Esta resenha foi feita com base no e-book em inglês da She Winked Press. A tradução de trechos do livro foi feita por mim.
Sinopse:
Therese Belivet vê Carol Aird pela primeira vez em uma loja de departamentos de Nova York, onde trabalha como vendedora. Carol está escolhendo um presente de Natal para a filha e resplandece numa aura de perfeita elegância. Observando-a do balcão, Therese está inteiramente despreparada para o choque de uma epifania erótica e para um amor que será imediatamente condenado por todos. Pois a vida de dona de casa suburbana de Carol é tão imbecilizante quanto o emprego de Therese, e ambas partem para uma jornada sem volta.
Fonte: Livraria Cultura
A primeira coisa que impressiona neste livro é sua ousadia. Publicado em 1952, The Price of Salt (depois reeditado como Carol) conta a história de Therese Belivet, 19 anos, que deseja ser cenógrafa, mas trabalha em uma loja de departamentos. Um dia, no seu emprego monótono, ela conhece Carol Aird, uma mulher de 30 e poucos anos passando por um divórcio, e se apaixona à primeira vista. O livro relata a paixão arrebatadora de Therese pela mulher e o caso que se segue, mostrando uma história de amor contra a moral da época em que se desenrola, no entanto, sem culpa. Para Therese, conhecer Carol é uma revelação: em certo momento, ela se maravilha com o acaso que permitiu que se encontrassem, sabendo que as chances de felicidade para uma mulher que se sente como ela são radicalmente menores do que se ela se interessasse pelos homens em sua vida.
O livro é narrado em terceira pessoa pelo ponto de vista de Therese, e a exploração de sua vida interior é profunda e sensível, mostrando todas as sutilezas e contradições de um ser humano. No início, vemos a personagem lutar contra a vida vazia em que se encontra e na qual não consegue se enxergar: o emprego enfadonho, o namorado – Richard – com quem não sente uma grande conexão emocional e muito menos sexual, a falta de garantias e seguranças familiares e financeiras (a mãe a abandonou e ela mora sozinha). Encontrar Carol é um momento de clareza. Com a certeza de que nada mais importa, Therese atrai a atenção da mulher e elas começam a se conhecer, e Therese rapidamente compreende e aceita seus sentimentos pela outra.
Carol, por sua vez, parece indiferente e alheia no começo, e em partes é ríspida e até cruel com Therese. Por boa parte do romance é uma figura um tanto misteriosa, porque só a vemos através dos olhos encantados de Therese. Esta passa boa da obra sendo honesta consigo mesma, mas cautelosa com a outra, temendo perder essa conexão tão frágil que encontrou. São os anos 1950, e a homossexualidade é vista como uma patologia. Um escândalo podia destruir a vida de uma pessoa, especialmente no caso de mulheres – que já enfrentavam obstáculos e estavam à mercê de uma série de julgamentos e vulnerabilidades simplesmente por serem mulheres.
“É algo de que se envergonhar?”
“Sim. Você sabe disso, não sabe? […] Nos olhos do mundo, é uma abominação.”
[…]
“Você não acredita nisso.”
“Pessoas como a família de Harge.”
“Eles não são o mundo todo.”
“São o bastante. E você tem que viver no mundo.”
A atualidade das discussões impressiona. As reações de Richard, namorado de Therese, e Harge, ex-marido de Carol, são fáceis de imaginar em um homem em 2016, incluindo a violência que vem da rejeição (ainda mais quando se veem “trocados” por uma mulher). Mas nem tudo é preconceito: Dannie, um dos amigos de Therese, mostra uma mente mais aberta, e Abby, melhor amiga de Carol, tem um entendimento tácito da situação e é um apoio constante para a amiga.
A narrativa abarca todas as emoções flutuantes de Therese numa prosa subjetiva, às vezes quase onírica. O primeiro encontro das duas e a primeira noite que passam juntas são cenas especialmente bonitas (as cenas de sexo não chegam a ser explícitas, mas a autora não foge de explorar esses momentos). Gostei muito do estilo da autora; mesmo quando trata de assuntos banais, consegue capturar o leitor ao criar um retrato tão íntimo da protagonista.
