Sinopse:
Baton Rouge, capital do estado da Louisiana, nos Estados Unidos, é uma cidade conhecida por seus churrascos no jardim, tardes quentes de verão, barris de cerveja gelada e muitos fãs de futebol americano. Mas no verão de 1989, quando Lindy Simpson, uma das garotas mais bonitas do bairro e estrela das pistas de corrida, é estuprada perto de casa, fica claro que os subúrbios bucólicos de Baton Rouge também têm um lado obscuro. Para uma vizinhança tão pequena, os suspeitos do crime são muitos. Entre eles o narrador da história, um adolescente obcecado por Lindy que mora na casa em frente à da garota. E é por meio de suas lembranças que somos levados a entender como términos de relacionamentos, culpa e amor podem transformar a vida de maneiras irreversíveis.
Fonte: Livraria Cultura
A sinopse de Sonhos partidos prometia gente perturbada com segredos obscuros em uma vizinhança onde todos fingem ser bons. Parecia meu tipo de leitura. Porém, um segundo olhar sobre o livro, antes mesmo de começar a ler, me deixou apreensiva: M. O. Walsh é um homem, e o tema de seu romance de estreia são as consequências de um estupro de uma garota. Acho que nem preciso explicar de quantas maneiras isso poderia dar errado.
Lindy Simpson, uma jovem de Baton Rouge, Louisiana, tinha 15 anos quando foi estuprada na esquina da rua onde morava. Entre os suspeitos do crime estão dois delinquentes juvenis do bairro, um psiquiatra perturbado e o narrador da história. Apenas um ano mais jovem que Lindy, o narrador, cujo nome não é mencionado no livro, era completamente obcecado pela garota. Conhecia sua rotina, usava binóculos para espioná-la da janela de casa e colecionava fotos dela, recortadas de anuários da escola.
Infelizmente, não é surpresa nenhuma o fato de que a polícia, após uma breve investigação que se resumiu a fazer perguntas pelo bairro, arquivou o caso de Lindy sem encontrar o culpado. Quem continuou tentando entender os acontecimentos foi o narrador, numa ânsia de se inocentar, e também de conquistar a atenção da garota. A violência sofrida por Lindy parece apenas ter aumentado a fixação do narrador por ela – ele quer protegê-la e ser seu herói, quer que ela o enxergue e o ame. Para isso, começa a tomar várias atitudes idiotas, que bagunçam a já destruída vida social e a autoestima da menina.
Esse é o primeiro elemento de que gostei no livro: o narrador é um cretino, mas fica bem claro que essa era a intenção do autor. Contando a própria história em primeira pessoa e com distanciamento de muitos anos, o próprio personagem aponta os erros que cometeu durante a adolescência e fala sobre como se arrepende da dor que causou às pessoas à sua volta (principalmente Lindy). As descrições que faz dela, mesmo quando apresentadas sob a lente juvenil da primeira paixão, não sensualizam Lindy nem tentam culpá-la pelo que sofreu. Quando muito, o narrador usa a inocência e ignorância da juventude para justificar seus atos.
Aliás, este livro lembra fortemente ao leitor como nunca se deve confiar plenamente em um narrador-personagem. As lembranças contadas, nem sempre em ordem cronológica, apresentam uma visão muito pessoal dos acontecimentos, como o narrador faz questão de deixar claro. Desde as narrativas idealizadas da infância até a descrição de fatos e diálogos, tudo está sujeito à memória e à interpretação do narrador, de cujo caráter o leitor desconfia desde as primeiras páginas.
De quanta verdade fui poupado? Por outro lado, de quanta verdade eu estou poupando você?
Dentre as revelações feitas sobre a vizinhança e a família do narrador, Walsh trabalha temas difíceis, como o luto e a traição nas relações familiares, delinquência juvenil e a importância dos relacionamentos para definir o caráter e as escolhas de cada indivíduo. Todos esses temas são entrelaçados habilmente enquanto somos apresentados à história da família do narrador e ao contato que ele teve com cada um de seus vizinhos e colegas de escola – alguns mais presentes e detalhados do que outros.
Mas, entre reflexões sobre a vida e histórias diversas, o foco sempre volta para Lindy Simpson, sua vida antes e depois do estupro e como o narrador deduz que ela estivesse vivendo e encarando o mundo. Os verdadeiros pensamentos de Lindy permanecem um mistério tanto para o narrador como para o leitor, o que não impede que vejamos muito de seu sofrimento e das consequências que a violência trouxe à sua vida. É fácil solidarizar-se com Lindy, principalmente quando se percebe quão hostis e incompreensivos são todos à sua volta. Em alguns trechos, que denunciam a violência física e psicológica contra garotas, me lembrei um pouco de Thirteen Reasons Why, embora a narrativa de Sonhos partidos seja infinitamente mais madura. E Walsh ainda surpreende ao tratar de mais uma questão muito séria, que se revela um ponto central em sua obra: o protagonismo masculino e a consequente falta de voz das vítimas de opressão.
Minhas expectativas positivas quanto ao livro foram atendidas: tem gente muito perturbada e coisas podres sendo mal escondidas entre os habitantes de Baton Rouge, o que garante que esta não seja uma leitura leve. E ainda fui surpreendida pela excelente narrativa, muito bem estruturada. Embora os personagens não cativem, a história é intrigante e em especial o estilo do autor mantém o leitor instigado – nos últimos capítulos, é simplesmente impossível largar o livro. Assim, Sonhos partidos renovou meu interesse em autores novos e pouco conhecidos (embora com certeza não tenha renovado minha fé na humanidade).
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Sonhos partidos
Autor: M. O. Walsh
Tradutor: Alexandre Martins
Editora: Intrínseca
Ano desta edição: 2015
256 páginas
Livro cedido em parceria com a Intrínseca.
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Citações favoritas:
Ele era idiota? Essa é uma pergunta legítima que não se costuma fazer sobre pais.
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É estranho, não é? Quer dizer, os homens. A gente acha que eles se dão conta de que não teriam de consertar tantas coisas se, a princípio, não as quebrassem.
Olha só, concordamos sobre um livro! 🙂 Hahaha
Sim \o/ Já fui lá no SLET deixar um comentário ^^
Muito bacana postar uma resenha sobre esse livro e logo em seguida ler esta sua. Minhas sensações e percepção sobre o modo como Walsh lidou bem com o tema (cujo lugar de fala não seria dele) acho que foram similares às suas. Só falta mais espaço, ainda, para as mulheres de fato.
Beijinhos 🙂