Um dos mais originais escritores latino-americanos da atualidade, Rodrigo Fresán (1963) realiza em O fundo do céu seu feito mais radical. Apaixonado por ficção científica, ele cria um romance não linear que homenageia esse gênero. Na história, dois jovens amigos, loucos por sci-fi¸ compartilham também o trágico amor por uma mesma menina, linda e misteriosa. A beleza e a profundidade das frases, aliadas à variedade de vozes narrativas e às oscilações temporais, conduzem o leitor por uma viagem de estranheza hipnótica.
Fonte: Cosac Naify
Três jovens amantes de ficção científica, um livro misterioso, um amor eterno. São esses os elementos principais do romance não linear de Rodrigo Fresán. A história, simples e bela, fala sobre como se conheceram, como se relacionaram e que rumo tomaram as vidas desses três jovens: Isaac Goldman, Ezra Leventhal e a misteriosa garota pela qual eles se apaixonam. A narrativa é primorosa, e dá um toque especial à obra.
O livro é dividido em três partes, cada uma com um narrador diferente. No começo, o fluxo de consciência, com longos parênteses e digressões, é um pouco difícil de entender, mas logo o leitor é imerso nas descrições e comparações dos personagens, que veem o nosso mundo, a nossa realidade, como se fosse um cenário de ficção científica – comparando o amor a um vírus e a religião à relação entre Frankenstein e seu monstro.
À medida que os personagens crescem, deixam de usar essas referências para descrever a magia da infância e às delícias de escrever e ler ficção científica, e passam a aplicar o estilo para descrever os horrores das guerras no final do século XX e início do XXI, as quais presenciam (alguns deles, bem de perto). Já acostumado com a narrativa de Fresán, o leitor percebe o quão absurdos, o quão sci-fi foram todos esses conflitos.
Como o próprio autor explica em nota ao final da obra, O fundo do céu não é um romance de ficção científica, e sim um romance com ficção científica. Mas sua história também traz elementos fantásticos, que a princípio são até difíceis de identificar, de tão acostumados que ficamos com a visão distorcida que os narradores nos apresentam sobre fatos normais. Mas é uma surpresa agradável quando percebemos que alienígenas reais vão integrar a história de Fresán, embora, é claro, sem os grandes cenários de invasão, hostilidade e contatos de tantos graus com que sonharam Isaac e Ezra.
Mais uma característica que aproxima a obra à nossa realidade são as muitas referências, algumas nominais e outras disfarçadas. O autor tem um vasto conhecimento sobre seu gênero favorito e convida o leitor a uma caça a referências. É bem gostoso identificar a qual obra ou personagem de ficção científica, ou mesmo a qual acontecimento histórico os narradores fazem menção com suas descrições fantasiosas e hilárias comparações. 2001: uma odisseia no espaço, Star Trek e a obra de Asimov são alguns dos mencionados, e tenho certeza de que não percebi todos.
A história principal, que é o relacionamento entre os protagonistas, é tratada de forma encantadora. Sem falar de sensualidade, Fresán nos conta a história de um amor puro, sincero e muito forte entre três pessoas. Em momento algum é mencionado ciúme entre eles ou preconceito de outros. A obra trata do poliamor da forma mais respeitosa que pode haver: com naturalidade. Além disso, sua não linearidade e a narrativa tão introspectiva embelezam muito esse romance e, sem dar spoilers, digo que o final do livro dá todo um novo significado à famosa citação de As vantagens de ser invisível: “Nós somos infinitos”.
O fundo do céu é um romance lindo, diferente de qualquer outra obra que eu já li, e também um delicioso presente a todos os fãs de ficção científica.
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O fundo do céu
Autor: Rodrigo Fresán
Tradutor: Antônio Xerxenesky
Editora: Cosac Naify
Ano de publicação: 2014
352 páginas
Citações favoritas:
A infância é o planeta do qual sentimos saudades desde que o abandonamos em jornada a outro. Rumo à nossa suposta maturidade, que, agora sabemos, nunca será como aquele primeiro mundo no qual sonhávamos em crescer, revolucionar os prótons do nosso corpo, vencer as graves leis da gravidade impostas pelos mais velhos e nos afastarmos dali voando, rompendo a barreira dos sons de suas advertências, superando a velocidade das luzes que deveriam ser apagadas, com pontualidade científica, em determinado horário.
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E me pergunto se existirá algo mais sci-fi do que a súbita irrupção do vírus do amor no hospital da juventude, essa presença extraterrestre que, de repente, sem aviso prévio, te possui e te transforma em um cosmonauta em transe.
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De todas as formas de medo, o ser humano criou poucas tão eficazes como a de um telefone tocando no meio da noite.
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Não há nada mais insuportável do que a proximidade súbita de algo que esperamos por tanto tempo: podemos aceitar sua distância, mas a proximidade imprevista se mostra insuportável.
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Os dois me amam tanto, ao mesmo tempo, com um mesmo amor, que não se importariam se eu escolhesse um e não o outro, porque se sentem únicos e unidos, inseparáveis.
Um começa onde o outro termina para que o outro não tenha início nem fim.
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