A vida de H.P. Lovecraft – o grande mestre do terror, de S.T. Joshi (principal especialista mundial em Lovecraft), é a biografia definitiva daquele que, nas palavras de Stephen King, “permanece insuperado como o maior expoente do horror clássico”.
Fonte: Hedra
Em um determinado ponto de A vida de H. P. Lovecraft, S. T. Joshi discute a relação entre o seu biografado e o escritor Robert Erwin Howard, criador de Conan. Sobre ele, Joshi escreve: “O próprio Howard é, em muitos aspectos, mais interessante que seus contos” (p. 350). Infelizmente, o mesmo não podemos falar sobre Lovecraft, cujos contos nos inquietam por seus temas obscuros e niilistas, nos assustam por sua narrativa tensa e muitas vezes densa, e nos surpreendem por uma riqueza estilística que facilmente o aloca como um dos grandes prosadores do século vinte. Por outro, não podemos afirmar que ele próprio ou sua vida “seja mais interessante que seus contos”. Eis aqui, um dos principais problemas de A vida de H. P. Lovecraft.
Joshi é um dos maiores especialistas na vida e na obra do escritor norte-americano, tendo outras publicações tanto sobre a ficção de Lovecraft como também sobre sua acidentada recepção no decorrer do século vinte. Tal background crítico e historicista resulta numa cuidadosa reunião de informações que documentam os principais fatos da vida de Lovecraft, sua correspondência pessoal e seus dramas familiares, além de detalhar sua relação com as publicações pulp de horror e fantasia do início do século passado, em especial com a revista literária Weird Tales, na qual Lovecraft publicou muitos de seus textos. Todavia, tais apontamentos, por mais esclarecedores que sejam, suprimem os rápidos – e dignos de nota pela objetividade e apontamento crítico – comentários sobre sua obra, justamente o que poderia interessar aos leitores e admiradores do obscuro escritor de Providence.
Quando leio a biografia de um escritor, sempre espero que o autor consiga costurar adequadamente a vida à obra, fazendo com que elementos daquela iluminem aquilo que admiramos nesta. Joshi raramente faz isso, o que é uma pena. Assim, temos de um lado comentários brilhantes, porém apenas ocasionais, sobre uma obra ficcional digna de nota, e do outro páginas e páginas que detalham uma vida de reclusão e silêncio, interrompida apenas por raras e admiráveis relações por correspondência. Ora, sabemos que paisagens externas raramente são tão impressionantes quanto cenários imaginativos, mas gostaríamos de ver mais daquilo que adoramos em Lovecraft na sua, até a presente data, mais respeitada biografia, que chega ao Brasil em edição da Hedra com tradução de Bruno Gambarotto.
Sobre o livro, mais uma vez, a Hedra está de parabéns. A capa desperta a atenção por mesclar uma das mais conhecidas fotografias de Lovecraft com uma criatura tentacular assustadora. Como metáfora do posto acima, é como se os editores estivessem pensando em tudo aquilo que a arte de Lovecraft cria na mente de seus leitores: tentáculos ameaçadores e pegajosos que nos fazem suspeitar dos lugares escuros, das vastidões cósmicas, dos insuspeitos momentos em que o véu de realidade criado pela nossa controladora mente racional parece ruir, pondo a nu nossa solidão, nosso desespero, nossa pequenez diante de um universo surdo, mudo e em infinda expansão.
No decorrer dos seus vinte capítulos, que vão do nascimento à morte, finalizado por um epílogo que brevemente traça a história da recepção da obra de Lovecraft, Joshi confronta admiravelmente tópicos não muito populares da vida de seu biografado. Entre eles, a conflituosa relação com a mãe e a morte misteriosa do pai, assim como suas primeiras influências literárias: de um lado o mundo clássico greco-latino e do outro as exóticas paragens orientais. Também são abordados com rigor analítico suas opiniões racistas e sua problemática simpatia por regimes totalitários, entre eles o nacional-socialismo alemão e o stalinismo italiano. Também ganha espaço, como não poderia deixar de ser, o casamento ruidoso e fracassado de Lovecraft com Sonia Greene e os malfadados anos em Nova York, nos quais o escritor vivenciou não apenas ocasiões de alegria com amigos como também situações de desesperante necessidade material, o que o fez voltar a Providence, onde permaneceu até o final de sua vida.
Do ponto de vista estilístico, há uma qualidade marcante na escrita de Joshi, a despeito da crítica supracitada: o biógrafo escolhe momentos precisos para encerrar seus capítulos, o que faz com que o leitor tenha vontade de começar o próximo, virando rapidamente as páginas. Exemplo disso é a passagem que encerra o oitavo capítulo: “Basta dizer que doze ou mais contos que Lovecraft escreveu em 1920 – mais do que ele escreveria em qualquer outro ano de sua vida – apontam uma guinada definitiva em seus horizontes estéticos. Lovecraft ainda não sabia, mas havia encontrado o trabalho de sua vida.”
