[Resenha] No campo da honra e outros contos

capacampoSinopse:

Autor da prosa mais intensa e original da Rússia pós-revolucionária, Isaac Bábel tornou-se conhecido mundialmente a partir da publicação dos contos de O exército de cavalaria, em 1926. Figura enigmática, seu enorme prestígio junto às autoridades do regime soviético não o pôs a salvo da perseguição stalinista. O volume No campo da honra e outros contos traz narrativas de todas as fases de sua carreira: desde o primeiro conto publicado, em 1913, até o último, intitulado “O julgamento”, de 1938.

Fonte: Editora 34

A obra de Isaac Bábel foi composta entre 1913 e 1938, um dos períodos mais conturbados da história da Rússia: o autor presenciou a Primeira Guerra, a Revolução de 1917, a guerra civil que se seguiu a ela, a ascensão de Stálin e os dificílimos anos 30, em que muitos intelectuais e artistas foram perseguidos, mortos ou levados ao suicídio. O próprio Bábel foi preso, torturado e fuzilado como traidor em 1940.

Seria impossível que uma vida artística passada entre guerras e mudanças radicais de regime não refletisse em sua obra, e é o que se vê nessa reunião de contos, que inclui boa parte da produção do autor. Bábel foi não apenas contemporâneo desses eventos históricos como também parte ativa deles: foi soldado no Exército Vermelho, atuou na Tcheká (primeira polícia secreta soviética) e em expedições de abastecimento em 1918, além de trabalhar como repórter nos anos 20.

A primeira parte do livro, “No campo da honra”, reúne quatro contos curtos e chocantes sobre a Primeira Guerra, inspirados em um livro francês de 1918. Neles a guerra é despida de exaltação, e vemos oficiais práticos e sem misericórdia, soldados covardes e vulgares e o horror da violência e da desumanização, que aparece em diferentes formas, sendo o ápice no conto “A família do paizinho Marescot”, uma obra-prima da concisão. A guerra é retomada em contos mais tardios, na quarta parte do livro (“Contos 1913-1938”), como em “A estrada”, no qual o narrador, um soldado vermelho, está voltando para Petersburgo. Na viagem, entre o frio, a fome e as dificuldades, presencia uma das cenas mais violentas em todo o livro. Já “Sulak”, escrito nos anos 30, aborda a perseguição a um oficial nacionalista ucraniano e antibolchevique após a Revolução: a relação com o presente vivido pelo autor fica evidente.

Mas não só de histórias de guerra é composto este volume. Na verdade, o livro apresenta contos profundamente diversos entre si, embora haja pontos em comum mesmo entre alguns com diferentes temáticas e datas de composição. Os temas que perpassam boa parte das histórias são dois: a violência – descrita crua e friamente, muitas vezes por um narrador insensível ou objetivo – e o erotismo – frequentemente na forma de relações com prostitutas, que aparecem em diversos momentos tendo conversas e relações com homens desencantados e patéticos. As mulheres também aparecem cercadas da violência que permeia o livro: ameaçadas, estupradas, submissas – afinal, há pouco espaço para alegrias nesse mundo em reviravolta e, regra geral, há pouca proteção ou respeito às mulheres em tempos de caos.

A terceira parte do livro, “Velíkaia Krinitsa”, inclui dois contos que Bábel pretendia transformar numa novela mais longa, inspirados em uma viagem que fez à Ucrânia para ver o processo de coletivização da agricultura durante o primeiro Plano Quinquenal de Stálin. Neles se vê a imposição desse processo – e a resistência a ele – em uma cidadezinha, oferecendo uma visão bastante interessante desse período. (Uma pequena falha da edição, que fora isso inclui notas bem abrangentes, é não explicar o que são colcozes: propriedades rurais coletivas, que deveriam entregar parte de sua produção ao Estado.)

Outro tema importantíssimo e recorrente é a questão judaica. O antissemitismo na Rússia tem uma história de longa data, e Bábel, cuja família é judia, relata diversas instâncias de violência contra judeus. O destaque fica para os quatro contos impactantes da segunda parte – “A história do meu pombal” –, teoricamente autobiográficos (embora, como apontem as notas da edição, provavelmente contendo boa dose de ficção), em que Bábel recorda eventos de sua infância.

