[Resenha] Deathless

Esta resenha foi feita com base na edição em inglês da St Martin Press. Todas as traduções de trechos foram feitas por mim.

deathless Sinopse:

Um homem bonito chega à casa de Marya Morevna, em São Petersburgo. Ele é Koshei, o Tsar da Vida, e é o destino de Marya. Koshei a leva ao seu reino, onde ela se torna uma guerreira em sua batalha infinita contra o próprio irmão dele, o Tsar da Morte. Deathless é uma história intensa de vida e morte, amor e poder, antigas lembranças, mitos profundos e magia negra, que tem como cenário a Rússia do século XX.

Fonte: Amazon

 

É sempre legal quando você lê a sinopse de um livro e ele parecia ter sido escrito pra você. Deathless é releitura de um conto de fadas russo, e inclui vários personagens e criaturas do folclore eslavo. Já adianto que não amei o livro, mas acho que vale a pena comentar os pontos fortes da obra.

Eu tinha uma vaga lembrança do conto original, chamado “A morte de Koshei o Imortal”, e talvez seja mais fácil apresentá-lo primeiro:

Depois da morte de seus pais e do casamento de suas irmãs, Ivan Tsarevitch, um dos principais heróis do folclore russo, sai de sua casa e conhece Marya Morevna, a bela princesa guerreira, com a qual se casa. Depois de um tempo, ela anuncia que está indo para a guerra e diz a Ivan para não abrir a porta do calabouço no castelo onde eles vivem, enquanto ela estiver fora. Movido pela curiosidade de saber o que há no calabouço, ele abre a porta, logo após a partida de Marya. Lá, encontra Koschei, acorrentado e magro. Koschei pede a Ivan para trazer-lhe um pouco de água, no que é atendido por Ivan. Após Koschei beber doze baldes de água, ele recupera seus poderes mágicos, rompe as correntes e desaparece. Logo depois, Ivan descobre que Koschei sequestrou Marya Morevna. Ivan o persegue e, quando o encontra, Koschei pede para o herói deixá-lo partir. Mas Ivan não desiste e Koschei o mata, colocando os seus restos mortais num barril e jogando-os no mar. Ivan é ressuscitado pelos maridos de suas irmãs, magos poderosos, que podem se transformar em aves de rapina. Informado que Koschei tem um cavalo mágico, Ivan parte em procura da maga Baba Yaga para conseguir um cavalo semelhante, sem o qual ele não seria capaz de derrotar Koschei. Depois que Ivan encontra Yaga, ele recebe o cavalo e luta com Koschei, o mata e queima seu corpo. Marya Morevna retorna para Ivan que celebra a sua vitória com as suas irmãs e seus cunhados.

O livro adota algumas partes dessa história e ignora outras, e o faz criando uma história bastante original, que é um de seus pontos fortes. A história se passa durante os anos 1930 e a Segunda Guerra, e o começo do livro tem ares de realismo mágico: Marya Morevna é uma garota curiosa que não se adequa muito bem ao regime soviético. Um dia, assiste de sua janela quando um pássaro se transforma num homem e vem pedir sua irmã em casamento, o que se repete mais duas vezes com suas outras irmãs. A garota fica obcecada com a magia que descobriu existir no mundo, mas à medida que cresce e nenhum pássaro-noivo aparece para ela mesma, começa a ficar preocupada e se sente cada vez mais deslocada das pessoas ao seu redor.

A autora apresenta toques de realidade lado a lado com o mais puro folclore: por exemplo, a casa de Marya é coletivizada e doze famílias passam a viver lá, até que um belo dia Marya encontra os domoviye – espíritos de casa eslavos. E aí começa a fusão de modernidade e folclore que vai caracterizar todo o livro, pois os domoviye se organizam num conselho comunal como os do regime soviético, como se tivessem que se “adaptar aos tempos”. Esse tipo de coisa vai acontecer com outras criaturas (há um encontro com um dragão que é fenomenal) e é muito interessante, pois dá nova vida a personagens antiquíssimos, tornando-os mais verossímeis ao passar a impressão de que sobreviveram e poderiam sobreviver a tudo que nós, humanos, fizermos com o mundo.

Pois bem, um dia chega um noivo para Marya – é Koshei, e a garota que esperou toda a vida que a magia se manifestasse para ela novamente vai com ele para seu país mágico. Marya descobre que há sete Tsar e Tsarinas que comandam o mundo, entre eles os Tsars da Vida e da Morte, que estão permanentemente em guerra. Koshei o Imortal é justamente o Tsar da Vida, e tudo em seu país tem vida – de um jeito um tanto bizarro e assustador, como paredes feitas de pele, fontes de sangue e coisas afins.

Antes de se transformar em sua esposa, Marya tem que receber a aprovação de Baba Yaga, uma personagem fantástica do folclore eslavo que aparece em vários contos de fada e que não decepciona neste livro. Mas Marya também faz descobertas perturbadoras, como o fato de ser apenas a última de uma longa série de mulheres escolhidas por Koshei e que, depois que o traíram e abandonaram, foram escravizadas. Baba Yaga a avisa: histórias são repetitivas, só sobrevivem porque sempre ocorrem do mesmo jeito, e o destino de Marya será o mesmo que o das outras. Boa parte do livro se passa nessa tensão de saber se Marya vai conseguir quebrar o ciclo, enquanto a guerra entre o Tsar da Vida e o da Morte se acirra, e tanto o mundo mágico como o real escorregam para um banho de sangue.

