Esta resenha foi feita com base no e-book em inglês da Headline. Todas as traduções de trechos foram feitas por mim.
Sinopse:
Anos atrás, um grupo conhecido como Terranos abandonou a Terra em busca de uma vida livre de perseguição. Agora eles vivem com os Tlic, uma raça alienígena em extinção cuja única chance de sobrevivência é implantar suas larvas dentro de corpos humanos.
Quanto o garoto Gan é escolhido para ser o portador dos ovos de um Tlic, ele enfrenta um grande dilema: ele será realmente capaz de ajudar a espécie pela qual foi criado, mesmo se isso significa sacrificar a própria vida?
Fonte: Kobo
Gan é um jovem garoto que vive com sua mãe, dois irmãos e T’Gatoi, uma alienígena de corpo comprido e aveludado, com dezenas de pares de pernas com garras e um ferrão na ponta da cauda. