Sinopse:
Um livro. Sete contos de fadas para adultos. Novos contos de fadas, não releituras dos clássicos, brincando com seus elementos tradicionais: príncipes e princesas, feiticeiras (boas e más), maldições, bosques misteriosos, feras falantes. Mas com uma roupagem adulta, sem censura nem maniqueísmo. Nada de lutas do bem contra o mal: a dualidade está presente em todos e é dentro de cada um de nós que a grande batalha ocorre. Estas narrativas procuram resgatar a essência dos contos de fadas originais, contados ao pé do fogo numa época em que não havia divisão entre “histórias para adultos” e “histórias para crianças”.
Fonte: Blog do Reino das Névoas
Li esse livro pela primeira vez por volta de 2011 por recomendação e empréstimo de uma amiga (Obrigada, Fe!) e desde então quis ter um exemplar para mim. Não é segredo que adoro contos de fadas, tanto pela atmosfera onírica como pelas aventuras e lições nos quais culminam. Eu assistia A Bela e a Fera todos os dias depois da escola. Ao mesmo tempo, queria ser a Mulan, porque ela foi a mulher que salvou a China.
Então o primeiro ponto que me agradou no livro e que quero destacar é: as protagonistas femininas são fortes e complexas. E, em boa parte dos contos, elas de fato os protagonizam. Inclusive dei um exemplar da obra para uma amiga que ficou revoltada ao descobrir que, quando os contos de fada foram passados para o papel (pela parcela letrada da população, ou seja: homens), as mulheres deixaram de ter papéis ativos na histórias, e as que os tinham foram substituídas por homens. Reino das Névoas é um livro no qual as mulheres salvam a si mesmas, a seus maridos e a seus reinos.
Além de resgatar o aspecto ativo das personagens femininas, o livro de Camila traz também os aspectos sombrios originalmente presentes nessas histórias. Que as versões da Disney são absolutamente açucaradas não temos dúvidas, mas muitos ainda se espantam ao saber que os contos de fada comumente continham canibalismo, assassinato e estupro. (Aliás, se você tem algum tipo de trauma sexual, recomendo que tome cuidado com a leitura do primeiro, quarto e do último conto do livro.) Como diz a introdução da obra:
Essas histórias sem censura diziam muito mais sobre a natureza humana do que os finais felizes a que estamos acostumados. […]
A mensagem é clara:
O mundo é cruel. Sejam espertos. Tomem cuidado.
Estamos acostumados a encarar o “para adultos” como um eufemismo para “contém conteúdo explicitamente sexual”, mas devemos tomar cuidado com essas definições – embora o livro contenha, sim, sexo, vai além disso: prepare-se para histórias honestas e realistas – claro que dentro de um universo que não poderia deixar de ser fantástico. Apesar dessa classificação, eu leria alguns desses contos para uma criança.
A autora tirou inspiração de alguns contos clássicos para escrever os seus, mas não realizou releituras. Na minha primeira leitura, o meu conto favorito foi o primeiro, “O Chifre Negro”, o qual tem menos conexões óbvias com o imaginário clássico de contos de fadas. Quando o reli, o conto continuou sendo inspirador por evocar para mim o empoderamento que pode decorrer de uma aliança inusitada e de não se submeter às convenções. Mas o conto “A Torre Onde Ela Dorme” tomou seu lugar como favorito, talvez por agora ecoar sentimentos de silenciamento e possuir um final catártico.
Há também um conto que descreve a breve e significativa relação de um lenhador com um gato, e outro que faz uma graciosa referência à história “A princesa e o sapo”; “A espera”, um conto que propõe uma reflexão sobre o impacto de tomar consciência das escolhas sobre o nosso destino; e o “O Reino das Névoas”, que é o mais longo e dá o título à obra, com fortes referências à história da Branca de Neve. Finalmente, menciono outro conto que me impactou profundamente: “A Outra Margem do Rio”, que relata uma história que começa com um casamento arranjado e um infortúnio e quebrou minhas expectativas com um final doce.
Acredito que não teria gostado tanto do livro se o cuidado não transbordasse dele: a linguagem é absolutamente condizente com a proposta. A simplicidade e precisão das descrições quase oníricas é encantadora, além de evocar oralidade na estrutura sintática. Devo dizer que só atentei a isso nessa segunda leitura, após estudar transmissão oral e contos de fada na faculdade. Imagino que essa linguagem tenha sido a responsável por, em 2010, conceder à proposta do livro o financiamento do ProAc (Programa de Ação Cultural) após uma amostra de apenas 10 páginas.
O cuidado também transparece na edição, que possui uma diagramação agradável e ilustrações magníficas. Essas ilustrações eram metade da razão pela qual eu queria ter um exemplar só meu e elas também são obra da autora.
Em ambas as leituras eu percorri rapidamente os caminhos dos personagens, sem deixar de sentir suas desventuras e alegrias. É uma leitura agradabilíssima para as noites de inverno vindouras – especialmente com um gatinho a esquentar seu pé.
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Reino das Névoas
Autora: Camila Fernandes
Editora: Tarja
Ano de publicação: 2011
168 páginas
Citações favoritas
Os soldados suspiraram felizes por escoltar um anjo. Que, em sua doçura, declarara:
“Se preciso, arrancarei o chifre da besta com minhas próprias mãos e farei com sua pele um casaco de inverno.”
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“Então, creio que me disseram a verdade. Todas as mulheres do Oeste são bruxas.”
“E todos os homens seriam também, se não estivessem tão ocupados em ser… bem, homens.”
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“Mas, sua Alteza, a princesa não está em condições de dizer sim na cerimônia.”
“Também não está em condições de dizer não. Se ela é muda e órfã, é correto que seu futuro marido fale por ela.”
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“Para todo ouvido, a rainha era uma sóbria viúva vestida de negro. Ainda que em festins secretos ela se mantivesse de todas as maneiras, menos sóbria. Ou vestida.”