Sinopse:
Uma reinvenção original e fascinante das histórias de vampiros pelas mãos do mestre da fantasia moderna George R.R. Martin. Quando o falido capitão Abner Marsh recebe uma oferta de sociedade de um rico e sinistro aristocrata chamado Joshua York, ele até chega a desconfiar que algo está errado. Mas nada que a possibilidade de receber milhares de dólares em ouro e construir o barco dos seus sonhos não possa fazê-lo mudar de ideia. Assim surge o Sonho do Fevre, o melhor e mais potente barco de todo o Mississipi. Uma embarcação magnífica que, ao navegar pelo rio, vai deixando pelo caminho uma coleção de histórias sombrias. Movido pela força do vapor, o Sonho do capitão pode se transformar no maior pesadelo da humanidade.
Fonte: Livraria Saraiva
Devido à minha predileção pela escrita de Bram Stoker e pelos heróis de Anne Rice, procuro manter distância de séries ou livros que apresentam vampiros. Especialmente, por vivermos num momento em que as histórias dos imortais chupadores de sangue parece ter alcançado a exaustão, indo de vampiros que brilham no sol até bebedores de sangue artificial, quando não entediados frequentadores do colegial. Ademais, boa parte dessas histórias usa por muleta o binômio vampiro bom/vampiro mau, num tipo de simplificação que não chega aos pés da complexidade atingida por Rice em Entrevista com o vampiro, livro de 1975, que introduziu o sofredor moral Louis de Pointe du Lac e o combativo amoral Lestat de Lioncourt.
Daí meu esparso entusiasmo ao saber do lançamento no Brasil de uma obra de George R.R. Martin dedicada ao mito dos vampiros, publicação motivada pelo sucesso estrondoso do autor estadunidense por suas Crônicas de gelo e fogo. Vencendo, porém, esse inicial desinteresse, o livro ganhou-me pela capa. A arte de Marc Simonetti apresenta uma charmosa figura andrógina, cujo rosto delicado, entremeado com sombras avermelhadas, ecoa a imagem clássica atribuída justamente a Lestat, vestido com elegância e requinte. Ficamos sabendo pela contracapa que a história se passa no Mississipi, o que novamente leva ao sulista cenário annericeano. Buscando a ficha catalográfica, descobri que o livro foi publicando em 1982, sendo assim uma obra posterior ao clássico Entrevista, porém anterior ao sucesso de Martin, catapultado pela série do canal HBO, Game of Thrones.
Fisgado, comprei o livro bem mais curioso pelo estilo do autor – que acho insuperável! – do que pelo enredo. Mas fiquei muito feliz de perceber que mesmo em seus elementos mais próximos do universo de Rice, Martin cria uma história absolutamente original e intrigante. Enquanto, na autora de Nova Orleans, o vampiro é uma metáfora para inquietações existenciais – não sendo a toa que seu primeiro livro recebeu no Brasil tradução de Clarice Lispector –, em Sonho Febril ele não passa de uma metáfora para a decadência da sociedade escravocrata norte-americana na segunda metade do século 19, visitando temas como opressão, escravidão e violência, todos eles perfeitamente entremeados na ambientação e nos diálogos.
Por outro lado, Martin também não escapa do binômio supracitado. O protagonista do livro é o “vampiro bom” Joshua York, que deseja não apenas inventar uma bebida artificial que impeça sua raça de continuar matando seres humanos para se alimentar como também estabelecer uma ponte entre as duas espécies para um futuro pacífico de convivência, em duas premissas que dariam origem, anos depois, a True Blood.
Já o “vampiro mau” é Damon Julian, que não apenas submete York ao seu poder, como despreza seus planos humanistas. Reforça a vilania de Julian o fato de usar serviçais negros como escravos, prometendo-os vida eterna, o que no universo de Martin não passa de embuste, uma vez que as duas espécies não são intercambiáveis. Diante disso, a espécie humana não passa de alimento a ser dominado e consumido, sendo comumente referenciada como “gado” no decorrer da narrativa, não coincidentemente o mesmo termo usado por muitos sulistas escravocratas para nomear suas “propriedades” durante a Guerra da Secessão.
Entre esses opostos, está o velho capitão do navio Sonho Febril, Abner Marsh, o real protagonista do livro. Marsh acredita em York e chega a simpatizar com seus planos, mas a narrativa de suas agruras traça uma boa jornada de desenvolvido existencial e também humano, sobre como determinadas diferenças, de idade, de etnia ou de espécie, podem ser deixadas de lado por um bem ou por um mal maior. Outro destaque do livro é o escravo liberto Sour Billy Tipton, que, após deixar os grilhões para trás, assume outra escravidão simbólica ao se tornar o demoníaco serviçal de Damon.
