[Resenha] Toda luz que não podemos ver

capaluzSinopse:

Marie-Laure vive em Paris, perto do Museu de História Natural, onde seu pai é o chaveiro responsável por cuidar de milhares de fechaduras. Quando a menina fica cega, aos seis anos, o pai constrói uma maquete em miniatura do bairro onde moram para que ela seja capaz de memorizar os caminhos. Na ocupação nazista em Paris, pai e filha fogem para a cidade de Saint-Malo e levam consigo o que talvez seja o mais valioso tesouro do museu.

Em uma região de minas na Alemanha, o órfão Werner cresce com a irmã mais nova, encantado pelo rádio que certo dia encontram em uma pilha de lixo. Com a prática, acaba se tornando especialista no aparelho, talento que lhe vale uma vaga em uma escola nazista e, logo depois, uma missão especial: descobrir a fonte das transmissões de rádio responsáveis pela chegada dos Aliados na Normandia. Cada vez mais consciente dos custos humanos de seu trabalho, o rapaz é enviado então para Saint-Malo, onde seu caminho cruza o de Marie-Laure, enquanto ambos tentam sobreviver à Segunda Guerra Mundial.

Fonte: Intrínseca

“Ah”, você diz, lendo a sinopse do livro. “Sei o que você está fazendo, autor. Já conheço a receita. Segunda Guerra Mundial. Uma menina cega e curiosa. Um menino inteligente e gentil. Você vai fazer coisas horríveis acontecerem com eles. Você vai fazer com que eles se encontrem, possivelmente se apaixonem.” Você dá um sorriso irônico, balança a cabeça. “Você quer que eu sinta emoções, mas eu conheço seus truques sujos e não vou cair nessa.” Você está errado. Três dias depois, se encontra em posição fetal numa poça de suas próprias lágrimas, alheio ao mundo e murmurando nomes de personagens para si mesmo.

Vou me abster de contar a sinopse do livro – a da editora, que copiei acima, é um resumo bom, embora deixe de fora muita coisa que torna o livro interessante. O cerne da trama é o ataque aéreo aliado que destruiu a cidade francesa de Saint-Malo em 1944, liberando-a dos alemães. Marie-Laure mora lá com o tio-avô; Werner está lá com o exército alemão. O livro já começa com o ataque, então volta para anos antes e começa a narrar desde a infância dos dois protagonistas até o início da guerra, recorrentemente voltando ao dia do bombardeio em 1944, só pra você se lembrar de que deveria estar muito, muito preocupado com os dois. Os capítulos são curtíssimos: a maioria tem entre 1 e 3 páginas, de modo que você fica naquela de “ler apenas mais um”, e quando vê está na página 250 e não pode mais parar.

Embora o livro se foque nas histórias paralelas de Marie-Laure e Werner, apresenta um elenco impressionante de personagens secundários. São personagens que te conquistam lentamente – o pai da garota, o tio-avó, a senhora que mora com ele, a irmã de Werner… Pra não mencionar dois amigos de Werner que são meus preferidos: Frederick, um garoto gentil que ama pássaros e não se encaixa em um regime que valoriza a superioridade física, mas possui uma força moral inabalável; e Volkheimer, um gigante em termos físicos que comete atos de violência durante a guerra, mas tem um lado sensível, e é eterna, e ternamente, leal a Werner. (Se alguém aí leu o livro, vamos tomar um café e conversar sobre esses dois por umas 3 horas, por favor.)

Em certo ponto você percebe que está tão envolvido pelo destino de todos eles quanto pelo dos protagonistas – o que não é pouca coisa, pois tanto Marie-Laure como Werner são muito bem desenvolvidos, e sozinhos valeriam as mais de 500 páginas do livro.

A garota, que perde a vista aos 6 anos, ama ler Júlio Verne e conhecer coisas no museu onde trabalha o pai. Ao longo de todo o livro, apresenta uma coragem inspiradora – que ela resume como o fato de suportar tudo o que a vida lhe lança do melhor jeito que pode. Marie-Laure é uma presença iluminada na vida dos que estão ao seu redor; uma fonte de esperança, que desperta ternura em corações arrasados.

Mas Werner, em minha opinião, é o destaque. Sua trajetória é realmente “arrebatadora”, para roubar uma palavra da quarta capa da edição. Sua angústia à medida que percebe o horror e a desumanidade do nazismo, e à medida que percebe que não tem escolha senão obedecer, nem saída desse mundo de violência e disciplina cega, são de cortar o coração. O leitor dificilmente se esquecerá dele após terminar a última página.

