Na Paris do século XV, a cigana Esmeralda dança em frente à catedral de Notre Dame. Ao redor da jovem, dançam outros personagens inesquecíveis – como o cruel arquidiácono Claude Frollo, o capitão Phoebus, a velha reclusa Gudule e, claro, o disforme Quasímodo, o corcunda que cuida dos sinos. Com uma trama arrebatadora, que tem a cidade de Paris como bem mais do que um mero pano de fundo, Victor Hugo criou um dos grandes clássicos do romantismo francês, de leitura irresistível.
Fonte: Zahar.
Existem alguns clássicos que fazem parte do imaginário coletivo e entram em nossos corações muito antes de termos contato com sua forma original. Para mim, é o caso de O corcunda de Notre Dame: passei minha infância vendo e revendo a adaptação da Disney, uma das minhas favoritas. Dezoito anos depois do lançamento do filme, decidi ler o livro.
Esta é uma das animações mais sérias e sombrias da Disney, com temas bem adultos, e com o livro não é diferente. Claude Frollo, Esmeralda e Quasímodo são protagonistas de uma história sobre obsessão, pecado e loucura, na qual o leitor deve esperar momentos bem tristes e várias injustiças. Cada personagem é condenado pelas próprias paixões, sofredores sem necessariamente ter um pecado pelo qual pagar.
Se comparada a obras contemporâneas, pode causar estranheza (mas de forma agradável!) por sua estrutura difusa, sem um herói ou uma história bem centralizada. No entanto, não deixa de envolver e surpreender o leitor. Entrelaçando com maestria cada subtrama, o autor nos mostra ora a personalidade e as obsessões de Claude Frollo, ora a triste história de uma pobre velha isolada num buraco da cidade, ora os sentimentos da delicada e inocente Esmeralda, entre outros personagens. E assim vai construindo a trama, saltando de um personagem a outro, sempre nos deixando curiosos para saber mais sobre os nossos favoritos.
Victor Hugo constrói seus personagens de forma complexa e sem manequeísmo. Conta a história, escolhas e ações de cada um sem interferência do narrador e sem distorção que permita ao leitor classificar qualquer um deles como herói ou vilão. Aliás, o narrador é quase completamente neutro, exceto por um ou outro comentário sarcástico, que dão humor à leitura e ajudam a conquistar o leitor contemporâneo. Esse discreto tom de humor é fundamental também para atenuar o impacto causado pela série de sofrimentos narrados na obra. Pior: alguns dos principais acontecimentos são acarretados por mal-entendidos, o que seria cômico, não fossem eles trágicos.
O arquidiácono Claude Frollo é um dos personagens mais complexos e bem descritos, um padre que evolui lentamente perante o leitor, tornando-se completamente perturbado e pouco a pouco afetando (e destruindo) a vida de todos a seu redor. Já o fiel Quasímodo, que dá nome à obra, pouco aparece ao longo da história – pudera, pois é surdo e parcialmente cego, além de isolado da sociedade. Ainda assim, sua participação é fundamental e emocionante, e é muito fácil simpatizar com a estranha figura. Outro personagem muito bom é o hilário Pierre Gringoire, um coadjuvante que merece destaque. Além de servir de peça chave para algumas grandes mudanças de rumo na história, o filósofo e dramaturgo é pedante, prático, egoísta e exageradamente sincero, o que gera diálogos divertidos e cativantes.
O livro é dividido em onze partes, totalizando 59 capítulos. Destes, uns quatro são longas e detalhadas digressões sobre a arquitetura de Paris e da catedral. A não ser que você seja fascinado por arquitetura (sei que há alguns de vocês por aí…), são capítulos bem chatinhos e que demoram a passar, principalmente quando o autor os coloca depois de momentos tensos e cliffhangers. A verdade é que Victor Hugo escreveu este romance histórico sobre a Paris da Idade Média com a intenção de apontar a importância de preservar a catedral de Notre Dame (o que surtiu efeito, como mencionamos aqui), mas na prática o leitor acaba passando às pressas pelas partes mais teóricas, afoito para saber o desenrolar da trama.
Por se tratar de um clássico em domínio público (publicado pela primeira vez em 1831), há várias edições no mercado, muitas delas adaptadas ou reduzidas. Recomendo fortemente a edição da Zahar. Comentada e ilustrada, ela traz muitas notas explicativas (que você pode pular, sem prejuízo à compreensão da trama), mas, mais importante, o texto é integral e traduzido direto do francês, o que favorece a fidelidade ao tom e à estrutura usados pelo autor, com nuances sem as quais a história poderia parecer brutal ou seca demais.
Com uma estrutura intricada e personagens impressionantes de tão bem desenvolvidos, o clássico de Victor Hugo é uma leitura densa e inesquecível, que impressiona e, acima de tudo, surpreende.
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O corcunda de Notre Dame
Autor: Victor Hugo
Tradutor: Jorge Bastos
Editora: Zahar
Ano de publicação: 1831
Ano desta edição: 2013
496 páginas
Citações favoritas:
E a catedral, para ele, não representava somente a sociedade, mas também o universo e toda a natureza. Ele não almejava outro respaldo além dos vitrais sempre em flor, outra sombra além das folhas pétreas que verdejavam nos tufos cheios de passarinhos dos capitéis saxões da nave, outras montanhas além das torres colossais da igreja, outro oceano além de Paris a murmurejar a seus pés.
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Esmeralda era, na opinião de Gringoire, uma criatura inofensiva, encantadora e bonita, apesar de um trejeito particular que tinha. Moça ingênua e apaixonada, tudo ignorando e por tudo entusiasmada, não sabendo ainda o que diferencia uma mulher de um homem, mesmo em sonho. Era a sua natureza. Uma espécie de mulher abelha, com asas invisíveis nos pés e vivendo num turbilhão.
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E o inexplicável é que quanto mais cega a paixão, mais tenaz. É sem se apoiar em razão alguma que ela é mais firme.
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Pensar em ler Victor Hugo me deixa ansiosa e um pouco temerosa, ainda mais em se tratando de “O Corcunda de Notre Dame”. Acredito que isso acontece porque todas as vezes que assisti as adaptações da história, sempre chorei muito. Como sempre me envolvo muito mais com palavras escritas, penso que o mais provável é que eu me afogue em lágrimas se a emoção do enredo não tiver ficado restrita apenas aos longas. Mas não será isso que irá me impedir (não muito tempo, pelo menos) de lê-lo, pois em se tratado de clássicos, há de se deixar os temores de lado, não é?
Super beijo,
Isabelle.
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