[Resenha] Estação Onze

CapaFrente_EstacaoOnze_16x23cm.inddSinopse:

Certa noite, o famoso ator Arthur Leander tem um ataque cardíaco no palco, durante a apresentação de Rei Lear. Jeevan Chaudhary, um paparazzo com treinamento em primeiros socorros, está na plateia e vai em seu auxílio. A atriz mirim Kirsten Raymonde observa horrorizada a tentativa de ressuscitação cardiopulmonar enquanto as cortinas se fecham, mas o ator já está morto. Nessa mesma noite, enquanto Jeevan volta para casa, uma terrível gripe começa a se espalhar. Os hospitais estão lotados, e pela janela do apartamento em que se refugiou com o irmão, Jeevan vê os carros bloquearem a estrada, tiros serem disparados e a vida se desintegrar. Quase vinte anos depois, Kirsten é uma atriz na Sinfonia Itinerante. Com a pequena trupe de artistas, ela viaja pelos assentamentos do mundo pós-calamidade, apresentando peças de Shakespeare e números musicais para as comunidades de sobreviventes.

Fonte: Intrínseca

“O que leva algumas pessoas a sobreviver a catástrofes e outras, aparentemente tão capazes, fortes e corajosas quanto elas, desabarem? Acontece em todo desastre. Algumas pessoas sobrevivem; outras não. Que qualidades há naquelas que abrem caminho lutando triunfantemente que faltam naquelas que desabam? Sei apenas que os sobreviventes costumavam chamar essa qualidade de ‘iniciativa’. Então escrevi sobre pessoas que tinham iniciativa e outras que não tinham.”

Não, essa não é Emily St. John Mandel falando sobre Estação Onze, e sim Margaret Mitchell, autora de E o vento levou…, explicando a inspiração por trás de sua obra mais famosa. Mitchell falava sobre uma guerra. Já os personagens de Mandel enfrentam nada menos do que o colapso da civilização – a perda do mundo que conheciam e de quase todas as pessoas nele. Ao longo de Estação Onze, uma questão se impõe: que tipo de pessoa poderia sobreviver a isso?

A obra de Mandel é sobre pessoas com iniciativa, e outras também. O livro, narrado em terceira pessoa de diversos pontos de vista, começa com a morte de um famoso ator enquanto interpretava Rei Lear, num teatro em Toronto. Arthur Leander é seu nome, e a narrativa acompanha o destino de vários personagens ligados a ele: suas ex-esposas, especialmente a primeira, Miranda, executiva que tem um projeto de história em quadrinhos desde a juventude; Clark, seu melhor amigo com quem perdeu contato; Jeevan, um ex-paparazzo que anos atrás o perseguira e que no dia da peça tenta ressuscitá-lo no palco; e Kirsten, uma atriz mirim que vê o homem morrer e a quem, pouco tempo antes, Arthur dera um presente. O dia da morte de Arthur é quando a “gripe da Géorgia”, que matará 99% da população mundial em pouquíssimo tempo, começa a se espalhar.

Vinte anos depois (no Ano Vinte, na nova contagem do tempo), Kirsten faz parte de um grupo chamado Sinfonia Itinerante. Ela e outros músicos e atores, que foram se unindo à Sinfonia ao longo dos anos, viajam pelo que antes fora a América do Norte, mas agora é composto por pequenos assentamentos de pessoas de poucas famílias, que moram em postos de gasolina abandonados, antigos McDonald’s etc. Quando chegam a uma dessas “cidades”, para reencontrar uma colega que haviam deixado ali, grávida, dois anos antes, descobrem que ela e o marido desapareceram. O local é agora comandado por um homem misterioso que se apresenta como “o profeta”, e a Sinfonia tem que sair correndo dali. Seu destino, e a esperança de reencontrar os amigos perdidos, fica na cidade de Severn, onde dizem os rumores de que existe um “Museu da Civilização”.

