Sinopse:
Um dos maiores escritores do século 21, Philip K. Dick nunca deixou de suspeitar do mundo à sua volta, sempre ocupado em investigar o limite – tênue, às vezes – entre a realidade e a ilusão. Homem de muitas facetas, sempre se fez uma pergunta fundamental, que o acompanharia em todos os momentos da vida, desde seus tempos de aspirante a escritor até mais tarde, como autor já publicado, passando pelo Dick paranoico, pelo viciado em anfetaminas e pelo cristão fanático: o que é real?
Fonte: Livraria Saraiva
Para a grande maioria das pessoais, especialmente aquelas consideradas normais, a diferença entre ficção e realidade é clara. Vivemos, trabalhamos, comemos e amamos no que chamamos de mundo real, numa materialidade que está ao alcance dos nossos dedos, substancializada por nossos sentidos. Por outro lado, pensamos, sonhamos e imaginamos numa esfera diversa, comumente associada à nossa mente, à imaterialidade das nossas ideias, dos nossos sentimentos ou das nossas fantasias. Para quem gosta de fantasia ou ficção científica, ou simplesmente de literatura, essa distância é diminuída quando abrimos as páginas de um bom livro.
Mas e se as coisas não fossem assim? E se a linha tênue que separa o real do imaginário se rompesse e nós nos pegássemos numa existência em que a distinção entre uma coisa e outra fosse impossível? Viver em tal condição significaria um eterno pesadelo, um sonho terrivelmente lúcido do qual não conseguiríamos acordar, uma existência na qual não saberíamos, ao nos contemplar no espelho, se seríamos loucos ou sãos. Pois é essa insana condição que o escritor Philip K. Dick experimentou em boa parte de sua vida.
É nessa desconfortável existência que somos convidados a conhecer ao abrir a primeira página desta biografia. Escrita pelo autor francês Emmanuel Carrére, com tradução coerente e inspirada de Daniel Lühmann, que chega ao Brasil com mais de duas décadas de atraso, Eu estou vivo e vocês estão mortos é um assombroso exercício literário e biográfico. Em outra resenha, dedicada a comentar a biografia de H. P. Lovecraft, reclamei da vida prosaica do mestre do horror ter resultado numa narrativa igualmente trivial, quando havia naquele caso todo um universo imaginativo complexo e surpreendente a ser explorado.
Neste caso, Carrére não apenas consegue dosar perfeitamente fato (biográfico) e ficção (literária) como também perverte as distâncias entre as duas, justamente como acontecia no interior da mente de Dick, que ora encarava a imaginação como a mais pura realidade, ora via a realidade como a mais absurda fantasia. A linguagem de Carrére, como vocês verão nas citações que escolhi para encerrar essa resenha, são magistrais ao registrar literária e poeticamente o absurdo da mente de um escritor que via e pensava com surpreendente acuidade. Nós nunca sabemos se os loucos são loucos por pensarem demais ou de menos, mas no caso do criador de Blade Runner, a segunda hipótese não se aplica.
Entrecruzando as histórias sobre a criação de obras como Androides sonham com ovelhas elétricas?, O homem do castelo alto, Fluam minhas lágrimas e sua obra prima Ubik, com as peripécias psicodélicas, familiares e profissionais do escritor norte-americano, Carrére nos leva a visitar a mente de um criador que testemunhou pouco a pouco sua lucidez dissipar, seus familiares se afastarem e seus amigos o abandonarem. Mas, ao mesmo tempo, sem recair em preconceitos moralizantes ou descrições excessivamente sentimentais, Carrére também vai revelando quão difícil era o convívio com este genial e amargurado escritor, especialmente para suas companheiras.
Obcecado por sua irmã gêmea, morta logo depois do nascimento, Philip K. Dick criou contrapartes, duplos, realidade alternativas nas quais o pensamento e o sonho, a vida e a morte, o início e o fim da existência (ou da espécie) humana, pudessem ser desvelados e repensados. O custo dessa intensa existência imaginativa foi sua própria lucidez e saúde física, também avariada pelos medicamentos pesados que tomou durante toda a vida. Por outro lado, Carrére também desmistifica a relação de Dick com entorpecentes como cocaína ou LSD, com os quais o escritor sempre teve uma relação mais de suspeita do que de apreciação, ao contrário do que alguns resenhistas e leitores de sua obra poderiam supor.
