[Resenha] Sandman – Volume 4: Estação das Brumas

Esta resenha foi feita com base na edição em inglês da Vertigo. Todas as traduções, porém, correspondem à edição da Panini Books, cuja tradução é assinada por Jotapê Martins.

Sandman04

Sinopse:

“Estação das brumas” é considerada pela crítica como a grande demonstração da habilidade única que Gaiman tem para criar tramas sutis e envolventes. No quarto livro da Biblioteca Sandman, a história de Morpheus volta ao centro do enredo. Nada, uma mulher de 10 mil anos, faz parte desta história. Ela e o Mestre dos Sonhos viveram um romance proibido, e ela acaba condenada a passar a eternidade no inferno por causa disto. Mas os outros Perpétuos convencem Morpheus que isso é uma grande injustiça e ele decide resgatá-la. Para isso, o Mestre dos Sonhos terá que enfrentar Lúcifer, seu inimigo antigo.

Fonte: Livraria Cultura

Depois da ótima recepção que a jornada de Morfeus ao inferno no sexto número de Sandman teve junto ao público, Neil Gaiman demorou a atender aos desejos dos leitores e leitoras e reservou apenas para o quarto volume da série a continuidade da história de Lúcifer. Em vista disso, Estação das Brumas é para muitos a história predileta de Sandman justamente por colocar em primeiro plano um dos heróis malditos mais populares da cultura contemporânea: o próprio demônio.

Depois do monstro gigantesco medieval, do gélido diabo de Dante, do fulgurante herói de Milton e das releituras românticas dedicadas a Satã, Gaiman surpreendentemente revitaliza a imagem do anjo caído dando-lhe pendores existencialistas, dúvidas espirituais, predileções por bares noturnos e praias ensolaradas e um rosto de… David Bowie. Sim, isso mesmo. Aos leitores que estão chegando a Sandman agora, não estranhem o fato de que seu Lúcifer Estrela da Manhã tenha o rosto de Ziggy Stardust!

A trama inicial do volume, que compreende os números 21 a 28 da série mensal, publicados entre 1990 e 1991, é relativamente simples: Morfeus vai ao inferno para libertar sua amante Nada, princesa africana aprisionada lá pelo próprio protagonista após ter seu amor recusado, história contada em Sandman 9. Antes disso, envia um emissário chamado Caim, o primeiro assassino, para anunciar sua chegada. Num diálogo memorável com Lúcifer, o monarca do inferno jocosamente afirma: “Antes Reinar no inferno do que servir no céu? Eu não disse isso. Milton disse. E ele era cego.”

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Capas de Sandman 21, 22 & 23 – Arte de Dave McKean

Tal frase aponta para os planos de Gaiman em Estação das Brumas: partindo de visões anteriores da representação infernal, em especial as de Dante e Milton, o autor apresenta o que seria a paisagem infernal em nossos dias. Indiretamente, a pergunta que seu Lúcifer se faz é: como pensarmos um inferno tradicional num cenário pós-moderno no qual o caos, o ruído, a modernidade e a multiplicidade de vozes e opiniões se tornaram a ordem do dia? Não teriam as chamas do inferno esfriado em tempos de fria liquidez conceitual, cultural e tecnológica?

Quando Morfeus chega ao inferno, encontra-o vazio. Quanto a Lúcifer, pediu demissão e está fechando seus portões. Ele cansou. Não apenas do jogo com o divino, como de ser responsabilizado por cada pérfida ação humana. Para desgosto de Morfeus, Lúcifer revela que Nada foi libertada como todos os outros ali condenados. Não satisfeito em atormentar ainda mais o sorumbático protagonista da série, entrega a ele as chaves do Hades, dando início ao conflito principal do volume: a disputa pelo controle do inferno por parte de anjos cristãos, deuses nórdicos e demiurgos orientais e vingativos, entre outras nada admiráveis criaturas.

Entremeado a essa disputa, Gaiman revela o que aconteceu com as almas libertas. De volta à Terra, continuam fazendo aqui o que faziam lá. Ou seja, na interpretação de Gaiman, o inferno não passaria de uma projeção dos horrores aos quais submetemos os outros e aos quais nos submetemos aqui. Ecoando Sartre, não se trata de dizer que o Inferno são os outros e sim de postular que o Inferno somos todos nós.

