[Especial] Dia do orgulho LGBT+

LGBTFLAG

Aqui no Sem Serifa, sempre tentamos conscientizar os leitores sobre a importância da diversidade na literatura. Os leitores hétero e cis-gênero, justamente por serem amplamente representado em todas as mídias, muitas vezes não têm noção do vazio deixado pela falta de representatividade. Mas os leitores LGBT percebem essa lacuna, e acreditamos que é preciso combatê-la e parar de tratar personagens hétero como regra e todos os outros como exceção.

O maravilhoso Chuck Wendig resume bem a questão nesta série de tuítes que estamos discretamente tentando tornar virais:

E como este blog também tem incríveis leitores que fazem parte desse público, para comemorar o dia mundial do orgulho LGBT+, pedimos a alguns deles que nos enviassem seus depoimentos sobre o assunto.

Estudando e vivendo a representatividade
Arthur Tertuliano, 30 anos, São Paulo-SP

“Eu sempre gostei muito de ler, muito antes de atentar para a representatividade LGBT no que eu lia. Claro, adorava ‘Aqueles dois’ e algumas ambiguidades de gênero em outros contos de Caio Fernando Abreu, mas não era algo que eu buscava ativamente. Mais pro finzinho da faculdade é que comecei a prestar atenção nisso. Eu tinha 3 autores favoritos, todos meio consagrados por prêmios e pela crítica, todos com sobrenome iniciado em C, que sempre tinham personagens gays em seus livros: Michael Cunningham (As horas), Michael Chabon (As incríveis aventuras de Kavalier & Clay) e Bernardo Carvalho (O filho da mãe). Por estar no armário, me era interessante a ‘blindagem’ da qualidade literária como forma de me resguardar de piadinhas. O encobrimento da homossexualidade e/ou o enrustimento dos personagens e narradores de muitos livros de Carvalho me protegiam da acusação de fazer uma ‘dissertação gay’ no mestrado: não, eu queria era falar de pós-modernidade, a temática homossexual era um detalhe.

O problema foi: quase no final do processo, eu saí do armário. Ainda que não completamente (na época), foi o bastante para perceber que, sim, o que eu queria falar era sobre a homossexualidade nos livros do Bernardo. E mesmo isso não parecia ser o suficiente: a liberdade dessa ‘saída’ só aumentou meu interesse por obras menos enrustidas e por obras que representassem as outras letras da sigla LGBT. Queria escrever sobre os personagens bi de Luisa Geisler e Eric Novello, os personagens trans de Alexandre Vidal Porto e Elvira Vigna, as personagens lésbicas de Ali Smith e Carol Bensimon, assim como queria falar sobre os YAs divertidos, tocantes e bem escritos que estavam sendo traduzidos. Se era tarde demais para incluir tudo isso na dissertação (não que eu não tenha tentado), ao menos me dediquei a deixá-la o mais gay possível. Afinal, qualidade literária à parte, isso de saber que em qualquer livro do autor haveria um personagem gay, mesmo que bem escondido, era algo muito próximo da minha vida: eu tava escondido, mas eu existia. E havia outros.

Meses depois disso tudo, eu fiz uma lista de livros brasileiros com personagens LGBT para um blog e muita gente gostou. Eis o link.

 

A literatura como descoberta
Mia Dailan, 28 anos, Salvador-BA

“Quando eu paro para pensar num livro que mudou a minha vida e que me ajudou a lidar com a minha orientação sexual, sem sombra de dúvidas o primeiro que me vem à mente é Demian, de Herman Hesse. Me faltam palavras para dizer o quanto esse livro foi importante pra mim, o quanto ele me transformou.

Eu era uma menina de 14 anos quando na biblioteca pública da minha cidade me encontrei com Demian pela primeira vez. Esse livro não se trata necessariamente da questão LGBT, é muito mais sobre autoconhecimento, a busca infinita pelos sonhos, a dualidade do mundo sombrio e do mundo luminoso. Aconselho fortemente essa leitura para todos aqueles que ainda não estejam em paz consigo mesmos.

Demian me apareceu justamente num momento em que eu buscava na literatura respostas para a maioria das minhas perguntas. Eu estava perdida, confusa, sem entender muito bem o que me acontecia, sem coragem de falar para qualquer pessoa que eu poderia ser lésbica, sem coragem de conversar sobre isso comigo mesma. Eu estava com muito medo, achava que tudo isso era do mal e que simplesmente não poderia acontecer comigo.

Minha primeira impressão foi de que aquele livro fora escrito pra mim, acredito que desde então nunca me identifiquei tanto com uma obra. Emil Sinclair, personagem principal do livro, parecia ser a minha tradução mais fiel.

