[Resenha] O Protegido

Essa resenha foi feita com base no e-book em inglês da Del Rey. A tradução de trechos foi feita por mim.

wardedSinopse:

Em O Protegido, a humanidade cedeu a noite aos corelings e são poucos os que ainda conseguem se esconder atrás das proteções mágicas, rezando para que elas os conduzam para mais um dia. Conforme os anos passam, as distâncias entre as pequenas vilas se aprofundam. Parece que nada pode deter os demônios ou aproximar a humanidade novamente. Arlen, Leesha e Rojer, crianças nascidas nesses pequenos vilarejos hoje isolados, não se conformam com essa situação. Um Mensageiro ensina ao jovem Arlen que o medo, mais que os demônios, tem paralisado a humanidade. Leesha vê a sua vida perfeita ser destruída por uma simples mentira e se torna uma coletora de ervas para uma velha mulher, mais temida que os demônios da noite. E a vida de Rojer muda para sempre quando um menestrel viajante chega à sua cidade e toca seu violino.

Fonte: Livraria Cultura

Você já leu sobre um garoto que aprende a matar pessoas. Você já leu sobre um garoto que aprende o nome das coisas. Agora prepare-se para ler sobre… um garoto que aprende a caçar demônios!

The Warded Man (O Protegido, na edição brasileira) nos apresenta a um mundo bem curioso, onde, toda noite, demônios surgem das profundezas da terra (ou do “core” – “centro” – sendo chamados por isso de “corelings”) para se refestelar com carne humana ou animal. (Um pouco como os vampiros de Eu sou a lenda, ou as sombras de Shadows for Silence in the Forests of Hell, novela de Brandon Sanderson.) O único refúgio que as pessoas têm são as “wards”, proteções desenhadas que criam campos em que os demônios não conseguem penetrar.

A construção desse mundo é bem legal: devido aos demônios, as cidades e vilarejos são extremamente isolados, e apenas os chamados “Mensageiros” (acompanhados de Jongleurs, algo como menestréis itinerantes) desbravam as estradas para entregar suprimentos e notícias de um lugar a outro. A vida das pessoas é inteiramente dependente da necessidade de se recolher todas as noites, e o autor desenvolve as consequências disso muito bem.

Nosso protagonista é Arlen, um garoto corajoso, curioso e inteligente cuja evolução vemos ao longo do livro. Depois de um encontro com um Mensageiro, Ragen (um personagem não particularmente impactante, mas nobre e confiável, e de quem eu gostei muito), ele deixa sua vila e vai para a cidade de Miln, e de lá vai conhecer o mundo. É uma trama daquelas que você já viu na fantasia épica quinhentas vezes, e ainda assim continua gostando. Além de Arlen, também acompanhamos dois outros personagens: Leesha, uma garota que vive em um desses vilarejos e que tem uma mãe ambiciosa e um pai gentil mas fraco, e Rojer, que fica órfão aos 3 anos após um ataque de demônios e passa a morar com um Jongleur com um problema com bebida.

A caracterização e a evolução dos três principais é bastante explorada e, embora o começo do livro seja mais lento (especialmente quando passamos da história de Arlen para a dos outros), logo você passa a gostar de todos eles. No entanto, o autor peca nos secundários. A mãe de Leesha, o amante dela e o noivo da garota são todos exageradamente vilanescos, e algumas cenas dramáticas têm um ar de novela mexicana. Pra quem está acostumado a caracterizações mais sutis e complexas, de autores mais experientes, isso fica bem nítido. Mas é possível relevar esse detalhe e aproveitar a história dos principais.

Arlen é um ótimo protagonista – teimoso, ambicioso, pró-ativo – e você torce por ele; e Rojer é um fofo e talvez o meu preferido dos três. Leesha é uma personagem feminina que me pareceu inicialmente super bem construída, e a abordagem do seu papel enquanto mulher num mundo machista (tipicamente pseudo-medieval) começou ótima: o autor trata de questões como homens possessivos, o double standard do sexo para homens e mulheres, e nos dá uma personagem inteligente, competente e com sonhos maiores que sua vilinha. A garota conhece a “curandeira” da vila – Bruna, uma personagem divertidíssima e sábia – e decide ter uma profissão em vez de se casar com um cara imbecil. Tudo estava indo tão bem! E ENTÃO.

[SPOILERS ATÉ O FINAL DO PARÁGRAFO.] As coisas começam a ficar insanas quando Leesha é estuprada brutalmente – e gratuitamente, porque não há nenhum motivo para que a cena não pudesse ser a mesma sem que isso acontecesse. Até aí, não necessariamente um problema, se isso fosse uma questão trabalhada na obra. E como a personagem lida com isso? Agarrando outro personagem algumas páginas depois! Sim, porque a reação natural de uma mulher virgem que foi estuprada por vários homens é querer transar de novo o quanto antes! Pior é que todo o resto da trama poderia ter continuado igual, inclusive o breve caso com Arlen – e ter sido mais verossímil, já que ela não teria esse trauma. Fiquei bem decepcionada, já que o autor estava lidando bem com a questão do abuso (inclusive adorei ver Leesha se defendendo do Mensageiro que queria estuprá-la na estrada). E depois ele me joga um estupro rápido no fim do livro como meio de impulsionar um romance pouco crível entre os protagonistas. Que desnecessário! [FIM DOS SPOILERS E DA RAIVA.]