Uma das qualidades da obra é, sem dúvida, a prosa, que é maravilhosamente poética – Valente tem alguns livros de poesia, o que não surpreende. Suas descrições são muito bonitas e ricas, mergulhando o leitor na cultura eslava, o que eu adorei. A autora também claramente domina a estrutura dos contos de fada, porque a narrativa muitas vezes adota estratégias dessas histórias, como repetições (em especial com o número 3). Mas isso funciona mais no início do que no fim do livro, pois a trama se torna mais aprofundada e séria do que a de um conto de fadas. Também achei que o livro em si é longo demais – não há muita ação e não me envolvi tanto com a protagonista (Marya passa por muitas transformações internas, mas muitas vezes “fora de cena”, o que acho que prejudicou a conexão com a personagem), e os personagens da segunda metade do livro são bem menos intrigantes que os da primeira.

Um dos aspectos mais interessantes, e ao mesmo tempo problemáticos, é o relacionamento de Marya e Koshei, que é muito e explicitamente erótico e se baseia na questão do poder: desde o início, vários personagens avisam Marya de que casamento é uma batalha, apenas uma luta pra ver quem domina o outro. A princípio, esse papel cabe a Koshei, que diz querer acabar com a “vontade” dela – o que faz –, mas depois Marya resolve virar o jogo. É intrigante, mas apenas se você olhar como uma relação extremamente distorcida – o que não ocorre no livro, que parece romantizar a situação. Fiquei surpresa, e não muito positivamente, com essa alta carga erótica da trama; além disso, essa história de que casamento é apenas uma luta de poder é bastante questionável, pra começar. Outra coisa que não fica muito clara é em quê Marya difere das outras candidatas/ex-esposas: ela é especial simplesmente por ser a protagonista, e não se sabe muito bem por que Koshei se encanta tanto por ela.

Enfim, é um livro pelo qual não me apaixonei, mas que ganha pontos por conseguir recriar um conto de fadas de modo bastante original – o que eu gostaria de ver mais por aí.

*

Deathless
Autora: Catherynne M. Valente
Editora: St Martin Press
Ano de publicação: 2011
352 páginas

 

Citações preferidas

Marya sentia que ela tinha um segredo, um segredo muito bom, e que se cuidasse dele, o segredo cuidaria dela. Ela vira o mundo nu, pego de surpresa. Suas irmãs tinham sido resgatadas da cidade do jeito como garotas bonitas muitas vezes eram resgatadas de coisas desagradáveis, mas elas não sabiam o que seus maridos eram de verdade. Não tinham informações vitais. Marya logo viu que isso resultava num casamento desigual, e ela não queria nem um pouco disso.

*

Não há professor melhor da dura necessidade do que o azar.

*

Os homens, eles não sentem nada como o que precisamos suportar. Você tem que abrir espaço em si para ele, e é o mesmo em uma casa do que em um corpo. Não se esqueça de manter alguns cômodos para si mesma, trancados a sete chaves.

*

Para chegar ao país do Tsar da Vida, que está tanto impossivelmente perto como irremediavelmente distante, você não deve desejar chegar até ele, mas aproximar-se furtivamente, de viés. O melhor é estar doente, sofrendo de uma febre, um delírio. No pico da doença, quando a carne ameaçada desperta, toda vermelhidão e fluido e calor, é mais fácil cair no país que você busca.

Claro, é igualmente fácil, desse modo, chegar ao país do Tsar da Morte. Viagens nunca são livres de risco.

*

Eu não a deixarei falar porque a amo, e quando você ama alguém, não os deixa contar histórias de guerra. Uma história de guerra é um espaço vazio. De um lado está o antes e do outro está o depois, e o que está dentro pertence apenas aos mortos.

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3 respostas em “[Resenha] Deathless

  1. Oi, Isaaaa

    adoro quando vocês trazem esses livros de culturas não tão comentadas no mundo literário. Fiquei bem curiosa com o livro, principalmente por ver – pelas frases que você colocou na resenha – que realmente a narrativa é bem poética. Amo narrativas assim, mas não sei se curtiria tanto a história. Fica a dúvida no ar até eu me aventurar a lê-lo,né? hahahah

    Ah! O conto de fadas original me lembrou um pouco do mito grego A Caixa de Pandora, acho que os dois passam o mesmo tipo de mensagem que se resume com o dito popular “a curiosidade matou o gato” :p

    Beijos!
    http://www.ummetroemeiodelivros.com

    • Oi, Babi! Fico feliz que vc aprecia esses livros mais desconhecidos, haha. É um pouco caixa de Pandora… e um pouco um Barba Azul inverso, né? Bem interessante!
      Realmente não sei se recomendo tanto este… mas já que vc comentou sobre narrativas poéticas, já leu a resenha de A canção de Aquiles? rs eu aproveito todas as oportunidades pra recomendar esse livro.

      Beijão!

  2. Pingback: [Especial] Livros favoritos de 2015 | Sem Serifa

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