Aquelas palavras abriram a minha mente, me fizeram entender que a melhor forma de se conhecer é aceitando a si mesmo, e isso eu nunca mais esqueci.

A minha transformação pode ter levado muito tempo (mais de 25 anos) e pode também ter surpreendido muitas pessoas, mas uma coisa eu digo com toda a certeza: eu sempre soube quem eu era.

Meu mundo que era pesado, denso, quase insuportável de carregar, começou a ficar mais leve naquele dia em que eu encontrei ‘alguém’ que pensava igual a mim.

‘O que acabo de dizer não estava em mim, naquela época, como um pensamento claro; mas tudo aquilo vivi em meio a um incêndio de sentimentos, de estranhos impulsos, que me causavam muito mal e, contudo, me enchiam de orgulho.’

Demian, Herman Hesse”

 

Representatividade além da descoberta
Caio Lapetina, 27 anos, São Paulo-SP

“Sinto falta de protagonistas LGBT em livros de gêneros variados, nos quais o foco não seja o momento de descoberta. Histórias em que o LGBT seja só um personagem comum e a sexualidade seja apenas mais um detalhe de sua configuração.

Mesmo sabendo da importância da literatura na descoberta e aceitação da sexualidade, acredito ser importante também a continuidade desse assunto de maneira natural em outras histórias, para que o leitor LGBT sinta que faz parte de todos os outros mundos que a literatura traz.”

 

Dando voz aos escritores
Manuela Neves, 27 anos, Franca-SP

“Eu acredito muito na importância da representatividade na literatura (acredito tanto que a Editora Vira Letra, pela qual sou responsável, hoje publica exclusivamente literatura LGBT).

Mas vou além: há algum tempo, eu li uma reportagem em uma grande revista nacional que falava sobre o surgimento e o crescimento da literatura LGBT nas grandes editoras. Mas essa matéria entrevistou e mostrou somente escritores homens, na sua grande maioria heterossexuais… A reportagem nem sequer citou escritoras mulheres.

Por isso, acho que representatividade, por si só, não é suficiente. O lugar de fala também importa. Afinal, é um pouco contraditório que haja espaço na literatura para personagens LGBTs, mas que não haja espaço para autores LGBTs. É um pouco contraditório que leitores aceitem o personagem sobre o qual estão lendo, mas não aceitem a pessoa ao seu lado – que é igual àquele personagem.

Por outro lado – ainda bem! –, fugindo do padrão das grandes editoras, esse espaço para escritores LGBT tem crescido nas pequenas editoras, nas editoras independentes e ainda mais nas publicações de autores independentes.

Vou terminar citando um trechinho da apresentação, que escrevi em parceria com a escritora Diedra Roiz, do livro [in]contadas:

‘A literatura com temática lésbica pode ser considerada uma literatura marginal – no sentido puro da palavra: aquela que está à margem. E a nossa intenção é de que ela esteja, cada vez mais, ao centro. Assim como sonhamos com o dia em que a mulher lésbica possa existir como protagonista-narradora-sujeito desejante, portadora da voz, do ponto de vista e do discurso.

Seria ideal que não houvesse a necessidade de classificar. Seria ideal um mundo em que pudéssemos ocupar todos os espaços sem a necessidade de rótulos. No entanto, esse mundo ainda é só um ideal e, se não rotulássemos agora, não haveria espaço – para a existência e, muito menos, para a literatura.’

 

Identificação com a literatura
Andreh Santos, 39 anos, Rio de Janeiro

“A primeira vez que li Grandes Sertão Veredas, fiquei bastante interessado no drama de Riobaldo, a sua incompreensível paixão por um Diadorim. Embora fôssemos de tempos, realidades e situações diferentes, me identifiquei com esse aspecto de Riobaldo: seu inconfessável desejo por um ‘igual’. Em várias outras obras que eu lia – Wilde, Woolf, Garcia Lorca, Elizabeth Bishop, Nelson Rodrigues, Caio Fernando Abreu – eu também ‘me’ lia – ali, eu me reconhecia, eu me sentia representado.

Uma das coisas mais belas e fascinantes da leitura é poder se identificar com as histórias, com os personagens, com as situações que você lê. Se a mágica da leitura está nesse reconhecer-se, é importante que a literatura reflita o máximo de realidade possíveis, para alcançar mais pessoas, para representá-las.

Ainda bem que, com o passar dos anos, estamos vendo despontar mais livros com personagens e histórias com temáticas LGBTQI+: desejo demais que essas obras possam se multiplicar e chegar nas mãos de muitas pessoas, para que encontrem representatividade, ou seja, para que – como eu – essas pessoas se encontrem, se ‘leiam’ nas páginas que manuseiam.”