No quesito História, o livro faz um trabalho excelente ao mostrar o desenvolvimento da máquina estatal nazista (incluindo cartas censuradas e o dia a dia da academia a que Werner é enviado) e a realidade da Ocupação da França. Além disso, aborda a Resistência (dando destaque ao papel das mulheres!) e um dos braços da trama se relaciona com o roubo de obras de arte cometido pelos nazistas naquele período. A questão do rádio também é importantíssima: tanto como instrumento bélico e de propaganda ideológica como de esperança e resistência.

Não quero dizer que o livro é perfeito. O autor peca um pouco na voz das crianças, que têm alguns diálogos adultos demais; força a barra com uma das coincidências da trama (aceitamos as principais, mas um episódio em especial foi improvável demais pra mim); e se alonga um pouco em certas partes, estendendo a tensão de tal modo que realmente obriga o leitor a continuar virando as páginas (o que é meio difícil num livro desse tamanho!). A narrativa é em terceira pessoa, geralmente focada em um personagem de cada vez, mas às vezes com alguns momentos de onisciência. A prosa é bem lírica – às vezes um pouquinho demais, mas em geral me apaixonei pelo tom poético do autor, especialmente quando descreve sons, cheiros e sensações sentidos por Marie-Laure, ou o modo como Werner percebe o mundo através das ondas invisíveis ao nosso redor.

Geralmente não dou notas para os livros porque sempre fico em dúvida, mas quero dar 9 de 10 para este, e o recomendaria fortemente, sem ressalvas, para fãs de ficção deste período histórico – e também para fãs de romances em geral. Doerr consegue construir e manter uma história interessante do começo ao fim, assim como iluminar os recônditos da alma de seus personagens e tocar o leitor profundamente. Histórias que humanizam a guerra são sempre importantes, e aquela pontada de melancolia que despertam em nós também.  “Algumas tristezas nunca deixam de existir”, diz o livro em certo momento. E não deveriam.

*

Toda luz que não podemos ver
Autor: Anthony Doerr
Tradutora: Maria Carmelita Dias
Editora: Intrínseca
Ano desta edição: 2015
528 páginas

Livro cedido em parceria com a editora Intrínseca.

Citações preferidas

Tocar alguma coisa de verdade, ela está aprendendo – seja a casca do tronco de um plátano nos jardins; ou um besouro preso em um alfinete no Departamento de Entomologia; ou o interior primorosamente lustroso de uma concha de vieira no laboratório do dr. Geffard –, significa amá-la.

*

– Você já sonhou alguma vez – murmura Werner – que não tem a obrigação de voltar?

[…]

– Seu problema, Werner – diz Frederick –, é que você ainda acredita que sua vida lhe pertence.

*

Werner fica impressionado ao perceber exatamente naquele momento como é extraordinariamente frívolo construir prédios esplêndidos, compor música, cantar canções, imprimir livros colossais repletos de pássaros coloridos diante da indiferença sísmica e controladora do mundo – quanta pretensão têm os seres humanos! Por que alguém vai se dar ao luxo de compor uma música se o silêncio e o vento são tão mais amplos? Por que alguém vai acender as luzes se as trevas vão inevitavelmente apagá-las? Se os prisioneiros russos são acorrentados a cercas, em grupos de três ou quatro, enquanto os soldados alemães enfiam granadas destravadas em seus bolsos e fogem?

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26 respostas em “[Resenha] Toda luz que não podemos ver

  1. Uma amiga que mora em Nova York me recomendou a leitura deste livro antes mesmo da Intrínseca comprar os direitos da publicação no Brasil. Mas olha, não estou numa fase boa para livros tristes. =( Eu raramente leio histórias sobre o nazismo, porque me deixam muito mal (apesar de não me arrepender das minhas exceções como A menina que roubava livros ❤ e O menino do pijama listrado. Depois desta resenha eu: 1. quero muito, muito ler este livro. 2. não vou ler já porque não quero me pegar em posição fetal numa poça das minhas próprias lágrimas. Hahaha

    Beijo, Isa
    Brenda
    http://sobrelivrosetraducoes.com.br/

    • Entendo completamente, haha. Quando li “A cidade do sol”, prometi que não ia mais pegar coisas tristes esse ano, mas a Intrínseca simplesmente nos mandou esse… e resolvi arriscar. E valeu a pena, por mais que tenha ficado arrasada. Acho que você ia gostar muito, sim. Mas se prepara, hahaha.
      Beijos!