Muito diversos do resto do livro, esses contos, embora narrados em primeira pessoa por um narrador já adulto, apresentam o ponto de vista de uma criança que presencia violências extremas (como um pogrom, em 1905) e tem uma vida familiar opressiva e abusiva. Mesmo assim, ao mesmo tempo que há um ar melancólico e desesperador nesses relatos, também transparece certa nostalgia da cidade natal e de alguns membros da família. Talvez – de modo meio deprimente – porque as coisas só piorariam depois dessa época. A vida familiar, assim como a questão do judaísmo, também é retomada em contos que não fazem parte desse ciclo. Por exemplo, o primeiro conto cronologicamente, “O velho Shloime” (1913), é exceção em seu ar mais sentimental, mostrando um velho judeu meio senil que lida com a ameaça de abandonar sua religião.

Aliás, o livro é cheio de exceções à regra: contos como “Petróleo”, o único narrado por uma personagem feminina, que personifica a ideia da mulher soviética, prática e trabalhadora; “Inspiração”, que trata de um escritor medíocre; ou o fantástico (literalmente) “O pecado de Jesus”, em que uma mulher simples fala diretamente com o próprio (resultando possivelmente na minha frase preferida de todo o livro: “Não desejo mais tratar contigo – replicou o Senhor Jesus –, você esmagou o meu anjo”).

E tenho que mencionar dois contos que adorei e que são o epítome do contraste entre o velho e o novo mundo russo: no já mencionado “A estrada”, o narrador, ao chegar a Petersburgo, vai para o prédio da Tcheká, antigo palácio imperial, onde revista os pertences do ex-imperador e sua família; em “O fim de Santo Hipatius”, uma multidão de trabalhadores têxteis se desloca para o mosteiro onde, em 1613, os moscovitas pediram ao primeiro czar Romanov que assumisse o trono após um período turbulento. O narrador observa os antigos ícones dos santos e o abandono e decadência do mosteiro enquanto o novo mundo soviético reivindica o lugar para si. Simbólicos e até tocantes (embora o personagem, como de costume, não se comova demasiadamente), ambos retratam o fim de uma era e a melancolia inerente a perdas e esquecimentos.

A edição da 34 inclui um prefácio de Boris Schnaiderman e um posfácio do tradutor, além de notas explicativas (e bibliográficas, ao final do livro). A coletânea oferece um bom panorama da produção de Bábel e é uma boa pedida pra quem quer ter contato com a literatura russa do século XX. A riqueza da observação do autor se transmite em descrições certeiras que evocam esse mundo de convulsões sociais.

Os contos mais breves, especialmente concisos e poderosos, extravasam a página, deixando muito à imaginação. Certo ar de decadência e desespero está presente em várias histórias, e há um extremismo emocional da parte dos personagens que parece refletir as condições descontroladas do mundo exterior. Ao ler essa produção de quase 30 anos, a impressão que se tem sobre o autor é de que, como em um oficial de que fala, “os últimos dias sangrentos haviam lhe deixado uma marca profunda; era como se ele estivesse em luto por si mesmo”.

*

No campo da honra e outros contos
Autor: Isaac Bábel
Tradutor: Nivaldo dos Santos
Prefácio: Boris Schaidernman
Editora: 34
Ano desta edição: 2014
264 páginas

Este livro foi cedido em parceria com a editora 34.

Citações preferidas

Ninguém no mundo sente as coisas novas mais fortemente do que as crianças. As crianças estremecem por causa daquele cheiro, como um cão pelo rastro de uma lebre, e experimentam uma loucura que depois, quando nos tornamos adultos, chama-se inspiração.

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Era das lojas, das pessoas, do ar e dos cartazes de teatro que eu compunha minha cidade natal. Até hoje eu me lembro dela, sinto-a, amo-a; sinto da forma que sentimos o cheiro materno, o cheiro do carinho, das palavras e do sorriso; amo porque nela eu cresci, fui feliz, triste e sonhador, um sonhador único e apaixonado.

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Tudo me parecia extraordinário naquele instante; eu queria fugir de tudo, mas queria ficar para sempre.

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No invólucro momentâneo chamado homem, a canção corre como a água da eternidade. Ela tudo leva e tudo gera.

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Para um homem apanhado no laço por um pensamento e amansado sob seu olhar de serpente, é difícil esvair-se numa baba de palavras de amor insignificantes e remexidas. Esse homem tem vergonha de chorar de tristeza. Falta-lhe espírito para rir de felicidade. Sendo um sonhador, eu não dominava a arte sem sentido da felicidade.

4 respostas em “[Resenha] No campo da honra e outros contos

    • De fato essas histórias são bem pesadas. Nesse, ainda bem, havia vários contos com outras temáticas – embora igualmente chocantes. Acho que é inevitável considerando o período em que foram escritos… Enfim, obrigada pelo comentário!

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