 

A literatura nos momentos difíceis
Sendy Hung, 26 anos, São Paulo

“Sou bissexual e fico triste em dizer que não é comum encontrar personagens Bi na literatura.

Sinto que não somos muito bem representados e o bissexual já é recluso na comunidade, sendo considerado ‘indeciso’, e é assim que muitas vezes são retratados nos livros. Existe esse preconceito dentro da comunidade LGBT e acredito que se continuarem retratando os bissexuais da mesma forma na literatura não haverá mudança.

Os únicos livros que li que têm tanta representatividade LGBT foram os da Cassandra Clare, (essa mulher é demais <3). Além de ter personagens gays e lésbicas, tem também bissexual: Magnus Bane sem dúvidas mostra o que é gostar de pessoas, não homem ou mulher, e sim, pessoas. ❤

Acredito que livros com representatividade LGBT pode ajudar as pessoas que estão passando por um período complicado em sua vida, no medo de assumir ou se preocupar no que as pessoas podem achar ou falar. Eu acho que se tivesse lido livros assim há uns 10 anos atrás, poderia ter sido de grande ajuda.

Os dois mundos de Astrid Jones é um livro que super indico e claro, leiam Cassandra Clare.”

 

Das fics às livrarias
Isa, 27 anos, São Paulo-SP

“Meu primeiro contato com literatura LGBT não foi com livros – mas com fanfiction. Nesse post do blog, já falei bastante sobre por que gosto desse tipo de história e por que elas muitas vezes têm uma temática LGBT. Acabei conhecendo esse universo ao entrar no meu primeiro fandom (Harry Potter, é claro!), cujo material não tinha representatividade canônica. Descobri que as comunidades de fãs se propunham a preencher a lacuna elas mesmas, e até hoje, alguns dos melhores textos LBGT+ que já li estão entre esses trabalhos gratuitos.

Mais tarde, nessas comunidades, fui pegando dicas de leitura, e descobri que havia personagens e histórias LGBT no meu gênero preferido – fantasia. Sofri no inglês para conseguir ler autoras como Ellen Kushner, e desde então, o que já faz mais de uma década, venho acompanhando outras séries e autores do gênero que incluem representatividade em seus livros, e vemos a literatura especulativa começar a se abrir mais para a exploração da sexualidade (o que deveria ser muito mais recorrente, mas isso é outra discussão).

De lá cá o cenário mudou muito, e um gênero em que essa temática surgiu com muita força é a literatura YA (cujas obras me lembram muito das fics que lia quando eu mesma tinha essa faixa etária) – e é lindo ver que hoje há uma oferta muito maior de obras publicadas para esses leitores.

Também tive a oportunidade de publicar um livro que lida com essa temática. Apesar de ser juvenil, eu e minha coautora tentamos abordar a questão por um viés que fugisse da história do/a adolescente questionando a própria sexualidade. Além de normalizar personagens LGBT+ e contar histórias que não necessariamente tenham a sexualidade como foco (que por sinal é a proposta da editora que nos publicou, a Hoo), nossa intenção era trazer representatividade bi, levando em conta que essa letra da sigla muitas vezes é ignorada, quando não vista com muitos estereótipos. Foi um prazer contribuir com esse cenário, e espero vê-lo crescer cada vez mais.”

 

Nossos agradecimentos aos leitores que contribuíram com o post!

E você, como foram suas experiências com representatividade na literatura? Conta pra gente quais são seus livros preferidos e o que você gostaria de ler!

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2 respostas em “[Especial] Dia do orgulho LGBT+

  1. Gostei dos depoimentos. Concordo com todos, principalmente com o Caio Lapetina. O período de saída do armário é muito importante para quem é LGBTQ+ pois todas essas pessoas passam por isso, cedo ou tarde, então eu acredito que ele deva continuar sendo representado. Porém, ser LGBTQ+ vai muito além dessa fase das nossas vidas. Venho me arriscando como escritor independente e os protagonistas que tenho criado estão, em sua maioria, vivendo histórias pós-armário, aventuras, correrias, situações de perigo, etc. Tenho proposto a mim mesmo contar com é a vida depois disso e espero um dia fazer um bom trabalho. Um forte abraço, parabéns pelo blog e obrigado pelo espaço.

    • Fala, Wes! Concordo com você. Claro que as histórias de saída do armário são e continuarão sendo importantes, mas minha esperança é cada vez mais ver personagens LGBT+ em todo tipo de histórias, de todos os gêneros.
      Boa sorte com a escrita e obrigada pelo comentário!

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