    • Eu estou a fazer um trabalho para português sobre este livro. Nele eu tenho de retratar uma personagem, no meu caso eu escolhi a Marie. Será que me podia falar mais dela por-favor?

    • Oi, Vagner! Eu também estava ouvindo muito sobre ele – fiquei com um pé atrás, inclusive, porque esses livros muito elogiados às vezes decepcionam, mas acabei adorando. Se puder, leia sim! É um romance de guerra bem diferente.
      Obrigada pelo comentário!

  2. HAHAHAHHA, ISAA!!

    Morri de rir com a introdução da resenha! E fiquei tentada demais em conhecer essa história! Até porque, olha esse título, né? E tem Segunda Guerra no meio? Cara, já mora no meu corazón ❤

    Infelizmente estou num momento beeem difícil no quesito conta bancária no positivo 😦
    Mas já vai pra lista de "quando der, vou comprar"

    beijão!
    http://www.ummetroemeiodelivros.com

  3. Olha quem tá aqui: o moço que ama Segunda Guerra Mundial!
    Eu tava com um pouco de vontade de ler esse livro, mais pelo título mesmo (amo títulos fortes, como A Geração Que Esbanjou De Seus Poetas), mas após essa resenha, eu só estou me corroendo lentamente por dentro para poder ler, sério mesmo!

    (Aliás, ainda to lendo o City of Thieves. Tá sendo meu primeiro livro em inglês e tô amando, digo que tô entendendo 85% dele. E estou amando, nunca tinha lido nada da Segunda Guerra que focasse na Rússia.
    E, meu Deus, como não shippar o Lev e o Kolya? E a Vika é tão badass ❤ )

    • Oi, Biel! Pensei mesmo que vc ia gostar desse. Não deixe de ler, vale a pena pra quem gosta do período 🙂

      E que bom que tá gostando do livro! Começar a ler em outra língua é chatinho no começo, mas daqui a pouco vc se acostuma. (E sim… eu ia lendo tipo “Não vou shippar… não vou shippar… dROGA” hahaha)

  4. Vou começar minha leitura agora. Confesso que sou super-mega masoquista. Acabei de sair de uma leitura pesada e já estou entrando em outra. Mas são tantos livros tentadores que não consigo evitar. Ainda mais com essa resenha maravilhosa que me deixou ainda mais com água na boca. Espero que eu goste. (Acho que estou um pouco atrasada – risos -, mas são muitos livros para ler que acabo por me enrolar toda.

  5. Pingback: [Especial] Livros favoritos de 2015 | Sem Serifa

  6. Eu li o livro em três dias porque eu ñ conseguia parar de ler, e fala sério ele acabou comigo, como o autor fez aquilo com o Werner, meu coração partiu bem ao meio, eu ñ gostei do final. É um excelente livro, mas pra mim já deu, haha nada d sofrimento mais.

  7. Parabéns pela resenha, muito bem escrita. O autor sabe prender a atenção do leitor. Apenas o final do romance não foi tão brilhante quanto o corpo do livro, a propósito o que aconteceu com o Mar de Chamas? No mais, aprecio e compartilho!

  8. Maravilhoso,a leitura faz parte do meu cotidiano.Este livro nos faz pensar que a humanidade é cheia de contrastes,hoje morando na Alemanha e casada a 46 anos com um alemão,fico pensando como pode um povo tão receptivo é bom ter feito tantas atrocidades.

  9. li em português de Portugal e o que me encantou foi o tom do francês: parece que estou vendo um filme. o tradutor é excelente (Manuel Alberto Vieira). Acabei de ler e comecei de novo. Ando a procura de um trecho no início e do trecho que me desmoronou na vida. um insight. É um livro pra várias leituras. lembrou-me minhas antigas leituras de Júlio Verne, que amo. Incrível: “abra bem os olhos e veja tudo o que pode ver antes que eles se fechem para sempre”, pu algo semelhante, enquanto uma cega nos guia e mostra toda a luz que não podemos ver, exatamente porque abusamos da visão. O que posso dizer é que é maravilhoso.

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