Sinopse:
A saga de Deuses americanos é contada ao longo da jornada de Shadow Moon, um ex-presidiário de trinta e poucos anos que acabou de ser libertado e cujo único objetivo é voltar para casa e para a esposa, Laura. Os planos de Shadow se transformam em poeira quando ele descobre que Laura morreu em um acidente de carro. Sem lar, sem emprego e sem rumo, ele conhece Wednesday, um homem de olhar enigmático que está sempre com um sorriso no rosto, embora pareça nunca achar graça de nada. Depois de apostas, brigas e um pouco de hidromel, Shadow aceita trabalhar para Wednesday e embarca em uma viagem tumultuada e reveladora por cidades inusitadas dos Estados Unidos, um país tão estranho para Shadow quanto para Gaiman.
Fonte: Editora Intrínseca
Quatro perguntas: O que acontece com os deuses antigos quando novas religiões são inventadas ou quando seus antigos adoradores atravessam um oceano? Qual o destino de um ex-presidiário que volta pra casa e descobre que não tem mais emprego, esposa ou melhor amigo? O que ocorre a uma pequena cidade quando se dá conta de que, ano após ano, suas crianças estão desaparecendo sistematicamente? E por fim, qual o resultado quando um autor mais acostumado a escrever quadrinhos aglutina essas três propostas num romance que se propõe ser um road trip sobre a identidade de uma país continental e multifacetado como os Estados Unidos? A resposta a essas questões você encontrará no romance Deuses americanos, obra a que editora Intrínseca acaba de relançar no Brasil numa edição muito especial.
Essa mistura, que tinha tudo para se tornar um caos narrativo e ficcional, para não dizer pretensiosa, leva o nome do escritor inglês Neil Gaiman. Em meu ranking de obras favoritas escritas por Gaiman, Deuses americanos está em segundo lugar apenas porque em primeiro está o imbatível Sandman, epopeia gráfica cujo último lançamento resenhamos recentemente aqui. Não coincidentemente, Deuses americanos é a obra que mais se parece com Sandman, apesar de Gaiman afirmar em entrevistas que tentou livrar-se de seus tiques europeus ao trabalhar no manuscrito. Tanto em uma obra quanto na outra, Gaiman está recriando e repensando milênios de tradição humana, objetivando não apenas nossos mitos e crenças como também aqueles grandes e/ou pequenos momentos que nos tornam humanos.
Assim, se o plot do romance originalmente publicado em 1999 apresenta um grande conflito cósmico entre deuses antigos e deuses modernos, no cerne da narrativa encontramos seu protagonista, o misterioso Shadow Moon, numa busca por identidade pessoal, segredos familiares e relações afetivas mal resolvidas, sobretudo com sua antiga esposa Laura, que mesmo depois de morta continua aparecendo para auxiliá-lo/atormentá-lo. Entrecruzando esses episódios, Gaiman nos brinda com pequenas narrativas fechadas – que comprovam sua excelência também nos contos, algo raro no caso de romancistas e autores de séries de longa extensão. Estas mapeiam a colonização americana, o poder das histórias, a vida e a morte de deuses e os espaços soturnos nos quais a sociedade moderna aloca suas anônimas divindades: seja em bancos de táxi, seja em palcos de casas de strip-tease.
O protagonista Shadow é sombrio e muitas vezes de poucas palavras, atuando bem mais como testemunha passiva dos acontecimentos do que como agente de boa parte deles. Já sua falecida esposa Laura e seu novo patrão, o hilário Wednesday, roubam a cena, junto com outras aparições divertidas, perigosas e sedutoras, como a jovem Sam, a deusa tecnológica Media e o hilário Senhor Nancy – que reaparecia anos depois em um spin off de Deuses americanos: Os filhos de Anansi.
Além do grande elenco de coadjuvantes, os próprios espaços, casas e lugares visitados são também personagens. Se a cartografia dos EUA fosse uma epopeia, os becos, prédios e pontos turísticos à beira de estrada seriam seus heróis. E Gaiman não apenas sabe disso, como aproveita para dispor diante do leitor e da leitora a sua própria versão do país: sombrio, triste e decadente, condenado senão ao apocalipse então ao pesadelo desperto da descrença.
Quanto a seus personagens memoráveis, findamos a narrativa com muita vontade de reencontrá-los. Gaiman atende este pedido no romance supracitado e nos contos “O monarca do vale” (Coisas frágeis) e em “Cão negro” (Alerta de risco), além de ele próprio aludir à possibilidade de novas aventuras de Shadow no futuro. Além disso, o romance apresenta solilóquios belíssimos, que funcionam como coda a toda a narrativa, como na longa fala de Sam (“Eu sou capaz de acreditar…”), na resposta ao poema de John Donne (“Nenhum homem é uma ilha”) ou em reflexões sobre como contar histórias (“Havia uma menina, e seu tio a vendeu”). (Para ler essas passagens e mais outras três, vá ao final desta resenha.)