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Capas de Sandman 26, 27 & 28 – Arte de Dave McKean

Em outro capítulo de Estação das Brumas, dois espíritos infantes dialogam num cenário escolar infernal. Diante dos “martírios dos anos de colégio”, um deles afirma: “Eu não acho que eles voltarão ao inferno. (…) Acho que o inferno é algo que levamos conosco. Não um lugar para onde se vai. (…) Eles estão fazendo as mesmas coisas de sempre. E a si mesmos. E o inferno é isso.” O inferno é aquilo que fazemos a nós mesmos, sugere Gaiman, remetendo à frase do Satã de Milton, que postulava nunca deixar o inferno, uma vez que o levava sempre consigo, dentro de si próprio.

E quanto ao Lúcifer que pediu as contas? Estação das Brumas termina numa praia australiana, na qual Lúcifer toma sol e conversa com um homem velho que desabafa sobre a morte de entes queridos. O velho pergunta, depois de refletir sobre sua solidão: “Mas aí eu penso: um Deus que consegue criar um pôr do sol desses por dia, um diferente do outro… olha… tem que respeitar esse velho escroto, não acha?”

Lúcifer se despede dele e então sorri para a imensa bola de fogo. Vencido e vencendo seus próprios ressentimentos, graceja: “Está bem. Eu admito. Ele tem razão. Esses pores do sol são fantásticos, seu velho escroto. Satisfeito?”

Para além de um inferno exterior, dogmático e temível, que não mais existe, seria necessário reaprender a destruir ou a desabitar nossos próprios infernos interiores. A desleitura do inferno de Gaiman aponta para uma revisão não apenas da cultura como a conhecemos como também para uma reflexão sobre nossas angústias modernas. E isso apenas seria possível perdoando Deus por sua criação imperfeita ou por sua ausência ou, ainda, por sua inexistência.

Apenas diante de tal constatação poderíamos aproveitar, como Lúcifer Estrela da Manhã, o decair da Estrela da Tardinha. Perdoados e perdoadores, voltaríamos ao Éden, ao menos no território imaginativo da arte.

*

Partes desta resenha foram apresentadas na conferência “O Inferno e suas DesLeituras: Dos Clássicos Literários aos Clássicos Populares”, na Semana Acadêmica do Curso de Letras da UFSM, em novembro de 2014.

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Sandman – Volume 4: Estação das Brumas
Em Sandman Edição Definitiva 2
Tradutora: Jotapê Martins
Editora: Panini Books
Ano de publicação: 2011
618 páginas

Citações favoritas

Façamos uma breve pausa, enquanto eles descem a escadaria cinza rumo à sala de banquetes de Destino, para refletir a respeito dos Pérpetuos. (…) Desejo sorri em lampejos breves, como raios de sol refletindo no afiado gume de uma lâmina. E há muito mais que é afiado em Desejo. Nunca uma posse, sempre quem possui; com a pele tão pálida quanto a fumaça, e olhos fulvos e aguçados como vinho doutorado. Desejo é tudo que você sempre quis. Seja lá quem você for. Ou o que for. Tudo.

*

Eu acabo de fazer borboletas. Olhem. Todo! Olhem só que eu acabei de fazer… borboletras…

*

Era uma vez um lugar que não era um lugar. Ele tinha muitos nomes: Avernus, Gehenna, Tártaro, Hades, Abaddon, Sheol… Era um fosso de dor, chamas e gelo, onde cada pesadelo tornara-se realidade desde tempos muito remotos. Nós o chamaremos de inferno.

*

‒ É seu aniversário, por acaso?

‒ É preciso ter nascido para se ter um aniversário.

*

Aos amigos ausentes, amores perdidos, velhos deuses e à estação das brumas: e cada um de nós dê ao Diabo o que lhe é devido.

*

Fiquei entediado. Terrivelmente entediado. Parei de me importar. E os mortais? Por que me culpam por seus míseros fracassos? Usam meu nome como se eu passasse o dia todo empoleirado em seus ombros, instigando-os a cometer atos que, de outra forma, achariam repulsivos. ‘O demônio me obrigou’. Nunca obriguei nenhum deles a fazer nada. Nunca. Eles mesmos vivem suas vidinhas. Não faço isso por eles. (…) Eu não os obrigo a vir para cá. Dizem que ando por aí como comprando almas. Como se fosse um mercador, mas nunca questionam por que eu faria isso. Não preciso de almas. E como pode alguém ser dono de uma alma? Não, eles pertencem a si mesmos, mas odeiam ter que encarar isso.

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