Esta resenha foi feita com base no ebook da Edizioni e/o e contém spoilers dos outros livros da série. A tradução de trechos foi feita por mim.
Sinopse:
No terceiro volume da série napolitana, Lenu e Lila partem para os embates da vida adulta. Numa sequência angustiante e sem espaço para a inocência de outrora, Elena Ferrante coloca o leitor no meio do turbilhão que se forma das amizades, das relações sociais e dos interesses individuais. História de quem foge e de quem fica é uma obra de arte a respeito do amor, da maternidade, da busca por justiça social e de como é transgressor ser mulher em um mundo comandado pelos homens.
Fonte: Livraria Cultura
Da última vez que vimos Lenu, ela estava reencontrando seu amor de infância. O terceiro volume da série não retoma esta cena imediatamente – em vez disso, nos dá um vislumbre da vida atual da narradora, num momento um tanto sombrio e melancólico que indica a guinada para eventos ainda mais dramáticos que ocorrerão neste livro.
Enquanto História do novo sobrenome teve trechos mais lentos e focou-se bastante em questões românticas, este livro expande o universo da narradora e me pareceu muito mais dinâmico e cheio de urgência. A vida das duas amigas se separa mais nitidamente, ao mesmo tempo que continua com seus paralelos: Elena na faculdade, onde conhece o futuro marido e aumenta sua influência social; e Lila em Nápoles, após deixar o próprio marido e se tornar uma pária para a família e boa parte dos amigos.
A obra consegue mesclar ainda melhor os âmbitos pessoal e social que as anteriores. Enquanto Elena lida com questões como o casamento e a maternidade (com suas alegrias e frustrações) e o dilema de como equilibrá-los com suas ambições profissionais, a esfera familiar é cada vez mais invadida por questões políticas e sociais. Os anos 70 foram uma época conturbada na Itália; divergências ideológicas, ataques terroristas e movimentos estudantis e trabalhistas influenciam a vida das personagens e invadem a bolha familiar.
Em meio a um clima de ebulição, vários personagens se envolvem na luta armada e em movimentos sociais, inclusive – a contragosto – Lila, que começa a trabalhar em uma fábrica sob condições medonhas e se vê envolvida na luta por direitos. Essa subtrama é uma das mais intensas (e tensas) da obra, e consegue abordar diversos pontos de vista à medida que expõe diferenças entre a luta ideológica e a prática, entre a teoria e a realidade, entre diversas classes sociais. Em certo ponto, Lila diz a uma ativista: “Eu sei o que significa uma vida abastada cheia de boas intenções, você sequer imagina o que é a verdadeira miséria”.
Enquanto isso, Elena, não surpreendentemente, ainda é atormentada por questões de identidade. À medida que se afasta de Nápoles, da família e dos antigos amigos e tenta se reinventar como uma senhora casada e culta, autora de livros, continua sentindo suas contradições e nunca consegue realmente escapar de suas origens.
Além de se envolver em questões políticas, sua confusão interior só aumenta quando ela tem contato com o pensamento feminista que toma força na época, o que para mim foi uma das partes mais fascinantes do livro. Esses romances sempre foram focados na experiência feminina, e neste volume continuam alguns questionamentos sobre sexualidade e violência de gênero. Lenu, que sempre tinha pensado sobre a condição de ser mulher – em função da sua inescapável realidade – adquire ferramentas teóricas para pensar a questão. Ao mesmo tempo, os princípios de autonomia e empoderamento que ela absorve entram em conflito com seus desejos e decisões, o que às vezes fica patente até mesmo para ela, mas não a impede de tomar decisões… questionáveis.
Ferrante é mestre em criar personagens complexas. Mesmo aquelas secundárias, que vemos apenas de relance desde o primeiro livro, sugerem uma profundidade limitada apenas pela narração em primeira pessoa. Não há “vilões”, apenas pessoas tão verossímeis que você poderia encontrá-las na rua – e talvez por isso mesmo seja tão fácil odiar alguns deles, inclusive a protagonista, que neste livro toma uma das piores decisões que eu já tive o desprazer de ver uma personagem tomar. (Por mais que, novamente, seja inteiramente verossímil que faça o que faz.) Como de costume, porém, é mais fácil detestar os homens, e esse livro testou minha paciência várias vezes com Pietro e Nino.
Este terceiro volume é intenso e continua entrelaçando uma série de temas com uma habilidade narrativa magistral, enquanto revela cada pensamento, instinto e contradição de suas personagens, que a essa altura o leitor já sente conhecer. Começo o último livro da série já com saudades.
*
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História de quem foge e de quem fica
Tetralogia napolitana – volume 3
Autora: Elena Ferrante
Tradutor: Maurício Santana Dias
Editora: Biblioteca Azul
Ano de publicação: 2016
416 páginas
Citações preferidas
“Vocês, professores, insistem tanto no estudo porque é seu ganha-pão, mas estudar não serve de nada, nem mesmo melhora as pessoas – na verdade, as torna ainda mais malvadas.”
“Elena se tornou mais malvada?”
“Não, ela não.”
“Como não?”
Lila enfiou na cabeça do filho o capuz de lã.
“Fizemos um pacto quando crianças: a malvada sou eu.”
*
Mas a inquietação não cessou, estava crescendo em mim uma vontade de violação, queria me desregular como me parecia que estava se desregulando o mundo. Queria escapar mesmo que uma só vez do matrimônio ou, porque não, de cada aspecto da minha vida, daquilo que eu havia aprendido, daquilo que havia escrito, daquilo que tentava escrever, da menina que havia posto no mundo.
*
Tornar-se. Era um verbo pelo qual fora sempre obcecada, mas percebi pela primeira vez só naquela circunstância. Eu queria tornar-me, mesmo que não houvesse jamais sabido o quê. E tinha me tornado, isso era fato, mas sem um objeto, sem uma verdadeira paixão, sem uma ambição determinada. Eu quisera me tornar qualquer coisa – era esse o ponto – só porque temia que Lila se tornasse sabe-se lá quem e eu ficasse para trás. O meu tornar-se era tornar-se no seu encalço. Eu precisava recomeçar a tornar-me, mas para mim, como adulta, fora dela.
Não li os outros livros, mas sua resenha( muito bem escrita, por falar nisso) me chamou atenção; bem como algumas questões do livro, principalmente essa:
“Enquanto isso, Elena, não surpreendentemente, ainda é atormentada por questões de identidade”
Preciso ler os outros dois para entende este?
Parabéns pela resenha e até logo =
Oi! Precisa sim, é uma história sequencial. Confere a resenha do primeiro livro, vê se vc se interessa 🙂
Abraço!
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