A narrativa entremeia a viagem da Sinfonia (que sofre muitos percalços, cortesia do profeta) com a história das várias pessoas que citei, contando suas vidas antes, durante e depois da catástrofe. O livro já começa emocionante, partindo rápido para a gripe, e talvez por isso os primeiros “flashbacks” – de Arthur e Miranda – não tenham me interessado muito. Quem quer saber sobre a vida de um ator quando o mundo está desabando e há pessoas desaparecidas? Mas a história dos dois é essencial para a trama; ambos são bem desenvolvidos, e a partir da metade do livro essas remissões à vida passada dos personagens começam a ficar mais interessantes à medida que você vai juntando os fios e vendo as conexões entre eles.

Muitas coisas me impressionaram na obra. Embora seja um livro de “fim do mundo”, é, em primeiro lugar, uma obra sobre a natureza humana. A autora descreve as emoções conflitantes e desesperadoras dos personagens durante a crise, assim como o estresse pós-traumático dos anos que se seguem a ela, com sutileza e habilidade. A evocação do “mundo perdido” é de arrepiar: as casas e prédios abandonados que Kirsten e seu amigo August gostam de revirar em busca de algo que já não tenha sido pilhado, os engarrafamentos eternos com esqueletos ainda dentro dos carros, um avião que pousou e jamais abriu as portas. Também assustador, e bem verossímil, é o retrato do fanatismo místico-religioso que em alguns locais emerge do colapso.

É interessante ver, aliás, como os personagens de diferentes idades lidam com a situação e se sentem em relação ao mundo antigo: aqueles nascidos após a gripe ouvem falar de eletricidade, por exemplo, como se fosse ficção científica; aqueles como Kirsten, que eram crianças quando aconteceu, se acostumaram com a realidade, mas têm lembranças vagas e confusas sobre aquela era, e por isso estão constantemente em busca de pedaços dela; e o que já eram adultos na época do colapso ficam divididos entre resguardar o que restou e tentar esquecer suas vidas passadas, a fim de manter a sanidade.

Nesse sentido, a importância da Sinfonia é pungente: eles interpretam peças de Shakespeare, o “melhor da civilização antiga”, pois pensam que as pessoas têm a necessidade de ver a beleza do que já foram. (Ponto para a autora por transformar uma citação de Star Trek no lema da Sinfonia: “Sobreviver não é suficiente”.)

Nesse mundo em que tudo foi revirado, queimado, perdido, os objetos assumem uma importância magnificada: não só aqueles que compõem o “Museu da Civilização” – coisas como um iPod ou um cartão de crédito – mas também alguns que servem de fio narrativo para a trama: um globo de neve que acaba ficando em posse de Kirsten e a história em quadrinhos de Miranda (a Estação Onze), lida por dois importantes personagens. A história em si é uma ficção científica sobre humanos que querem voltar para a Terra, que foi destruída.

Alguns dos trechos mais bonitos do livro, para mim, acontecem quando personagens adultos refletem sobre o mundo antes da gripe, suas preocupações pequenas e mesquinhas, e o que realmente importava. Seria fácil transformar essas descrições em lições de moral, mas a autora consegue deixá-las verossímeis e criar passagens emocionantes e delicadas: quando um personagem lembra que, ao saber da pandemia, ligou para o chefe em vez da família, você pensa: Sim, isso poderia acontecer. Quando alguém olha para um objeto e reflete sobre a maravilha daquilo – aviões voavam! Objetos eram produzidos do outro lado do mundo e trazidos para os EUA! Apertando algumas teclas, você falava com quem quisesse! – o leitor é obrigado a parar e pensar sobre a incrível conectividade do nosso mundo. Mandel consegue realizar a difícil tarefa de nos fazer lançar um novo olhar sobre o que nos rodeia.

Minha única dúvida – não é necessariamente uma crítica, só uma questão aberta – é se o colapso teria sido tão geral e tão prolongado quanto a autora narra. Embora a crise tenha matado 99% da população – o que, tudo bem, dá uma desestabilizada na vida das pessoas –, toda a infraestrutura do mundo anterior continuava em pé, e não sei se acredito que por vinte anos ninguém conseguiu recuperar parte dela. Vai ver só sobreviveu gente de Humanas. Claro que o objetivo do livro não é falar do colapso em si, e sim das reações a ele, mas estou curiosa para ouvir a opinião das pessoas sobre isso.

