabe muito bem o que você está passando neste momento, escute: pegue o seu conhecimento e o leve para um lugar bem alto, bem acima do nível da ignorância social. Se diferencie enquanto ainda há tempo, para não ser varrido com toda a porcaria igualitária que entope os bueiros do mundo e impedem o avanço da sociedade. O rolar da engrenagem.

*

Pode parecer estranho a essa altura do livro, mas eu, o narrador desta história, também faço questão de deixar a minha opinião, dizendo que o plano de Anderson é estupidamente absurdo e que não me sinto nada feliz com a possibilidade de narrar a morte precoce de um garoto de doze anos que ainda poderia aproveitar toda uma vida pela frente. Mesmo que a grande maioria de vocês nunca vá se deparar com uma cobra incendiária colossal, vale a pena reforçar que não repitam o feito de Anderson em hipótese alguma. Na verdade, no caso de encontrarem qualquer coisa amedrontadora contida neste livro, como mãos-peladas, cucas e lobisomens, corram como se uma tribo de índios canibais famintos estivesse em seu encalço.

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