A editora Aleph novamente investe na identidade psicodélica da edição, que dialoga com as outras obras do autor por ela publicadas, cuidado editorial mais do que bem-vindo ao emoldurar mundo de Dick. A capa rosa traz o título mesclando-se ao rosto do biografado, tornando a identificação do nome do autor e seu subtítulo um desafio de diferenciação, o que novamente apenas aponta e fortalece um dos principais temas do livro, a (não) distinção entre uma determinada informação e outra.
A próxima vez que você entrar no banheiro e buscar por um cordão de luminária que não está lá, lembre-se da vivência intensa e desconcertante de visitar o texto de Carrére ou de revisitar o mundo de Philip K. Dick. Depois dele, continuamos nos perguntando se nós sonhamos com cordeiros porque assim desejamos ou porque fomos exatamente programados para sonhar ou pensar assim.
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Eu estou vivo e vocês estão mortos – A vida de Philip K. Dick
Autor: Emmanuel Carrére
Tradutor: Daniel Lühmann
Editora: Aleph
Ano de publicação: 2016
360 páginas
Exemplar cedido em parceria com a Editora Aleph
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Citações favoritas:
E, pouco a pouco, chega-se facilmente à ideia de que o verdadeiro mundo se encontra do outro lado e que somos nós os habitantes do reflexo. Phil sabia disso desde a mais tenra infância, e sabia até mesmo um pouco mais do que os outros: porque ele sabia que vivia do outro do espelho. Deste lado, que lhe diziam ser o real, Jane é que tinha morrido, e não ele. Mas, do outro, era o contrário. Ele tinha morrido e Jane examinava o espelho onde seu pobre irmãozinho vivia. Talvez o verdadeiro mundo fosse o de Jane, talvez ele vivesse no reflexo, no limbo. O real tinha sido imitado à perfeição para que ele não se assustasse, mas ele vivia entre os mortos. Um dia, pensava ele, será preciso escrever um livro que conte isso: como alguém que descobre que, na verdade, estamos todos mortos.
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É uma ideia que tinha lhe acertado em cheio ao ler Hannah Arendt: que a finalidade de um Estado totalitário é a de desvincular as pessoas do real, fazendo-as viver num mundo fictício.
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Se é a empatia que define o humano, os androides poderão ser dotados dela. Se for a experiência religiosa, os androides irão acreditar em Deus, sentirão na alma a presença d’Ele e todos os seus circuitos impressos irão recitar o terço. Eles terão sentimentos, dúvidas, angústias. Vão escrever livros para dar forma a essas angústias. E, então, quem poderá dizer se é empatia real, piedade real, sentimentos, dúvidas, angústias e inspirações reais ou apenas convincentes simulações? Se o terrível grito do androide que se descobre como tal é uma simples modalidade do programa, uma reação prevista a determinados estímulos verbais e produzida pela ativação diligente de certo número de bits – uma descrição que, por mais que seja composta por células orgânicas, e não por componentes de plástico ou metal, se aplica inteiramente ao cérebro humano –, será que isso muda: a) tudo, b) nada, ou c) alguma coisa, mas não se sabe o quê?
Marque a alternativa de sua escolha.
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Como bem observa o blade runner não sem certo mal-estar, a melhor brincadeira possível para um androide seria fazer dele um blade runner.
Ou então, pensava Dick, um autor de ficção científica.
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Fragmentos de pensamento nadavam dentro de seu cérebro feito peixes num aquário de água pútrida. Aversões sombrias, apreensões vagas, lembranças de lembranças penosas. Quando o acaso os devolvia à superfície para morrer, um lampejo de medo o dominava, percorrendo seu sistema nervoso quase que inteiramente desconectado.
Adoro as edições padronizadas da Aleph com a obra do PKD, e realmente, essa capa dialoga muito bem com os demais livros. Sua resenha me deixou bem curioso quanto ao livro. Já li algumas entrevistas do autor e pude perceber a excentricidade dele. Com certeza esse livro estará presente nas minhas leituras futuras.
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