[Resenha] A mulher que chora

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choraSinopse:

Os habitantes da aldeia do Pêssego, no sopé da montanha do Norte, são proibidos de chorar. Para manter os olhos sempre secos, a órfã Binu aprende a chorar pelos cabelos, e é isso que ela faz quando seu jovem marido é levado à montanha da Grande Andorinha para trabalhar na construção da Muralha da China.A saga de Binu, que percorre centenas de quilômetros para entregar um casaco a seu amado, é um mito milenar chinês, transmitido oralmente de geração em geração e recontado aqui por Su Tong.

Fonte: Livraria Cultura

“Em certo sentido, os mitos são realidades que ganham os céus; quando realidades difíceis ganham os céus, elas podem continuar difíceis, mas proporcionam a quem as vive a oportunidade de, por um breve instante, escapar: uma escapulida bem-vinda e necessária.” Assim diz o autor Su Tong no prefácio (sensacional, aliás) de A mulher que chora, em inglês Binu and the Great Wall. O livro reconta um mito chinês de 2 mil anos sobre uma mulher que chorou até desmoronar parte da muralha da China.

Eu não conhecia o mito, e resolvi não procurá-lo antes de ler a obra. Foi uma decisão sábia: a história “original” (na medida em que se pode chamar um mito de “original”) revela como tudo acaba, e a leitura teria sido uma experiência diversa (se quiser conhecê-la, clique aqui). Além disso, o mito engloba muito mais do que o recorte feito por Su Tong, que parece ter se focado no “meio” da história: a parte em que a protagonista, Binu, descobre que o marido foi levado para realizar trabalhos forçados na construção da grande muralha e decide ir atrás dele para entregar-lhe um casaco de inverno.

Até onde pude descobrir, todo o resto é criação de Su Tong – por exemplo, o fato de os habitantes da “aldeia do Pêssego”, de onde vem Binu, serem proibidos de chorar, de modo que encontraram outros modos de expulsar lágrimas: pelas orelhas, pelos lábios, pelos seios. Binu chora pelos cabelos, mas não teve tempo de aprender com a mãe como fazer isso direito, de modo que suas lágrimas se espalham descontroladamente, inundando as redondezas, como se uma nuvem de chuva a acompanhasse. Isso a torna uma pária na aldeia, e do início ao fim do livro, quase como se estivesse sob uma maldição, praticamente todos que cruzam o seu caminho vão maltratá-la, ridicularizá-la ou desprezá-la.

Outro aspecto interessante é o fato de todos os habitantes da aldeia do Pêssego terem sido, na vida passada, algum elemento ou ser da natureza (os meninos renascem de seres do céu; as meninas, de coisas terrenas). Binu era uma cabaça – e, depois que ouve uma previsão de que morrerá na viagem, leva uma consigo e pretende enterrá-la, para que possa renascer novamente.

A relação com a natureza é muito forte em todo o livro: os elementos naturais são todos dotados de vida, mas, embora haja sapos falantes no caminho, nem sempre essa força vital aparece de modo necessariamente explícito – e sim como uma conexão forte entre pessoas, plantas e animais, de modo que todos os lugares têm nomes de elementos naturais e, num episódio memorável, Binu é capturada por um grupo de garotos que agem como cervos selvagens (o porquê disso foi uma das minhas partes preferidas da obra).

Nesse mundo, as coisas da natureza parecem ter vontade própria – ou pelo menos é o que a narrativa, muito poética em certos trechos, dá a entender. Um cenário realmente mítico, em que a magia perpassa o mundo. Fantasmas, por exemplo, são considerados comuns, e Binu até conversa com um deles (isso quando não é confundida por um!).

Mas essa magia não implica em uma realidade menos cruel – pelo contrário, a China de Binu é lugar de personagens gananciosos, cruéis ou simplesmente indiferentes. Por exemplo, quando se fala de alguns trabalhadores fujões que foram capturados e enterrados vivos, as pessoas comentavam apenas que, “com todos aqueles cadáveres lá, era provável que as amoreiras da outra encosta fossem ficar altas e frondosas no ano seguinte”. Todos estão sofrendo, passando fome, perdendo entes queridos – não há espaço para compaixão por uma mulher em busca do marido.

O livro é bem episódico, constituindo-se de etapas da viagem de Binu e das paradas que faz. É um tipo de narrativa diferente do que estamos acostumados, possivelmente porque segue outras estruturas literárias (embora eu não conheça as tradições narrativas chinesas o suficiente pra afirmar com certeza). A questão é que não é um romance “arrumadinho”, em que todas as pontas são fechadas ao final – o que interessa é a história de perseverança de Binu. Demorei um pouco pra me acostumar, mas da metade pra frente comecei a sentir melhor o estilo. Binu, aliás, tem uma personalidade forte (o que nem sempre é o caso com contos de fadas, “originais” ou recontados); sua missão faz o leitor continuar virando as páginas, e tudo pelo que passa nos faz torcer por ela.

Não amei o livro loucamente, mas foi uma leitura bem diferente e agradável. A escrita de modo geral é bastante direta e simples, mas, como disse, há alguns momentos muito bonitos. O livro consegue transportar o leitor para um cenário de mito e magia mantendo um pé na realidade cruel, e recomendo pra quem se interessar pela cultura chinesa.

*

A mulher que chora
Autor: Su Tong
Tradutora: Fernanda Abreu
Editora: Companhia das Letras
Ano desta edição: 2010
250 páginas

 

Citações preferidas

“Eu não vou ajudar você a fazer nada”, disse o menino, com desprezo. “Somente um tolo acreditaria em você. Tudo de que você sabe falar é da próxima vida. O que a próxima vida tem de tão maravilhoso? Esta vida aqui já foi ruim o bastante. Se alguma mulher estúpida ousar me dar à luz da próxima vez, vou fazer o possível para rastejar de volta para dentro da barriga dela e me recusar a sair.”

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Todos concordavam que Shaoqi possuía um talento excepcional […] Mas seu belo rosto, seu físico alto e forte e o fogo do ódio que ardia dentro dele havia anos constituíam seus maiores empecilhos. Um assassino pode ser feio, porém não deve ser bonito. Um assassino pode ser carinhoso, mas a raiva é um tabu.

*

“A chuva deixa a terra úmida. O rio ajuda as pessoas, a água das valas nutre as plantas, e a que enche as poças faz crescer os peixes e camarões. Somente as lágrimas humanas são inúteis; são as coisas mais insignificantes que há no mundo.”

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