Coletânea dedicada a Daniil Kharms (1905-1942), um dos mais talentosos e autênticos escritores da vanguarda russa. Além de textos e poemas selecionados e da série Causos (miniaturas escritas entre 1933 e 1939), a edição, traduzida do original, inclui “A velha”, de 1939, sua única novela, e a peça Elizaveta Bam, de 1928, hoje por muitos considerada um dos marcos do teatro do absurdo.
Fonte: Livraria Cultura
Ouvi o nome Daniil Kharms pela primeira em um curso breve chamado “A poesia do absurdo”, com a professora (e uma das tradutoras deste livro) Aurora Fornoni Bernardini. Acabei comprando o livro depois do curso, intrigada para ler mais coisas do autor além do fenomenal conto “A velha”, que está incluso nesse volume.
Kharms só começou a ser publicado na Rússia no final da década de 1980, e era praticamente desconhecido no Brasil – este livro é a primeira publicação sua por aqui, uma coletânea de prosa, poesia e teatro, e haverá um volume 2, ainda sem data de lançamento.
Hoje considerado um dos grandes nomes das vanguardas russas, Kharms sofreu o destino trágico comum a muitos artistas da época stalinista e morreu cedo, provavelmente de fome, numa cela psiquiátrica. A vida nos anos 1930 não foi nada fácil para um artista completamente fora dos parâmetros oficiais, e Kharms passou dificuldades que se entreveem nas histórias dessa obra: assim, entre uma situação absurda e outra, temos flashes do que era a vida nos anos 1930; a fome, a pobreza, as habitações coletivas…
Não que esse livro deva ser lido com qualquer viés realista – as histórias de Kharms são feitas a partir do cômico, do paradoxo e do nonsense. Aliás, a única comparação que consigo fazer à experiência de ler seus contos é assistir a um sketch do Monty Python. Sensação apenas reforçada na – para mim – absolutamente inapreensível peça Elizaveta Bam. Além da prosa, o volume inclui a poesia de Kharms (com o original russo ao lado), alguns contos e poemas que ele escreveu para crianças (um dos quais lhe rendeu sua primeira prisão pelo regime stalinista!), e o manifesto da OBERIU, grupo de vanguarda do qual fazia parte. Mas o destaque é mesmo “A velha”, um conto sobre um homem que se vê diante de uma velha que entra e morre em seu apartamento. (Esse conto, aliás, foi transformado em uma peça que entrou em cartaz em São Paulo hoje e vai para o Rio – infelizmente, os ingressos já estão esgotados!)
Enfim, para ajudar um pouco o leitor que se vê pasmo no encontro desse autor peculiar, no final do livro há um posfácio da professora Aurora. Aliás, importante notar que a tradução é de primeira: além da professora, os outros dois tradutores, Daniela e Moissei Mountian, já trabalharam com a 34. A edição é bem bonita, e minha única reclamação é ter as notas reunidas no final de cada seção, e não no rodapé ou todas no final do livro. A editora Kalinka tem poucos livros mas é especializada em literatura russa. Pra quem gosta do assunto, é legal ficar de olho: essa é mais uma editora ampliando nosso conhecimento dos autores russos (seu site tem várias reportagens e textos com esse tema) e trazendo autores desconhecidos e originais como Kharms ao público brasileiro.
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Os sonhos teus vão acabar contigo
Autor: Daniil Kharms
Tradutor: Daniela Mountian, Aurora Fornoni Bernardini, Moissei Mountian
Editora: Kalinka
Ano de publicação: 1928-1939
Ano desta edição: 2013
296 páginas
Trechos preferidos
ESCRITOR: Eu sou um escritor.
LEITOR: Na minha opinião, você é um m…a!
(O escritor fica paralisado por alguns minutos, atordoado com essa nova ideia, e cai morto. Ele é retirado.)
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– Qual é a sua posição em relação aos mortos? – perguntei a Sakerdón Mikháilovitch.
– Sou totalmente contra – disse Sakerdón Mikháilovitch. – Eles me dão medo.
– Sim, também não suporto mortos – disse eu. – Se um aparecesse em minha frente e não fosse meu parente, na certa lhe daria um pontapé.
– Não se dá chute em defuntos – disse Sakerdón Mikháilovitch.
– Pois eu lhe daria um pontapé bem na cara – disse eu. – Não suporto mortos e crianças.
– Sim, crianças são detestáveis – concordou Sakerdón Mikháilovitch.
– Na sua opinião, o que é pior: os mortos ou as crianças? – perguntei eu.
– Provavelmente as crianças são piores, elas nos atrapalham o tempo todo. Já os mortos, seja como for, não se intrometem em nossa vida – disse Sakerdón Mikháilovitch.
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