[Resenha] A voz do fogo

fogoSinopse:

Primeiro romance do mestre dos quadrinhos Alan Moore, A voz do fogo reúne histórias cheias de luxúria, loucura e êxtase. O cenário é Northampton, cidade natal do autor, na Inglaterra, onde vivem os personagens do livro: jovens bruxas, velhos guerreiros, poetas loucos e cabeças falantes. Cada história se passa em um diferente período histórico, ao longo de 6 mil anos, mas todas se conectam e, juntas, compõe um retrato mágico e sombrio da cidade. Moore mistura cabala, experimentalismo e fantasia pop num romance instigante, às vezes trágico, e sempre hipnotizante.

Fonte: Veneta

Quando eu soube que alguém havia escrito um romance cujo protagonista é a cidade de Northampton fiquei bastante intrigada, afinal, estamos acostumados a acompanhar a trajetória de pessoas – não de cidades. O autor, Alan Moore, se proclamou mago aos 40 anos. Quando me foi dito que a história começava em 4000 a. C. e que a linguagem era construída para se aproximar do que teria sido a linguagem do período neolítico, fiquei bem louca pra colocar as mãos nesse livro.

Alguns meses depois, tive esse desejo duplamente satisfeito. Fui visitar menino Enéias (também colaborador deste maravilhoso blog) e pude pegar uma edição em cada mão: a original (em inglês) e uma brasileira (da Veneta). E isso me proporcionou uma experiência muito rica com o livro. Sempre que leio um livro no qual há alguma brincadeira linguística, morro de curiosidade para espiar o original e observar as soluções que o tradutor encontrou.

Comecei lendo em inglês e logo me senti meio analfabeta. A falta de advérbios e a escassez de pronomes específicos me deixaram bem confusa – especialmente porque não sou falante nativa de inglês. Mas aposto que os nativos também ficaram bem confusos. Segue um trecho que achei particularmente poético no original:

Looks now bove of I. Sky, is he full with sky-beasts there, and all of one grey herd is they as runs from edge of world to edge of world. Dark is in little whiles come by, which-for I may see not I’s long black spirit shape, as follows in I’s tread. All lone is I.

Uma das coisas que mais gostei é que a adaptação da linguagem adaptada de Moore não foi meramente sintática. Ele nomeou as coisas (no excerto, os pássaros, a noite e sua sombra) a partir de uma perspectiva natural e ingênua, pois o protagonista e narrador é um adolescente nômade que acaba de perder a mãe e ser expulso de sua tribo. A tradutora, Ludmila Hashimoto, cumpriu o desafio com louvores. Encontrou muitas soluções elegantes para transmitir a simplicidade da linguagem neolítica de Moore e as limitações do narrador (que Neil Gaiman, no prefácio do livro, já nos avisa que não é muito inteligente), sem perder a mensagem. Quando precisei partir e escolher qual das edições levar comigo para terminar a leitura, pude confiar plenamente no trabalho de Hashimoto. Segue o mesmo trecho, traduzido:

Olha agora em cima de eu. Céu, é cheio de feras-de-céu, manada toda cinza é elas, que vai de fim de mundo a fim de mundo. Escuro é vem de tempos em tempos, quando posso não ver a longa forma preta de espírito, que segue o passo de eu. Sozinho está eu.

Notei que, por algum motivo, não acho tão poético quanto o original. Talvez eu tenha internalizado uma glamorização do inglês ou, por ter intimidade com o português e com o vocabulário simples que não poderia deixar de ser usado nesse capítulo, não consiga achar o tom igualmente solene.

Esse primeiro capítulo é o mais longo e o mais difícil (aparentemente a tradutora levou metade do tempo da tradução apenas nessas primeiras 60 páginas), mas também o mais marcante. Todos os capítulos são fechados em si mesmos e podem ser lidos de maneira independente. Mas recomendo a leitura contínua deles, pois Moore colocou magistralmente ecos e padrões durante todo o livro, gerando uma atmosfera e consolidando uma mitologia.

O capítulo seguinte se passa em 2500 a. C. e tem como narradora uma mulher ambiciosa e astuta que mata uma herdeira a caminho de conhecer o pai, para tomar o lugar da mulher e receber sua fortuna. É perceptível uma evolução da linguagem, bem como uma mudança de visão de mundo na voz da narradora. Achei interessante que em algumas partes eu pensava “Ah, essa sintaxe já é praticamente a que usamos hoje”. Aí avancei para o próximo capítulo e senti mais avanços sintáticos.

Os capítulos totalizam doze e são em primeira pessoa. Os personagens se distinguem claramente enquanto voz narrativa e entre eles temos um romano, uma bruxa, um assassino e o próprio Moore, no último capítulo. Esse capítulo é um misto de diário e posfácio, no qual o autor menciona as pesquisas que fez para o livro, narra um encontro com seu irmão e fala de pesadelos compartilhados por pessoas próximas a ele.

Na quarta capa do livro consta, no meio das tradicionais citações de resenhas midiáticas, a palavra “shamânico” e penso que não há outra que o sintetize tão bem. Depois dessa leitura, estou inclinada a ler tudo que for possível do Alan Moore (cujo contato anterior se resumiu a esparsos trechos de Lost Girls). E esse é o maior elogio que poderia fazer a um livro.

*

A voz do fogo
Autor: Alan Moore
Tradutora: Ludmila Hashimoto
Editora: Veneta
Ano de publicação: 1996
Ano desta edição: 2012
335 páginas

A edição americana mencionada é a da editora TopShelf Productions.

 

Citações preferidas

Este mundo é faz eu pequeno, que com medo eu não posso mexer nem fazer coisa. Fecho os olhos, e céu é vai, mas escuro vai não, fica por aqui. Não tem jeito de parar o escuro.

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A trilha é mais larga, subindo pela beira do vale. Quantos pés de homens mortos são necessários para fazê-la assim? É uma fúria e um sofrimento pensar em acabar um dia no meu túmulo e esta trilha ainda estar por aqui.

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Nós dois rimos, ela de modo um pouco nervoso, enquanto Eleanor olhava primeiro para um, depois para o outro, percebendo que havia significados lançados por baixo da superfície de nossa conversa feito lindos peixinhos.

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Somos todos, cada um de nós, fragmentos sangrentos e pungentes de um Deus que foi rasgado em pedaços pelo choro de nascimento da Eternidade. Quando todos os dias se acabarem, ela que é Noiva e Mãe de todos nós juntará cada migalha de ser espalhado num só lugar, onde voltaremos a saber o que sabíamos no início das coisas, antes da terrível divisão. Todos os seres se dividem entre aqueles que são e aqueles que não são. Entre eles, o segundo tipo é o maior, e tem mais importância. Conhecer o pensamento é estar em outra terra. Tudo é verdadeiro. Tudo.

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Gostaria que ela usasse cinta-liga feita pela firma que represento. Como eles estão situados perto daqui, em Leicester, há uma grande chance que ela use. Dependendo de como você vê a situação, já estou praticamente debaixo da saia dela. O que me diz disso?

*

O dedo indicador da mão direita suspenso acima das teclas. O autor digita as palavras “o autor digita as palavras”.

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Nossos mitos estão pálidos e doentes. Este é um pires, cheio de sangue, reservado pra alimentá-los.

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