Do resto, trata-se de uma leitura para grandes admiradores de Lovecraft, mas que dificilmente atrairá novos leitores à sua obra, o que muitas biografias fazem com sucesso. No meu caso, voltei correndo às belas edições da Hedra dedicadas à obra do autor, cuidadosamente editadas não apenas por trazerem os textos ficcionais em si como também pelas excelentes traduções de Guilherme da Silva Braga, que sempre brinda o leitor com traduções de cartas ou textos do próprio Lovecraft. Neste caso, apesar de louvável, a publicação da “vida” deixa bastante a desejar, em conteúdo não em edição, à publicação de sua “obra”.
Enquanto mergulhamos nela, as ramagens fibrosas pululam abaixo da superfície da nossa consciência, levando-nos a cogitar se a racionalidade não é uma máscara química criada por nossos cérebros primitivos para tornar o monstruoso vazio da existência terrestre minimamente suportável. Tal é a capacidade de Lovecraft de nos fazer olhar por cima do nosso ombro, quando a madruga anuncia, através do silêncio e da escuridão, a chegada da dormência, do esquecimento e dos pesadelos.
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A vida de H. P. Lovecraft
Autor: S. T. Joshi
Tradutor: Bruno Gambarotto
Ano de publicação: 1996
Ano de publicação: 2014
Editora: Hedra
448 páginas
Citações favoritas
De “The Outsider” – que muitos acreditam ser o grande conto de Lovecraft – é difícil tratar em poucas linhas. De fato, seu retrato de um estranho indivíduo que cava um buraco para dentro do que parece ser um castelo subterrâneo e, entrando em uma casa amplamente iluminada, descobre que ele próprio é o terrível e decrépito monstro que tem atormentado um grupo de convivas é um exemplo tocante de “as consequências acachapantes do autoconhecimento para a alma”; mas seu uso excessivo da dicção de Poe faz questionar se se trata de mais do que um exercício de imitação acrítica.
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Muitos têm conjecturado sobre as influências por trás do conto, mais especificamente a imagem culminante da entidade que vê a si mesma num espelho. A sugestão mais plausível, creio eu, é que Lovecraft toma a cena de empréstimo de Frankenstein, de Mary Shelley, quando o monstro vê pela primeira vez a si mesmo num lago. É, contudo, hora de examinar o problema do caráter autobiográfico da história. Lê-se na abertura: “Infeliz é aquele a quem as memórias da infância trazem apenas medo e tristeza”. Uma das observações finais do outsider – “Sempre soube que sou um outsider; um estranho neste século e entre aqueles que ainda são homens” – tem sido tomada, talvez não injustamente, como prototípica de toda a vida de Lovecraft, a vida de um “estranho recluso” que desejava estar intelectual, estética e espiritualmente no porto seguro racional do século XVIII. Acho que já sabemos o suficiente sobre Lovecraft para saber que tal interpretação exagera o caso.
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Essas são palavras não pouco interessantes. A despeito de sua afirmação de independência intelectual de sua época, está claro que Lovecraft absorveu o suficiente da crença vitoriana em “heroísmo, nobreza e sacrifício” para ser sacudido pela revelação, via Freud e Nietzsche, de sua “base prosaica e sórdida”. Temporariamente, ele adotou uma espécie de estética decadentista que lhe permitia que essas ilusões se mantivessem de algum modo precisamente pelo reconhecimento de sua artificialidade. Não podemos recobrar a feliz ignorância da nossa trivialidade na estrutura cósmica das coisas e no vazio de nossos elevados ideais que permitiram às eras anteriores criar a ilusão do significado dos assuntos dos homens. A solução – por ora – é “adorar mais uma vez a música e o colorido da linguagem divina e granjear o prazer divino dessas combinações de idéias e fantasias que sabemos serem artificiais”. Se há uma fonte literária para qualquer uma dessas perspectivas, é Oscar Wilde. Não penso que Wilde tenha gerado a perspectiva de Lovecraft; contudo, Lovecraft encontrou em Wilde um representante bastante articulado para o tipo de perspectiva que ele nebulosamente começa a adotar.
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Já não precisamos repisar todo esse assunto. Não há luta cósmica do “bem contra o mal” nos contos de Lovecraft; não há “deuses mais velhos” cuja missão seja a de proteger a humanidade dos “malignos” mais velhos; os “mais velhos” não foram “expulsos” por ninguém e não ficaram (exceto Cthulhu) “presos” na terra ou em qualquer outro lugar. A visão de Lovecraft não é tão positiva: a humanidade simplesmente não está no centro do cosmos, e não há quem nos ajude contra as entidades que de tempos em tempos desceram à terra causando estragos; na verdade, os deuses do mito não são de fato deuses, mas apenas extraterrestres que ocasionalmente manipulam seus seguidores humanos em benefício próprio. É aqui que finalmente nos aproximamos do coração do mito de Lovecraft. O que Lovecraft estava realmente fazendo era criar (como David E. Schultz colocou de forma bastante feliz) uma antimitologia.
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O que ele não diz aqui, contudo, é que uma de suas principais motivações para essa correspondência foi simplesmente a gentileza. Lovecraft respondeu a quase todas as cartas que recebeu, e geralmente respondia em poucos dias. Ele sentia que era sua obrigação como cavalheiro fazê-lo. Foi assim que estabeleceu forte laços de amizade com colegas distantes, muitos dos quais nunca o encontraram pessoalmente; e foi por isso que se tornou, durante sua vida e depois, uma figura reverenciada nos pequenos universos do jornalismo amador e da ficção fantástica.
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