Não darei spoilers sobre o final, digo apenas que achei bem tocante.

Estação Onze faz uma reflexão sobre o nosso mundo – como toda história de apocalipse, no fim das contas – mas não deixa de lado uma trama inteligente e tensa, que faz o leitor continuar virando as páginas, torcendo por seus personagens preferidos. É uma leitura divertida e ao mesmo tempo reflexiva, que nos obriga a pensar sobre o mundo e nós mesmos. Com certeza esse livro ficará comigo por um bom tempo. Recomendado!

*

Estação Onze
Autora: Emily St. John Mandel
Tradutor: Rubens Figueiredo
Editora: Intrínseca
Ano desta edição: 2015
320 páginas

Livro cedido em parceria com a Intrínseca.

 

Citações preferidas

Uma lista incompleta:

[…] Não havia mais telas acesas à meia-luz, quando as pessoas erguiam seus celulares acima da multidão para fotografar o palco dos shows. Não havia mais shows iluminados por luzes de halogênio coloridas como um bolo de aniversário, não havia mais música eletrônica, punk, guitarras elétricas.

[…] Não havia mais voos. […] Não havia mais aviões, não havia mais pedidos para erguer as mesinhas na poltrona da frente e mantê-las trancadas – mas, não, aquilo não era verdade, ainda existiam aviões aqui e ali. Eles estavam adormecidos em hangares e galpões. Ficavam acumulando neve sobre as asas. Nos meses frios, eram ideais para armazenar alimentos. […]

Não havia mais países, todas as fronteiras estavam abertas.

*

O inferno é a ausência das pessoas de quem temos saudade.

*

Estava ficando cada vez mais difícil continuar a ser quem ele era. Jeevan tentava repetir uma ladainha de fatos biográficos enquanto caminhava, tentando se ancorar a esta vida, a esta terra. Meu nome é Jeevan Chaudhary. Era fotógrafo e depois me preparei para ser paramédico. Meus pais eram George de Ottawa e Amala de Hyderabad. Nasci no subúrbio de Toronto. Tinha uma casa na Winchester Street. Mas aqueles pensamentos se desmancharam em sua cabeça e foram substituídos por fragmentos estranhos: Isto é minha alma e o mundo se desenrolando, isto é meu coração no ar parado do inverno. Por fim, sussurrava as mesmas duas palavras, muitas e muitas vezes: “Continue andando. Continue andando. Continue andando.”

*

Agora, havia uma escola no terminal C. Como ocorre em toda parte com crianças educadas, as crianças da escola do aeroporto memorizavam abstrações: antigamente, os aviões que estavam lá fora voavam pelo ar. […] As crianças viam mapas e globos terrestres, as linhas das fronteiras que a internet havia transposto. […] As crianças entendiam os pontos nos mapas – aqui –, mas até os adolescentes ficavam confusos com as fronteiras. Haviam existido países e fronteiras. Era difícil explicar.

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3 respostas em “[Resenha] Estação Onze

  1. “Vai ver só sobreviveu gente de Humanas.” Ri muito. Esperei acabar de postar sobre o livro lá no SLET pra vir correndo abrir o email com a resenha do Sem Serifa. Isa, eu adoro suas resenhas! ❤

    • Óin, adoro as suas também! ❤
      Quanto à minha hipótese, a Babi achou razoável ninguém ter conseguido colocar a infraestrutura nos eixos de novo, pq afinal a maioria das pessoas não saca muito de tecnologia… Mas não sei, gosto de imaginar que em alguns lugares eles se recuperaram mais rápido. Pra não mencionar o fato que ainda existem livros, né? Bora estudar pra religar a força, minha gente! (O legal desse livro é que dá pra viajar legal imaginando o que tá acontecendo fora do mundinho restrito dos personagens.)

  2. Pingback: [Especial] Livros favoritos de 2015 | Sem Serifa

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