[Resenha] Vagina: uma biografia

vaginaSinopse:

Este livro de Naomi Wolf é um trabalho de ciência e história cultural que reformula radicalmente a forma pela qual entendemos a vagina e, consequentemente, como entendemos as mulheres, seu desejo sexual e sua criatividade. Ela defende a ideia corajosa, firmada em descobertas científicas, de que o órgão sexual das mulheres não é meramente carne, mas um componente intrínseco do cérebro feminino – e assim tem uma conexão fundamental com a consciência feminina em si.

Fonte: Geração Editorial

O título desse livro foi censurado na loja da Apple. A capa, na Amazon.

A polêmica que ele suscitou demonstra que um livro desse teor precisava mesmo ser escrito.

Como leitora de transporte público, sempre recebo olhares curiosos para a capa dos livros que me acompanham. Esse me rendeu expressões de encorajamento, de malícia, de nojo e de repreensão. Me senti meio contraventora só por lê-lo em público – e isso foi bem empoderador.

Fiquei muito curiosa para colocar minhas mãos nesse livro desde que seu lançamento foi anunciado. O mito da beleza, o primeiro que li dessa autora, tem um tom jornalístico de denúncia que me despertou para o feminismo e é uma obra icônica dentro do movimento. O respeito pela autora, Naomi Wolf, foi o principal gatilho para o meu desejo de adquirir essa outra obra.

Acabei demorando mais de um ano para comprá-lo porque me impus o desafio de parar de comprar livros, por diversas razões. Mas como precisei de alguns para a faculdade (na verdade acho bem impressionante como conseguir manter meu desafio durante meu primeiro ano na Letras) e o desejo de lê-lo persistiu por esses dozes meses, resolvi ceder à tentação. E não me arrependo.

Não digo que o livro não tem problemas. Para mim, o principal deles foi ter abordado a questão histórica em apenas uma das quatro partes. Talvez tenha sido ingenuidade minha, mas eu esperava que Wolf aproveitasse perspectivas históricas para discutir a vagina (e é importante mencionar que nesse livro “vagina” não se refere apenas ao canal vaginal, mas também à vulva) enquanto elemento social e as dificuldades de possuir uma.

Ouvi muitos comentários chamando o livro de heteronormativo. Como Wolf parte de experiências pessoais para abordar tópicos específicos e sendo ela cis e heterossexual, acredito que qualquer tentativa de descrever as relações de mulheres trans ou homossexuais com suas vaginas (ou com a ausência delas) poderia resultar em descrições superficiais ou em suposições inverídicas. No começo do livro ela comenta que não desconsidera a homossexualidade feminina, mas acredita “que as respostas sexuais femininas e a conexão mente-corpo feminina sejam tão complexas e tão dignas de atenção, que não creio que a abordagem politicamente correta de juntar todas as experiências femininas faça justiça a essas variações”. Mas não me lembro de ela ter mencionado transexualidade nenhuma vez.

A premissa do livro veio de uma lesão no nervo pélvico de Wolf, descoberta por causa da falta de orgasmos mistos (clitoriano/vaginal), que para ela eram uma experiência praticamente transcendental, a qual lhe permitia ver o mundo com cores mais intensas e perceber conexões mais facilmente. A ausência dessas sensações (e seus efeitos emocionais e psicológicos no cotidiano de Wolf) a fez cogitar um entrelaçamento mais profundo do que o comumente relatado entre vagina e cérebro. A princípio a premissa não me pareceu inovadora: o sistema reprodutivo lança hormônios que influenciam o cérebro e vice-versa. A extensa enervação da região manda sinais para o Sistema Nervoso Central continuamente. Mas quantas vezes o nervo pélvico é mencionado em aulas de educação sexual? Mesmo me considerando uma pessoa com razoável conhecimento fisiológico, algumas informações apresentadas foram novas para mim – como a vasta diversidade de ramificações únicas que as mulheres (ao contrário dos homens) podem ter. A parte mais inédita da teoria de Wolf é a relação entre a vagina e a criatividade e o bem-estar femininos, que se dá a curto e a longo prazo e de maneira recíproca. Além de uma vida sexual saudável ajudar na criatividade, quando uma mulher exerce seus talentos, pode ter respostas fisiológicas de excitação. Há relatos de mulheres que tiveram orgasmos enquanto atuavam e pintavam.

A autora é bem didática ao falar de fisiologia e anatomia – o que é muito positivo para o público leigo. Para mim isso foi um pouco cansativo por causa de algumas repetições, como as muitas vezes em que ela explica os efeitos da oxitocina, mas acredito que isso venha da minha familiaridade de ex-futura-farmacêutica com o tema.

Na minha parte favorita, “História: conquista e controle”, ela começa falando de trauma vaginal, que inclui (mas não se resume a) estupro. Ela o aborda como estratégia de guerra, quando praticado de maneira sistemática, que facilita o controle a subjugação não apenas pela esfera psicológica, mas também pelos efeitos fisiológicos. Foi uma parte muito delicada e impactante da minha leitura, e pode conter gatilhos para pessoas traumatizadas.

