Esta resenha foi escrita por nosso amigo Eliezer Abrantes Rodrigues, editor de arte graduado na ECA-USP.
Sinopse:
A história é inspirada em Um conto de Natal, de Charles Dickens, mas adaptada para Gotham City. Ao invés do velho Scrooge e de seus fantasmas, aqui é o Batman quem tem que encontrar os termos ideais para ficar em paz com seu passado, presente e futuro para enfrentar a sua galeria de vilões e as ameaças sombrias de hoje em dia, enquanto explora o que significa ser o herói que é.
Fonte: Guia dos Quadrinhos
Creio que antes de entrarmos na resenha é preciso pôr na mesa três coisas:
- Sempre fui muito fã do Batman; suas histórias em algum nível sempre mostraram algumas facetas da realidade em que vivo, não apenas no que diz respeito à violência urbana, mas também a dilemas éticos e traumas psicológicos. Além disso, as melhores histórias do Batman são edições especiais que ocorrem “paralelamente” aos eventos das séries mensais (o que contribuiu muito para que eu pudesse ler muita coisa bacana em tempos de vacas magras).
- Por alguma razão inexplicável, simplesmente amo Um conto de Natal. Embora eu nunca tenha lido a obra propriamente, acho incríveis suas diversas adaptações cinematográficas; desde a versão infantil da Disney com o tio Patinhas, passando por uma versão mais sombria dirigida por Clive Donner, a animação com Jim Carrey, enfim… Desde criança, no fim do ano, sempre vejo alguma versão dessa história. Fico fascinado com o mito do empresário rabugento que encontra a redenção numa noite de Natal.
- Desde que li a graphic novel Batman/Deathblow, tenho buscado acompanhar todos os trabalhos de Lee Bermejo, especialmente para a DC Comics.
Com isso em mente, fiquei muito alegre com a notícia de que ele faria uma edição especial para o Batman, numa espécie de releitura da obra de Dickens. Seria como se o Martin Scorsese ou o James Cameron decidissem fazer um filme do Batman. Parece perfeito, né? Certamente! Mas tem um problema que deixarei para o final.
Basicamente, a história começa com Batman perseguindo um ladrão azarado que perde o dinheiro do Coringa. Batman decide usá-lo como isca para capturar o Palhaço do Crime. Durante a investigação, ele enfrenta uma gripe o que rende alguns delírios ao mesmo tempo em que é questionado se seus métodos são adequados.
Nessa adaptação, Bermejo fez uma leitura bastante singular do conto de Dickens. É divertido o paralelismo entre o senhor Scrooge e Batman, os fantasmas descritos no conto original e os habitantes do universo DC, a luta contra a criminalidade, o parceiro de Scrooge ser personificado num Robin presumivelmente falecido e a busca pelo sentido natalino enquanto busca pela fé na humanidade.
Outro ponto positivo foi a inserção da dicotomia entre o Batman mais sombrio, dialogando com a violência de Frank Miller, e o Batman de um passado mais alegre e infantil, referenciando o seriado sessentista de Adam West. Perceba que a ideia é manter a mesma dualidade entre o presente de um Scrooge amargurado e seu passado reluzente com alegrias nas coisas simples.
Entretanto, a história carece de um grande momento de epifania por parte do Batman. Diferente de Scrooge, que na história original encontra sua catarse face à morte, o Batman chega a ter um leve momento de revelação, mas na realidade passa apenas por um delírio que reforça seus preconceitos. E o momento de apoteose é um mero embuste para dizer ao leitor “ora, veja, o Batman não é tão desumano assim”. Creio que a saída fácil no roteiro faz essa graphic novel perder força narrativa e não se equiparar com outras grandes histórias do Batman, como Batman: Ano Um, Asilo Arkham, A piada mortal, O Cavaleiro das Trevas, entre outras. E esta obra deixa a moral da história aberta demais; achei um pouco preguiçoso colocar na boca do narrador-personagem a fala “O que você acha? Qual a moral da história?”.
No que diz respeito à arte, Bermejo é um mestre do realismo. Seus desenhos são tão detalhados pelo esmero com o jogo de sombras que torna visível a dobra das roupas amarrotadas ou a costura do uniforme; e isso fica realçado em função do trabalho da colorista italiana Barbara Ciardo. O jogo de sombras, as cores mais magentas para representar momentos mais alegres em oposição aos tons azulados de uma cidade ameaçadora ou avermelhados nos momentos de delírio contribuem para marcar o ritmo da história e torná-la visualmente mais rica. Não fosse esse cuidado na arte final, é possível que a arte de Bermejo não ficasse tão valorizada.
Junto com essa arte cuidadosa, Bermejo se preocupa com a maneira de enquadrar e de pensar a cena. Com uma veia cinematográfica, ele constrói sequências bastante dinâmicas em página dupla, quebra os requadros usando elementos de cena, mistura a cena em si com pensamentos ou delírios. Essa construção narrativa gera um fluxo não linear de leitura e contribui para que a história não fique engessada ou enfadonha. Se não houvesse os diálogos ou a narração em off, a história ainda seria um interessante conto do Cavaleiro das Trevas.
E para quem é fã de quadrinhos, nas páginas finais tem o making-of mostrando parte do processo da criação artística com esboços e cometários.
A falha no roteiro não é algo que atrapalhe a história ou prejudique a diversão. Vale a pena pelo deleite visual, para conhecer o trabalho de Lee Bermejo e pela releitura de um clássico natalino arrebatador.
Batman Noel
Autor: Lee Bermejo com a colorização de Barbara Ciardo.
Tradutor: Alexandre Callari e Daniel Lopes
Editora: Panini Books
Ano desta edição: 2015
112 páginas