[Resenha] Neuromancer

Capa 01Sinopse:

No futuro, existe a matrix. Uma espécie de alucinação coletiva digital na qual a humanidade se conecta para, virtualmente, saber de tudo sobre tudo. Mas há uma elite que navega por essa grande rede de informação – os cowboys. Case era um deles, até o dia em que tentou ser mais esperto do que os seus patrões, que fritaram suas conexões com o ciberespaço, tornando-o um pária entre os seus iguais. Ele vaga pelos subúrbios de Tóquio, mais envolvido do que nunca em destruir a si próprio, até ser contatado por Molly, uma bela e perigosa mulher que, assim como ele, desconfia de tudo e de todos. Os dois acabam se envolvendo numa missão cheia de mistérios e perigos.

Fonte: Livraria Cultura

Em 1984, quando Neuromancer foi publicado, ganhando diversos prêmios de ficção científica e alçando William Gibson como um dos expoentes da nova literatura especulativa, era outra visão de futuro que permeava as imaginações de leitores e leitoras. 1984 (publicado em 1948), de George Orwell, Admirável mundo novo (1932) de Aldous Huxley e Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, ofertavam um futuro distópico e amedrontador, à sombra de sistemas totalitários opressivos que tinham em comum a proibição da leitura e dos livros.

Gibson, então com trinta e cinco anos, escolheu outra via, partindo de uma hipótese ficcional em que o perigo não está na proibição da arte ou no cerceamento da leitura, e sim no esgotamento mental quando se tem tudo à disposição, na proximidade de um filamento eletrônico ou na intimidade de uma conexão neural. Neste aspecto, seu romance mental apresentava outra ameaça, não mais estatal, ideólogica e opressora, e sim a individual, calcada no desinteresse e na desconexão para com o mundo real em prol de uma experiência irreal enquanto virtual, descartável enquanto imaginária. Para os seres dessas megalópoles, como as do clássico filme Blade Runner (1981), de Ridley Scott, todas as relações são possíveis, todas as experiências permitidas e – paradoxalmente – todas as existências fugazes.

Por outro lado, é curioso que Gibson estivesse então respondendo a uma cultura calcada nos mass media, que ainda via os computadores como a próxima geração dos televisores domésticos. Se estes exigiam adoração diária e passividade espectadora, aqueles iriam devorar as existências de seus usuários, previsão ficcional de Gibson que mais e mais tem se concretizado, se pensarmos no quanto somos dependentes dos nossos avatares digitais, das redes virtuais e dos seus dispositivos móveis de conexão. Neste cenário, estar online é a regra e o off-line torna-se o pavor de muitos de nós. Ironicamente, este seria o próprio conflito do protagonista de Gibson.

01 Vida no Futuro, por Josan Gonzalez.jpg

O dia a dia no universo de Neuromancer – Arte de Josan Gonzalez

Adentremos no universo de Neuromancer pelo olhar de Case, um hacker que foi renegado por seus pares após tentar roubar um de seus contratantes. Tendo seu sistema neural danificado por uma toxina, não consegue mais se conectar à matrix, o que transforma sua vida num infindo de idas e vindas em busca de novas experiências através de cenários marginais e urbanos que a ele parecem desesperadamente irreais.

É aí que encontra Molly, personagem constante em outras obras situadas no mesmo universo: uma atraente ciborgue ou samurai geneticamente modificada, dependendo da descrição, que oferta a Case não apenas uma possível solução para seu problema de “desconexão neural” como um novo serviço. A partir daí, o livro empreende um percurso episódico no qual diferentes personagens e contextos vão adensando e detalhando o universo de Gibson, com destaque ao verborrágico Armitage, o misterioso contratante de Case e Molly, e Riviera, criminoso que projeta imagens holográficas e alucinógenas, entre outras figuras memoráveis que povoam o universo de Gibson. Entre essas, temos duas inteligências artificiais, Wintermute e Neuromancer, que estarão no clímax do romance e que, direta ou indiretamente, estão interligadas ao “serviço” ao qual Case foi contratado, que envolve invadir uma grande corporação e obter uma senha que alterará a matrix.

Em muitos aspectos, não há como não ler Neuromancer sem associá-lo a uma de suas releituras mais icônicas, justamente a trilogia dos Irmãos Wachowski, que colocou Neo, Trinity e Morpheus, além do inesquecível Agente Smith, no centro da cultura pop contemporânea. Mas a obra de Gibson vai além, propondo problemas que suplantam as interessantes questões tecnológicas do romance. Entre essas, os desafios identitários e éticos relacionados à exposição massiva nas redes e do apagamento das fronteiras entre o público e o privado. Em outros termos, trata-se de entrar narrativa e imaginariamente num território futurista e selvagem inequivocamente menos ficcional e mais e mais real, à medida que nos movemos, enquanto cultura mundial, para um cenário de conexões cerebrais e projeções mentais mediadas pelas redes e pelos computadores.

02 Corpos Separados, por Josan Gonzalez.jpeg

Conexões Mentais e Desconexões Corporais – Arte de Josan Gonzalez

 

Tudo isso, entremeado a uma linguagem delirante, a uma narrativa ininterrupta e a cenas de ação ou diálogo que têm sua principal regra na velocidade e na sobreposição de um grande número de informações. Trata-se de uma instigante, quando não caótica, multiplicação de referências musicais, cinematográficas, literárias, politicas, históricas e midiáticas, entre outras, naquilo que, nas palavras do próprio autor, seria um universo de absurda e absoluta “miscigenação cultural”.