Martin constrói uma narrativa claustrofóbica e inquietante, na qual elementos de ficção científica – que explicam, por exemplo, as diferenças biológicas entre a espécie humana e a vampírica ou a concepção da bebida artificial que afastaria os vampiros dos humanos – coabitam com o terror literário mais clássico, deixando pouco espaço para o leitor ou leitora respirar. Ademais, como eu esperava, o modo como Martin conta sua história é admirável, variando pontos de vista e concebendo cada capítulo a partir de datas e localizações precisas, o que dialoga indiretamente com um detalhado e assustador diário de bordo.
Por fim, a edição da LeYa apresenta seu costumeiro cuidado. Além da bela ilustração da capa, o design de Rico Bacellar resulta num volume chamativo e elegante, senão um tanto inquietante, com o vermelho do fogo e do sangue mesclado às turvas águas do Mississipi. Também digna de elogio é a tradução sóbria e fluida de Luis Reyes Gil, fazendo jus ao estilo original do grande prosador.
Para encerrar, recomendo a leitura de Sonho Febril não apenas por ser uma narrativa arrebatadora se o que você procura é perigo, requinte e medo, como também por confirmar Martin como um dos autores mais inovadores e talentosos dos nossos tempos, mesmo que ainda estivesse em sua terceira empreitada romanesca. Numa época de vampiros anêmicos, zumbis destituídos de propósito ou da violência gratuita de seriados televisivos ruins, Sonho Febril merece uma leitura mais do que atenta. Mas cuidado. Depois de lê-lo, você pensará duas vezes antes de entrar novamente em um barco!
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Sonho Febril
George R.R. Martin
Tradutor: Luis Reyes Gil
Editora: LeYa
Ano de publicação: 2015
368 páginas
Citações Favoritas:
Os olhos de York eram cinza, impressionantemente escuros num rosto tão pálido. Suas pupilas eram pontas de alfinete, de um negro abrasador, e penetraram direto em Marsh como se avaliassem com minúcias a sua alma. O cinza em volta daquelas pupilas parecia vivo, móvel, como um sapo no rio numa noite escura, quando as margens ficam indistintas e as luzes somem, não havendo nada no mundo a não ser seu barco e o rio e a neblina. Naquelas névoas dos olhos de York, Abner Marsh viu coisas, vislumbres fugazes que logo se perdiam. Havia uma inteligência fria espreitando por aquelas névoas. Mas havia também uma fera, escura e assustadora, acorrentada e raivosa, irada em meio à neblina. Gargalhada, solidão, paixão cruel: York tinha tudo isso em seus olhos.
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– Não – disse York. Seus olhos se movimentaram pelo salão. – Eu realmente acho que prefiro a noite – disse ele. – Lorde Byron tinha razão. O dia é espalhafatoso demais.
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– Bem, capitão – disse Jeffers com um sorriso sem graça –, o principal é que a poesia é uma coisa bonita. O jeito das palavras se encaixarem, os ritmos, as imagens que elas evocam. Os poemas são agradáveis quando ditos em voz alta. As rimas, a musicalidade, o simples jeito que eles soam. – Ele bebericou um pouco do seu café. – É difícil de explicar se você não sente a mesma coisa. Mas é mais ou menos como um barco a vapor, capitão.
– Nunca achei um poema bonito igual a um barco a vapor – disse Marsh rispidamente.
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Sua cabeça estava cheia de maus pressentimentos, memórias, visões. Continuava vendo Jonathon Jeffers, o oficial, com sua bengala-espada, tão absolutamente convicto e tão absolutamente impotente quando Julian se lançou sobre a sua lâmina. Ouviu de novo o som que o pescoço do oficial fez quando Juliana o destroncou e lembrou dos óculos de Jeffers caindo no chão, a cintilação do ouro quando eles rolaram pelo convés, aquele som pequeno e terrível que produziram.
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Era evidente que Damon Julian tinha medo disso. Abner Marsh sabia como funcionava. Uma derrota produzia isso num homem, até mesmo naquela coisa que se fazia chamar Damon Julian. Julian superara Joshua York uma dezena de vezes e o sangrara para selar sua submissão. York triunfara apenas uma vez. Mas havia sido o suficiente para que a certeza de Julian fosse embora. O medo vivia dentro dele como um verme num cadáver.