A seguir, o livro menciona o caráter sagrado inicial da vagina nas religiões e a transição para o status profano – ambos reconhecendo a força da sexualidade feminina. A análise histórica segue, citando autores clássicos da cristandade, Shakespeare (e o curioso e instigante trabalho da Dra. Emma Rees, Cordelias Can’t), Freud e letras de blues – cujas músicas não pude deixar de ouvir. As referências são muito ricas e fiquei com vontade de ler mais e mais sobre o assunto. Durante a leitura dessa parte, recomendei e prometi emprestar o livro para muitas amigas.

A parte seguinte aborda a linguagem relacionada à vagina. Achei bem interessante a menção que ela faz a enunciados performativos, falando dos efeitos físicos que as referências à vagina e ao sexo têm no corpo feminino. Ela menciona piadas e representações presentes na pornografia. Gostei muito de uma comparação feita entre um texto erótico de Henry Miller e um de Anaïs Nin (que, além de contemporâneos, eram amantes).

Ao longo de todo o livro, Wolf usa termos como “deusa” e “dança da deusa” e em todas as ocorrências eu torci um pouco o nariz. Fiquei incomodada com a aura mística que eles carregam e o com tom ingênuo e esotérico que associo a eles. Isso me induziu a uma reflexão sobre a ridicularização constante da ideia de um sagrado feminino. Embora ainda não seja fã do uso desses termos, fiquei um pouco mais empática.

A última parte foi a que menos me agradou. Possui um tom de autoajuda, e implica, de maneira menos sutil que o resto do livro, que a felicidade sexual de uma mulher hétero depende de maneira muito intensa de um homem – o que para mim soa como um retrocesso imenso. Acho razoável dizer que a felicidade ou completude sexual seja parcialmente mediada por quem uma pessoa sente atração e com quem se relaciona. Mas a ideia passada é de uma impotência das mulheres, que precisariam de um homem para liberar os incríveis poderes de sua sexualidade. Eu acredito que o sujeito agente deva ser a mulher. Suponho que seja por esse tipo de mensagem que muitas leitoras dessa obra questionaram se a autora pode mesmo ser considerada feminista – o que me parece uma desconsideração de todo o seu trabalho anterior. Ela pode ter feito um desserviço pontual, mas acho um erro não deve deletá-la das bibliografias feministas.

Essa parte inclui dicas para que um homem satisfaça sua parceira, incluindo clássicos como acender velas e dar flores, mas dessa vez com confirmações científicas de sugestões da filosofia tântrica. Essa mudança brusca de público-alvo me irritou um bocado e deixei de ter a sensação de estar lendo um texto jornalístico. Wolf perdeu aí a cumplicidade que constrói com as leitoras ao relatar suas experiências e descrever situações comuns a muitas mulheres.

Até entendo a intenção da autora, que parece torcer para que todas as mulheres possam exercer plenamente seu sujeito sexual e espera que, para isso, contem com a boa vontade e paciência de seus parceiros. Mas uma boa intenção não basta.

Apesar desse final, a leitura foi muito prazerosa para mim. Acho que mesmo dele é possível extrair algumas informações interessantes. Recomendo a obra, mas sempre com um olhar crítico. Não devemos esquecê-lo nem com os autores mais canônicos.

*

Vagina: uma biografia
Autora: Naomi Wolf
Editora: Geração Editorial
Tradutora: Renata S. Laureano
Ano desta edição: 2013
367 páginas  

Citações favoritas

A habilidade especial da vagina para servir como um Rorschach cultural – refletindo a atração que os outros sentem por ela assim como as ansiedades frequentemente contraditórias – estreou com o início do período moderno. A habilidade da vagina de significar paraíso, inferno e absolutamente “nada” – a suposta ausência existencial feminina – foi estabelecida no Ocidente por volta dessa época.

*

Se uma mulher é sexualmente estressada [aqui ela se refere às menções degradantes e ofensivas a vaginas e sexo que ocorrem frequentemente em ambientes de trabalho] além de certo ponto, com o tempo, outras partes de sua vida passam a se desviar de seu rumo […], isso inibe a liberação da dopamina que receberia se não fosse por isso, que, por sua vez, evita também a liberação no cérebro de outras substâncias químicas que a fariam confiante, criativa, esperançosa, focada – e efetiva, o que é relevante se ela está competindo acadêmica ou profissionalmente com alguém. Tendo essa dinâmica em mente, a frase “vou fodê-la” ganha um outro significado.

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E por que muitas mulheres que nem acreditam nesse tipo de blá-blá-blá de Nova Era reagem com orgasmos transformadores, ou têm orgasmos pela primeira vez depois de serem abordadas dessa forma? Que tipo de mágica é produzida por esse título honorífico meio obscuro e ligeiramente ridículo [deusa]? Será que ele opera, eu me pergunto, em algum nível fisiológico?

5 respostas em “[Resenha] Vagina: uma biografia

  1. Que. Livro. Polêmico.
    Então quer dizer que a gente já pode tornar jargão o que falamos para os homens só que com sentido feminino? “Pare de pensar com a vagina”?

    Não curti essa duplicidade da autora, até parece que pra mulher se sentir plena e realizada sexualmente ela PRECISA de um homem. Oi?! Já esqueceram do depoimento da velhinha na novela “Laços de Família”?

    http://www.ummetroemeiodelivros.com

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