[Resenha] História da menina perdida

história da menina perdida

Esta resenha foi feita com base na edição em italiano da e/o e contém spoilers dos volumes anteriores. A tradução dos trechos foi feita por mim.

Sem sinopse para não dar spoilers!

 

Deixamos Lenu tomando uma decisão merda, que já antecipava que este livro seria cheio de desgraças. Mas mesmo para quem já se preparava para sofrer, este último volume me presenteou com tragédias inesperadas, ao mesmo tempo que genialmente conectou o começo da série ao seu final.

Elena, então, abandona o marido para viver com Nino – mas, como qualquer um teria imaginado, quem se prejudica mais na história é ela, que tem que lidar com a repreensão alheia (principalmente do ex-marido e da mãe), além dos efeitos que isso causa nas filhas, enquanto Nino continua levando uma vida dupla (ou tripla, ou quádrupla…). Em toda a história dos dois, o que mais causa impacto, em especial neste volume, é como a protagonista continua voltando para um homem que lhe dá provas repetidas de não ser confiável, e é fácil odiar não só Nino (quem, por sinal, eu detestei desde o princípio e foi ótimo estar certa) mas também a própria Elena. O frustrante – como é praxe nessa série – é que é uma situação tão comum e tão verossímil que não custa esforço do leitor crer que mesmo uma mulher inteligente e esclarecida como Elena se deixaria levar dessa maneira, e reforça que algumas coisas têm que ser vividas para ser superadas.

O livro também traz uma última aproximação entre Lila e Lenu, à medida que esta volta não só para Nápoles, mas vai morar com as filhas no mesmo prédio em que mora a amiga de infância. As garotas lhe apresentam problemas, muito claramente relacionados aos traumas causados pela separação dos pais e às decisões da própria Elena. Não que ela seja uma mãe má – mas, de todo modo, o significado dessa expressão em si já é questionável, e um dos muitos temas da série é justamente quais são as fronteiras entre as diferentes identidades de uma mulher: esposa, mãe, amante, profissional. Até que ponto a profissão e as ambições de Elena beneficiaram ou prejudicaram as filhas, e teria ela a obrigação de esquecer delas para se dedicar às meninas exclusivamente? De qualquer forma, todas as nossas experiências não são moldadas, para o bem e para o mal, pelas nossas origens e as de nossos pais? A grande questão da vida de Elena é justamente não poder fugir do bairro em que nasceu, por mais que se afaste dele.

À medida que a série se aproxima dos dias atuais e os anos 80 dão lugar aos 90 e à década de 2000, a história traz aspectos modernos, como ver os personagens entrando na era digital, mas também mostra como as últimas décadas mudaram drasticamente a experiência de nascer mulher. Elena continua sentindo que tudo que faz é uma luta constante para se libertar de influências e imposições masculinas, e nunca se sente realmente confiante e confortável com suas realizações, enquanto vê as filhas terem muito mais desenvoltura e confiança em seu papel no mundo – e elas não questionam as origens de alguns direitos que ela conquistou com tanto esforço. Nós às vezes perdemos noção de que a vida, apenas algumas décadas atrás, era radicalmente diferente, e o livro faz um belo trabalho mostrando o legado das mulheres do passado.

O passar do tempo também traz mudanças sociais e políticas. Não há mais aquela atmosfera revolucionária e tensa dos anos 60 e 70, o que se reflete nas posições mais moderadas de Nino, por exemplo. Ao mesmo tempo, fica claro que essa resignação ao status quo e perda do ímpeto revolucionário não atinge personagens como Pasquale, que por sua origem pobre e pelos princípios aprendidos desde cedo, continua lutando. À medida que Lenu tenta conciliar suas lembranças do garoto que conhecia na infância com a pessoa que ele se tornou (terrorista foragido), humaniza figuras como ele. Outro dos antigos amigos de Lenu, Alfonso, que aparecia esporadicamente nos outros livros, neste aparece um pouco mais e revela a influência que Lila teve em sua vida. Embora não se use a palavra, fica claro que se trata de uma personagem trans – e não surpreende o sofrimento que isso lhe acarreta.