Ademais, o enredo apresenta instruções bem didáticas de como aprender truques com moedas, golpes usando joias verdadeiras e falsos bispos, além de embustes envolvendo centenas de dólares e violinos falsificados. Num livro sobre o poder do mito, das histórias e de deuses que são tão falhos, frágeis e falsos quanto qualquer ficção, essa ironia não pode passar despercebida. Nem esta e nem muitas outras encerradas por esse baú narrativo.
O trabalho da editora Intrínseca é impecável. Relançando no Brasil todos os romances e coletâneas de Gaiman em especialíssimas versões do selo “Edição Preferida do Autor”, o livro corresponde à versão original de Gaiman – sem os cortes editoriais da primeira edição de 1999 –, com paratextos do autor sobre o livro, passagens cortadas e uma entrevista sobre poderes divinos, atrações de beira de estrada e estranhas viagens de avião. Num romance que abre com uma dessas jornadas, a história de Gaiman funciona como um belíssimo e engraçado eco temático.
Agora, é esperar para conferir a versão televisa do livro, que sai no próximo ano, com roteiro do próprio Gaiman e produção de Bryan Fuller (responsável pelas saudosas Pushing Daisies e Hannibal). A julgar pelo trailer da série, cujo elenco é encabeçado por Ricky Whittle e Ian McShane, que vivem Shadown e Wednesday, ela será um belo espetáculo visual e sonoro. Nada menos do que se deve esperar de sua fonte, carregada de referências a cinema, literatura e música.
Trailer da Série da Starz
Numa história que promete o desfecho de uma guerra milenar, que levará ao próprio apocalipse, o que fica na memória dos leitores deste romance, sem dúvida um dos mais importantes das últimas décadas, são os episódios deliciosos e comoventes de um herói bem humano em busca de um recomeço existencial e espiritual, de seu amor perdido e de deuses que, depois de mortos, poderão ressuscitar, senão no mundo material, em nossa imaginação, tão carente de fé nesses dias turbulentos em que estamos vivendo.
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Deuses Americanos
Autor: Neil Gaiman
Tradutor: Leonardo Alves
Editora: Intrínseca
Ano de publicação: 2001
Ano desta edição: 2016
576 páginas
Exemplar cedido em parceria com a Editora Intrínseca.
Citações favoritas:
(Desnecessário explicar que escolher seis citações favoritas num livro em que sublinhei mais de 200 é um exercício no mínimo sofrível. Mas vamos lá…)
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Eu sou capaz de acreditar em coisas que são verdade e em coisas que não são verdade, e em coisas que ninguém sabe se são verdade ou não. Posso acreditar no Papai Noel e no Coelhinho da Páscoa e na Marilyn Monroe e nos Beatles e em Elvis e no Mister Ed. Olha, eu acredito que as pessoas podem sempre se aperfeiçoar, que o conhecimento é infinito, que o mundo é controlado por cartéis secretos formados por bancos poderosos e que alienígenas vêm para cá com regularidade, uns bonzinhos que parecem lêmures enrugados e uns malvados que mutilam animais e querem roubar nossa água e nossas mulheres. Acredito que o futuro vai ser uma porcaria e que o futuro vai ser o máximo e que um dia a Mulher Búfalo Branco vai voltar e destruir todo mundo.
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Nenhum homem, proclamou Donne, é uma ilha, e ele estava enganado. Se não fôssemos ilhas, estaríamos perdidos, afogados nas tragédias uns dos outros. Nós nos insulamos (uma palavra que significa, literalmente, lembre-se transformado em ilha) diante da tragédia alheia, devido a nossa natureza de ilha, e devido ao aspecto repetitivo das histórias. Houve um ser humano que nasceu, viveu e, de alguma forma, morreu. Pronto. Você pode preencher os detalhes a partir de sua própria experiência. Uma história tão pouco original quanto qualquer outra, uma vida tão singular quanto qualquer outra.
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A ficção permite que nos esgueiremos para dentro dessas outras cabeças, desses outros lugares, e olhemos por outros olhos. E então, na história, paramos antes de morrer, ou morremos ilesos na pele de terceiros, e no mundo além da história viramos a página ou fechamos o livro e continuamos com nossa vida. Uma vida que é, como todas as outras, diferente de todas as outras. E a verdade pura e simples é esta: havia uma menina, e seu tio a vendeu.
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– Diga “Nunca mais” – pediu Shadow.
– Vai se foder – respondeu o corvo.
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Nada disso tinha como estar realmente acontecendo. Se precisar de alguma ajuda, você pode imaginar que se trata de uma simples metáfora. Afinal, religiões são, por definição, metáforas: Deus é um sonho, uma esperança, uma mulher, um ironista, um pai, uma cidade, uma casa de muitos cômodos, um relojoeiro que deixou o melhor cronômetro no deserto, alguém que o ama – talvez até, apesar de tudo provar o contrário, um ser celestial cujo único interesse é garantir que seu time de futebol, seu exército, sua empresa ou seu casamento viceje, prospere e triunfe apesar de todos os reveses. As religiões são lugares onde se posicionar para olhar e agir, pontos a partir dos quais vemos o mundo.
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– Sabem, acho que prefiro ser humano a ser deus. A gente não precisa que ninguém acredite que existimos. A gente existe de qualquer jeito. É o que a gente faz.