Em Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, o leitor acompanha a transformação de Catierina Lvovna, a jovem e entediada esposa de um velho comerciante, em uma assassina. Ela é uma heroína fria e calculista, que pode ser vista também como um símbolo da libertação feminina em relação à opressão patriarcal, mas que em nenhum momento se arrepende das atrocidades cometidas.
Fonte: Livraria Cultura
Nikolai Leskov faz parte da nova leva de autores russos que a editora 34 está apresentando ao público brasileiro, uma vez que (suponho) já esteja se esgotando a obra dos grandes. Algum tempo atrás, li e adorei um dos livros do autor – A fraude e outras histórias, uma coletânea de contos bem variados, com tipos pitorescos e histórias um tanto fantásticas e absurdas. Leskov pode não ser tão famoso, mas sua genialidade foi reconhecida pelos autores mais diversos. Tolstói, de quem era contemporâneo e amigo, o chamou de “o escritor do futuro”; Górki disse que ele “era o escritor mais profundamente enraizado no povo, e o mais inteiramente livre de influências estrangeiras”; e Walter Benjamin até lhe dedicaria um ensaio: “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. Com recomendações dessas, nem preciso dizer que vale a pena apanhar um livro do autor.
Esta novela, que se transformaria em ópera nos anos 1930 (logo proibida por Stálin), conta a história de Catierina Lvovna, esposa profundamente entediada de um comerciante, que vive numa cidade distrital. As coisas mudam quando o marido viaja, deixando apenas o sogro de Catierina na casa. Na ausência do marido, a moça é seduzida pelo capataz dele, o charmoso e esperto Serguiêi. Se a história parece familiar, Catierina é tudo menos um clichê. A moça, no início tímida, logo se entrega ao romance sem hesitação nem remorso, e Serguiêi se torna sua única razão de viver. Para mantê-lo por perto e não perder a liberdade que o caso lhe dá, Catierina começa a cometer um crime atrás do outro.
É difícil parar de ler: o ritmo da narrativa é acelerado, um pouco contista, e muitos fatos se sucedem rapidamente em suas 90 páginas. O clima criado por Leskov se torna progressivamente macabro à medida que essa bela senhora de vinte e tantos anos começa, sem nenhum sinal de arrependimento, a assassinar pessoas. A narrativa totalmente objetiva e simplista torna os crimes ainda mais sombrios.
Aliás, o legal é ver como Catierina Lvovna (cujo sobrenome vem da palavra lev, leão) logo ultrapassa Serguiêi em audácia, de modo que até o amante – que se achava tão esperto por seduzir a patroa! – começa a ficar horrorizado com suas ações. É impossível imaginar as heroínas de Tolstói ou Dostoiévski fazendo algo semelhante: os dilemas morais de Anna Karenina sequer passam pela mente de Catierina, e os crimes da nossa Lady Macbeth fariam a jovem Sônia de Crime e Castigo desfalecer.
Se a protagonista é a grande atração da história, a narrativa tem outras qualidades, como a ironia do autor e sua galeria de personagens, que nos apresenta uma imagem da Rússia diversa daquela oferecida pela maioria dos escritores. Leskov passou a vida viajando pelo imenso território de seu país, vivendo entre o povo, e sua obra dá voz às pessoas com suas peculiaridades e “erros” (mantidos na tradução de Paulo Bezerra). Aliás, a própria Lady Macbeth é baseada numa lembrança de infância de Leskov, e na segunda parte do livro (da qual não quero dar spoilers!) o autor nos apresenta um lado mais obscuro da vida russa.
Como sempre, a edição da 34 é excelente, incluindo notas sobre termos específicos da língua original e observações culturais, além de um posfácio do tradutor.
Para fãs de literatura russa, é imperdível!
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Lady Macbeth do distrito de Mtzensk
Autor: Nikolai Leskov
Tradutor: Paulo Bezerra
Editora: 34
Ano de publicação: 1865
Ano desta edição: 2009
96 páginas
E veja também:
A fraude e outras histórias. Trad. Denise Sales. Editora 34, 2012. 224 p.
Citações preferidas
─ Escuta aqui, Seriója! Como as outras agiram eu não sei, nem quero saber; só sei como tu mesmo me seduziste para esse nosso amor de agora, e tu mesmo sabes que eu me resolvi por ele tanto por minha própria vontade quanto por tua astúcia, de sorte que se tu te meteres a me trair, Seriója, se tu me trocares por outra qualquer, seja ela quem for, aí, meu amiguinho do peito, me desculpa, porque com vida não vou me separar de ti.
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[…] nas mãos de Serguiêi apareceram uns calos grandes, provocados pela alavanca e pela pá de cavar: em compensação, Zinóvi Boríssitch estava tão bem acomodado em sua cova que sem a ajuda de sua viúva ou do amante dela ninguém iria descobri-lo antes da ressurreição universal.
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Aliás, para ela não existia nem a luz nem a escuridão, nem o mal nem o bem, nem o tédio nem a alegria; ela não compreendia nada, não amava ninguém, não amava nem a si mesma.