Neuromancer foi seguido de outros dois livros, Count Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1988), que também foram publicados pela Aleph, fechando assim a Trilogia do Sprawl, ou, na linguagem de Gibson, a Trilogia das Megalópoles ou dos grandes alastramentos urbanos. Entre outras obras de Gibson, há também o excelente A Máquina Diferencial, escrito em parceria com Bruce Sterling, cuja resenha você encontra aqui. Se o primeiro seria associado ao gênero cyberpunk, este seria um dos precursores do steampunk, apesar de nele Gibson também brincar com um dos mais importantes precursores do computador.

Quanto à tradução, ela é assinada pelo experiente Fábio Fernandes, que recria inteligentemente a linguagem fluida e elétrica de Gibson. Aplausos também para a edição comemorativa de 30 anos da obra feita pela Editora Aleph, que oferta ao público uma edição em excelente papel, diagramação psicodélica e lombada à mostra, explicitando visualmente as conexões que unem os cadernos do livro assim como a narrativa de Gibson expõe as intricadas sinapses virtuais de seu universo futurista e marginal.

Fig 03 Edição Comemorativa

Edição Comemorativa

Não satisfeitos, os editores também presentearam os leitores brasileiros com uma nota a esta edição, seguida de uma introdução exclusiva do autor. Como apêndices, temos três contos de Gibson, que precedem a criação de sua trilogia: “Johnny Mnemônico”, “Queimando Cromo” e “Hotel New Rose”, sendo que o primeiro virou filme protagonizado por Keanu Reaves em 1995, muito antes de Matrix consolidar o gênero cyberpunk no cinema. Para concluir, há ainda uma longa entrevista de 1986 com Gibson, também inédita em português, sobre o romance, seu processo criativo e a estranha experiência de escrever uma narrativa inteira sobre mundos virtuais mediados por computador, sabendo tão pouco a respeito daquelas “estranhas” máquinas e utilizando uma velha máquina de escrever para essa tarefa.

Esta seria mais uma, entre as muitas e deliciosas incongruências de Gibson e seu romance, uma narrativa sobre um velho cowboy navegando ondas de beats em intermináveis avenidas irreais de informação. Ler o texto sinérgico de Neuromancer hoje, ainda mais nessa bela edição, é vivenciar muitas vezes uma alta voltagem de informações e experiências, algumas reais, outras imaginárias ou mentais. Mas e quais não seriam?

*

Neuromancer
Autor: William Gibson
Tradutor: Fábio Fernandes
Editora: Aleph
Ano de publicação: 1984
Ano desta edição: 2014
424 páginas

 

Citações Favoritas

O céu sobre o porto tinha cor de televisão num canal fora do ar.

*

Eles encontraram seu paraíso, um “paraíso de pirata”, na periferia bagunçada de uma grade acadêmica de nível baixo de segurança. À primeira vista, parecia o tipo de grafite que operadores universitários às vezes deixam nas junções de linhas de grade, grifos tênues de luz colorida que tremeluziam contra os contornos confusos de uma dezena de faculdades de letras.

*

Ele viu a coisa que a casca de papel cinza havia escondido. Horror. A fábrica de nascimentos em espiral, terraços com degraus nas células de nascimento, as mandíbulas cegas dos não nascidos movendo-se incessantemente, o progresso articulado de ovo para larva, quase vespa, vespa. No olho de sua mente, uma espécie de fotografia com lapso de tempo começou a rolar, revelando a coisa como o equivalente biológico de uma metralhadora, horrível em sua perfeição. Alienígena. Ele puxou o gatilho, esquecendo-se de apertar a ignição, e o combustível caiu sibilando em cima da vida inchada e contorcida aos seus pés.

*

O carrinho de manutenção estava chorando. A betafenetilamina dava a ele uma voz. Ele não parava.

*

Floresta de neon, a chuva caindo no asfalto quente e soltando vapor. O cheiro de comida fritando. As mãos de uma garota na sua nuca, na escuridão suada de um caixão na região do porto. Mas tudo isso recuando, quando a paisagem da cidade recua: cidade como Chiba, como os dados classificados na Tessier-Ashpool S. A., quando as estradas e encruzilhadas escritas na face de um microchip, o padrão manchado de suor num cachecol dobrado e enrolado num nó… (…) E então a longa pulsação do dub de Zion.

 

***

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– O envio do exemplar de Neuromancer é responsabilidade do Sem Serifa e será feito em até 30 dias após o anúncio do resultado.

22 respostas em “[Resenha] Neuromancer

  1. Neuromancer se assemelha com O Congresso Futurista, uma imersão grande no mundo digital, que seria o mundo “perfeito”, e um quase total esquecimento do mundo real, colocando esse em decadência.

  2. Amei a resenha!
    Quero ler pra tirar minhas próprias conclusões agora. Espero ser sorteada.

    Gostei, particularmente, da citaçao:
    “Eles encontraram seu paraíso, um “paraíso de pirata”, na periferia bagunçada de uma grade acadêmica de nível baixo de segurança. À primeira vista, parecia o tipo de grafite que operadores universitários às vezes deixam nas junções de linhas de grade, grifos tênues de luz colorida que tremeluziam contra os contornos confusos de uma dezena de faculdades de letras.”

  3. Gosto muito dessa obra. Não apenas adiantou a predominância do ciberespaço como ajudou a definir o mundo que vivemos. O drama de Case, como foi perspicasmente apontado, é o drama muito comum hoje, quando acaba a bateria ou o sinal da internet (bloqueio do watts então, só lembrar a loucura que foi). Também resenhei essa obra, mas não nessa versão especial com contos e entrevistas. To salivando só de olhar essa capa kkkkk
    http://wilburdcontos.blogspot.com.br/2015/11/resenha-neuromancer-william-gibson.html

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