Esta resenha também pode ser escutada em áudio, neste link. Ela foi feita com base na edição em inglês da Vertigo. Todas as traduções, porém, correspondem à edição da Panini Books, cuja tradução é assinada por Jotapê Martins.
Sinopse:
Terra dos sonhos é o terceiro volume de uma coleção de 10 livros com a série completa de Neil Gaiman. Em Terra dos sonhos, Gaiman faz um intervalo no enredo principal e traz quatro novas histórias para a trama atemporal do Mestre dos Sonhos.
Fonte: Livraria Cultura
Depois de dois volumes, Terra dos sonhos é um dos menores e mais fascinantes volumes de Sandman. Constituído de quatro histórias, originalmente publicadas nos números 17-20 da série, este volume apresenta contos fechados, que começam a ampliar o universo de Sandman, demonstrando o quanto a imaginação de Neil Gaiman não compreende apenas o drama dos sete perpétuos como também todo e qualquer ser existente, dormindo ou desperto.
Em ficção, raros são os autores que conseguem a excelência de enredo e estilo tanto em narrativas longas quanto curtas. No caso de Gaiman, impressiona o fato de suas histórias curtas serem tão instigantes e autocontidas quanto os enredos maiores, podendo ser lidas por leitores que acompanharam Sandman desde Prelúdios & noturnos como também por visitantes que acabaram de chegar. A universalidade dos temas presentes em cada um desses quatro contos exemplifica essa acessibilidade, talvez um dos motivos do sucesso da série, que mais e mais ganhava – e ainda ganha! – novos leitores & leitoras na década de 1990.

Capas de Sandman 17 & 18 – Arte de Dave McKean.
O primeiro capítulo é Calíope e trata dos terríveis bloqueios criativos que assomam todo e qualquer escritor. O protagonista Richard Madoc rapta a musa grega que dá título à história – que, segundo o mito clássico, teve um filho com Morfeus: Orfeus, que encontraremos à frente na série – e com ela obtém ideias, histórias e contratos milionários. O conto fáustico – outro tema recorrente em Sandman – termina quando Madoc descobre que os crimes perpetrados contra sua musa – que incluem aprisionamento e estupro – acabam por amaldiçoá-lo.
A segunda história – Um sonho de mil gatos – é narrada por um felino que prega a gatos perdidos a boa nova de um tempo antigo que precisa ser resgatado: aquele no qual eram os homens que serviam aos gatos, não o contrário. Aqui, mais uma vez Sandman faz uma rápida aparição, mas não como sua versão antropomórfica tradicional e sim como o Gato dos Sonhos, uma vez que o sonho sempre se adapta aos sonhadores e nunca o contrário. E sim, como aprendemos nessa história, gatos sonham! “Nunca o mesmo sonho”, obviamente, como um dos felinos sagazmente conclui depois de ouvir o conto memorial narrado num cemitério, entre miados e outros sons peculiares.
O terceiro capítulo do volume é a clássica história Sonho de uma noite de verão, publicada originalmente em Sandman 19. Nela, Gaiman retoma a história de um “desconhecido dramaturgo” chamado Will Shakespeare, que finalmente começa a pagar sua dívida com o senhor dos sonhos, como visto no pacto de Homens de boa fortuna (no volume anterior). Essa história consolidou os quadrinhos como uma mídia capaz de não apenas dialogar com a dita alta cultura como também de lançar interessantes luzes sobre ela.
Essa foi, por exemplo, a única história em quadrinhos a vencer o importante prêmio literário World Fantasy Award em 1991, prêmio que depois mudou as regras para não mais aceitar exemplares de narrativa gráfica. Uma pena, apesar da importância de Sandman enquanto quadrinho e arte já estar garantida. Mas essa história é um assombro por várias razões, sendo uma delas o fato de Gaiman penetrar como poucos autores na mente do maior poeta de todos os tempos. Tal exercício metaficcional retornaria no último número da série, quando Gaiman narra a composição da última peça do bardo inglês, A tempestade. Mas em Sonho, Shakespeare é ainda um escritor iniciante, um tanto receoso do seu talento, tentando administrar seu trabalho e as turbulências familiares, que incluem um filho, Hamnet, que morreria anos depois.

Capas de Sandman 19 & 20 – Arte de Dave McKean.