Os romances não são o ponto forte do livro. Gostei mais do relacionamento entre Ragen e sua esposa do que dos breves casos de Arlen. O primeiro deles – com Mery, uma menina que compartilha o seu amor por conhecimento – tem aquele ar de romance da adolescência que você já sente que vai odiar desde o começo. (Talvez Rothfuss tenha me deixado traumatizada com romances que não vão pra lugar nenhum.) Mery, aliás, me traz a outro aspecto um pouco cansativo da obra: as esposas que ficam em casa sofrendo pelos maridos Mensageiros que precisam sair explorar o mundo.

Outra peculiaridade da obra é a importância dada à maternidade: as mães têm um papel mais importante na sociedade, de modos positivos e negativos. Por um lado, o governo de Miln é comandado por Mães, demonstrando o respeito dado a elas. Por outro lado, uma mulher que não tem filhos não é nada. Achei uma dinâmica curiosa, e queria ver se seria mais desenvolvida ao longo da série (especialmente no sentido de quebrá-la, porque a ideia do valor da mulher estar associado à maternidade é cansativa demais). Além disso, há uma região do mundo chamada Krasia claramente inspirada em países islâmicos, em que há um tipo de guerra santa contra os demônios – e onde, é claro, as mulheres são oprimidas e se cobrem da cabeça aos pés. Talvez por só vermos os homens desse lugar, pareceu-me uma construção de mundo um pouco superficial, baseada em estereótipos. Não sei se isso é trabalhado nos próximos da série.

E aviso aos navegantes: o livro inclui abuso sexual em mais de uma ocasião, assim como incesto. E (conforme discutido na seção com spoilers acima) nem sempre faz isso bem. O autor também se refere à virgindade de uma mulher como a sua “flor”, o que não chega a ser ofensivo, mas pode ocasionar uma crise de vergonha alheia.

No entanto, apesar das (várias) ressalvas, a leitura fluiu bem e foi muito empolgante em vários trechos (e tensíssima, quando os personagens tinham que se proteger contra os demônios). Os protagonistas são envolventes e o mundo em geral é bem desenvolvido. Foi um bom livro de estreia, mas ainda não está no mesmo nível de outros autores de fantasia e não sei quando vou me animar a pegar o segundo.

*

O Protegido
Autor: Peter V. Brett
Tradutor: Petê Rissatti
Série: Ciclo das Trevas (v. 1)
Editora: Darkside
Ano de publicação: 2008
Ano desta edição: 2015
528 páginas

 

Citações preferidas

“Não tenha tanta pressa em abandonar a infância, garota”, Bruna disse. “Você vai descobrir que sente falta dela quando se for. Há mais ao mundo do que deitar sob um homem e fazer os bebês dele.”

“Mas o que mais pode se comparar?” Leesha perguntou.

Bruna indicou sua estante.

“Escolha um livro”, ela disse. “Qualquer livro. Traga-o aqui, e eu te mostrarei o que mais o mundo tem a oferecer.”

*

“Nós somos o que escolhemos ser, garota”, ela disse. “Deixe os outros determinarem seu valor e você já perdeu, porque ninguém quer que as pessoas valham mais do que elas mesmas.”

*

“Deixe as pessoas se esconderem nas suas casas, enjauladas como galinhas. Covardes não merecem nada melhor.”

“Então por que você nos salvou dos demônios?” Rojer perguntou.

O Protegido deu de ombros.

“Porque vocês são humanos e eles são abominações”, ele disse. “E porque vocês lutaram para sobreviver, até o último minuto.”

3 respostas em “[Resenha] O Protegido

  1. Ainda não li o segundo (já tenho, mas comprei tanto livro no Natal que nem sei por qual começar), mas ouvi dizer que é muito bom e explora bastante Krasia.
    Quanto ao primeiro, gostei muito do wordbuilding, dos personagens e, principalmente, do sistema de magia (aliás, fiquei muito curiosa para saber mais sobre os demônios, especialmente quando no final [SPOILERS] Leesha mostra a dissecação que ela fez em um demônio.) Também fiquei com a sensação de que o autor esqueceu que Leesha foi estuprada, o que pareceu deixar a cena sem propósito (afinal, se não ia servir para desenvolvimento do personagem e andamento da trama, estava ali por quê?), mas vamos ver como isso vai ser trabalhado no próximo livro [FIM DO SPOILER].

    • Oi, Laís! Sim, essa parte no final foi fascinante. E também estou curiosa pra saber as consequências de *comer* os demônios, rs.
      Enfim, boa sorte lendo todos esses livros. Se ler o segundo, me conta depois o que achou!

  2. Pingback: [Especial] Livros favoritos de 2016 | Sem Serifa

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