[SPOILERS PARA O FIM DO LIVRO] Por mais que, até o fim do livro, a vida de Carol tenha sofrido uma reviravolta e ela tenha perdido a guarda da filha, ela e Therese acabam juntas. Quando se pensa que, até hoje, personagens femininas lésbicas ou bissexuais tendem a acabar mortas na TV e que muitas obras na literatura, no cinema e na TV ainda abordam a temática LGBT a partir de um viés trágico, o final feliz de Carol é nada menos que revolucionário, e a importância que teve para as mulheres que o leram na época foi imensa. Highsmith, que o publicou sob um pseudônimo, relatou ter recebido muitas e muitas cartas dizendo isso. [FIM DOS SPOILERS]
Em conclusão, é um romance belíssimo e de enorme importância histórica, que deveria ser mais conhecido, e agradeço ao filme por tê-lo trazido ao meu conhecimento. Falando nisso…
Livro x filme
O filme faz várias pequenas modificações na história e tem um ritmo bem mais rápido – senti falta de um desenvolvimento mais lento do romance (elas partem em sua viagem quase logo depois que elas se conhecem, por exemplo). Por outro lado, a adaptação permitiu que tivéssemos o ponto de vista de Carol, mostrando cenas com Harge e Abby que só imaginamos no livro, e isso faz toda a diferença.
Enquanto o livro é a história de Therese, o filme realmente faz jus ao título, permitindo que a magnífica Cate Blanchett brilhe na personagem. Vemos os conflitos de Carol muito mais de perto e compreendemos a personagem muito melhor. Apesar de ambas as atrizes serem mais velhas que as personagens (Rooney Mara em cerca de 10 anos e Cate, em 15), não consigo imaginar outras pessoas no papel – Cate não podia caber mais exatamente nas descrições que Therese faz dela ao longo do livro. (As anotações que fiz durante o filme incluem “Cate é perfeita” circulado várias vezes.) Rooney Mara também está muito bem como Therese, embora eu tenha sentido que o filme não tenha passado tão bem a sua obsessão completa com Carol (mas isso é compreensível, dado que eu tinha acabado de ler o livro, do ponto de vista de Therese).
De todo modo, apesar das alterações na trama, a essência das personagens é mantida e a tensão entre elas é palpável. As cenas de sexo são delicadas e claramente não voltadas a um olhar masculino. Aliás, os homens aparecem frequentemente como invasores inconvenientes ao mundo das duas, refletindo experiências que toda mulher lésbica (ou bi) (ou hétero) já passou. É um filme que, como o livro, retrata especificamente a experiência de mulheres, um tipo de história de que ainda precisamos, e muito.
Em conclusão, tanto o filme como o livro são belas obras, e recomendo ambos – mas, se gostou do filme, definitivamente procure o livro.
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The Price of Salt (Carol)
Autora: Patricia Highsmith
Editora: She Winked Press
Ano de publicação: 1952
E-book
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Citações preferidas
Ela sentia que, se chorasse o suficiente, tudo seria expulso dela, o cansaço e a solidão e as decepções, como se estivessem nas próprias lágrimas.
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“As pessoas sempre se apaixonam pelas coisas que não podem ter?”
“Sempre”, Carol respondeu, sorrindo.
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Uma ansiedade inarticulada, um desejo de saber, saber qualquer coisa, com certeza, tinha se alojado na garganta dela de tal modo que por um momento ela sentiu que mal conseguia respirar. Você acha, você acha, começava. Você acha que nós duas vamos morrer violentamente algum dia, ser subitamente apagadas? Mas mesmo essa questão não era definitiva o suficiente. Talvez fosse uma declaração, no fim das contas: eu não quero morrer ainda, sem ter conhecido você.
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Seria a vida, as relações humanas, sempre assim?, Therese se perguntou. Nunca terreno sólido sob os pés. Sempre cascalho, cedendo um pouco, fazendo barulho de modo que o mundo inteiro pudesse ouvir, de modo que você também sempre atentasse para os passos fortes e duros do pé intruso.
*
A felicidade era como uma videira se espalhando por ela, estendendo finas gavinhas, dando flores através da pele. Ela teve uma visão de uma pálida flor branca, tremeluzindo como se vista na escuridão ou através da água. Por que as pessoas falavam do paraíso?, ela se perguntou.
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Como era possível ter medo e estar apaixonada?, Therese pensou. As duas coisas não andavam juntas.
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