Por fim, conclui o volume uma história que não apresenta Sandman e sim sua irmã, Morte. Intitulada Fachada, o enredo trata de uma antiga heroína metamorfa que é incapaz de morrer. É uma história sobre solidão, tristeza e desespero, sobre a nossa incapacidade de nos deixarmos tocar ou sermos vistos por outros. Numa mídia dominada por heróis masculinos e anabolizados, é prazeroso ler uma história na qual as protagonistas femininas passam vinte e duas páginas conversando sobre vida, melancolia e angústias existenciais, e não sobre homens, o que faria essa história – assim como várias outras de Sandman – passar tranquilamente pelo teste de Bechdel.
Ilustradas por Kelley Jones, Charles Vess, Colleen Doran e Malcom Jones III, as quatro histórias de Terra dos sonhos funcionam como uma bela e inspiradora porta de acesso a Sandman. O volume exemplifica a capacidade de Gaiman como um excelente prosador e roteirista, utilizando a mídia subestimada dos quadrinhos – como seu mestre e amigo Alan Moore já vinha fazendo na década anterior – para tratar de temas como amor, desejo, loucura, imaginação, morte e… gatos! Aos que vivem com esses charmosos bichanos, nunca mais olharão para eles do mesmo modo depois dessa história.
Por fim destaco dois apêndices fabulosos que acompanham as duas edições nacionais. Na primeira, publicada pela Editora Conrad em 2005, temos o roteiro de Gaiman para Calíope. Na segunda, publicada pela editora Panini Books em sua Edição Definitiva Volume I em 2010, temos a publicação do roteiro premiado de Sonho de uma noite de verão. Ambos os roteiros são cartas escritas por Gaiman aos seus desenhistas, técnica aprendida com Moore que resulta não apenas na visão de um escritor compondo uma história que valorize os pontos fortes dos seus artistas como também numa divertida conversa textual sobre inspirações, ideias e soluções para problemas, existenciais ou narrativos. Leitura obrigatória para leitores curiosos e escritores em formação.
Aos leitores & leitoras que passam os dias ocupados entre bloqueios profissionais, felinos ronronentos, problemas familiares e máscaras afetivas, fica o convite ao passeio por Terra dos sonhos. Nela, você não desejará acordar tão cedo. Ou então, sairá correndo atrás dos outros volumes de uma das mais interessantes séries de todos os tempos. Não esqueça, porém, de ajustar o despertador, pois o perigo de perder a hora é grande.
Sugestão de leitura complementar
Além de escritor e resenhista, sou também acadêmico de literatura. Há alguns anos, escrevi um artigo científico no qual estudava a criação de Gaiman na sua releitura de Shakespeare tanto em Sonho de uma noite de verão (Sandman 19) quanto em A Tempestade (Sandman 75). Aos interessados ou interessadas em saber como Gaiman de forma genial se coloca como “criador” do próprio Shakespeare, podem acessar o texto clicando aqui.
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Sandman – Volume 3: Terra de sonhos
Em Sandman Edição Definitiva 1
Tradutora: Jotapê Martins
Editora: Panini Books
Ano de publicação: 2010
614 páginas
Leia também:
Sandman – Volume 1: Prelúdios e noturnos
Sandman – Volume 2: Casa de bonecas
Citações favoritas:
Eu só estou tendo ideias. Muitas… Um velho em Sunderland que era dono do universo e que o mantinha num pote de geleia dentro de um guarda-louças empoeirado debaixo da escada… São as ideias. De onde elas vêm? Uma sextina sobre o silêncio, empregando as palavras-chave “escuro”, “roto”, “nunca”, “gritando”, “fogo”, “beijo”. Uma biografia de Keats, do ponto de vista de Lamia… Todas as figuras na minha cabeça. Eu tive que registrá-las, mas não tinha papel ou tinta. Então usei a parede. E a ponta dos meus dedos.
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Pequenino, quero ver qualquer um – profeta, rei ou deus – persuadir mil gatos a fazer alguma coisa ao mesmo tempo.
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Ele é muito distante, Tommy. Não parece mais estar neste mundo. Não mesmo. É como se estivesse em outro lugar. Ele transforma em histórias qualquer coisa que aconteça. Eu sou menos real para ele do que qualquer uma das personagens de suas peças. (…) Tudo o que importa para ele… Tudo que interessa são as histórias.
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Vocês sempre se apegam a velhas identidades, velhas faces e máscaras, mesmo que elas já tenham cumprido seu propósito. Mas, com o tempo, é preciso aprender a jogar as coisas fora.
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Escuta. Mesmo agora, enquanto a gente conversa, eu estou perto de velhos e jovens, inocentes e culpados, de quem morre junto e de quem morre sozinho. Estou em carros, barcos e aviões; em hospitais, florestas e matadouros. Pra algumas pessoas, a morte é uma libertação. Pra outras, uma abominação, uma coisa terrível. Mas, no fim, eu chego pra todos.