Por fim, Lila. Ela, que é o coração de toda a série, o eixo em torno do qual a vida de Elena gira desde a infância, sofre nesse livro seu maior baque. A série inteira é uma jornada para responder à questão: como elas chegaram aqui – ao presente, à primeira cena do primeiro livro, em que Lila está desaparecida? A resposta envolve uma tragédia pessoal, que força ao máximo o relacionamento entre as duas amigas, já estressado ao longo dos anos por uma série de conflitos, ressentimentos, ciúmes, frustrações e por aí vai. Essa relação, que é o cerne dos livros, fica cada vez mais insustentável à medida que surgem paralelos entre passado e presente, entre as mães e suas filhas. Talvez o maior trunfo da série, entre as muitas coisas que faz bem, é mostrar como duas pessoas conectadas num nível profundo podem se elevar ou se destruir mutuamente, mesclando os limites do amor e do ódio. Ferrante retrata esse relacionamento com uma complexidade estarrecedora em seu realismo e humanidade.

Além desta tragédia específica, para o leitor fica o peso do potencial perdido de Lila, que nunca pôde se desenvolver plenamente, pelas circunstâncias, pela pobreza, pelo fato de ser mulher, e por sua própria personalidade. Também se retomam os misteriosos ataques que a acometem de vez em quando e que, pelas descrições, me parece ser um tipo de cinestesia, embora não se possa resumi-los a nada inteiramente físico, havendo um mal-estar subjacente que sempre perturbou a mente brilhante da personagem e que atinge seu ponto máximo aqui.

Cheguei ao final da série implorando para que não acabasse, lendo as últimas páginas com a dor da separação. Já elenquei as inúmeras qualidades dos livros ao longo das quatro resenhas, mas vale ressaltar uma última vez o seu magnífico e complexo retrato da vida e das experiências femininas. No fim, as vidas que Ferrante criou são tão palpáveis que me parece irreal que Lenu e Lila não estejam realmente por aí, andando pelo mundo, à espera de um reencontro.

*

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História da menina perdida
Tetralogia napolitana – volume 4
Autora: Elena Ferrante
Tradutor: Maurício Santana
Editora: Biblioteca Azul
Ano de publicação: 2016
480 páginas

 

Citações preferidas

Agora que estou perto do ponto mais doloroso da nossa história, quero procurar na página um equilíbrio entre eu e ela que nesta vida não consegui encontrar nem mesmo entre eu e eu mesma.

*

À ideia de não o ver mais, eu me desfolhava dolorosamente, a mulher livre e culta perdia pétalas, se destacava da mulher-mãe, e a mulher-mãe tomava distância da mulher-amante, e a mulher-amante da mulher vulgar e furiosa, e todas pareciam prestes a flutuar em direções diversas.

*

Percebi de repente que a memória era já literatura, e que talvez Lila tivesse razão: o meu livro – que de todo modo estava fazendo tanto sucesso – era realmente ruim, e era ruim porque bem organizado, porque escrito com um cuidado obsessivo, porque eu não soubera imitar a banalidade descoordenada, antiestética, ilógica, desformada das coisas.

4 respostas em “[Resenha] História da menina perdida

  1. Adorei a resenha.

    Li com uma sensação de densidade, é como se o rancor e desilusão atravessassem as páginas (o que é maravilhoso).

    Acho que é a primeira vez que acompanho uma protagonista com raiva e torcendo para ela se dar mal por causa de toda a história com o Nino e bem no final a Greco foi bem cretina escrevendo sobre a história das duas, sendo que a Lila não queria.

    Estou na tristeza pós-fim do livro, aliás pós-fim da série, vou ver se leio o Dias de Abandono agora.

    • Oi, Emerson!

      Concordo, é bem essa sensação de densidade mesmo. A Ferrante cria personagens tão reais que os sentimentos realmente ultrapassam as páginas. E apesar de eu simpatizar muito com a Elena, ela também me deixou com muita raiva ao longo da série. Mas gosto disso – que a autora não tenta dar razão à protagonista sempre, mas faz ela tomar decisões ruins e ser uma pessoa com defeitos.

      Ainda não li as outras obras dela, mas estão na fila.

      Obrigada pelo comentário!

  2. Pingback: [Especial] Livros favoritos de 2017 + lista de leituras do ano | Sem Serifa

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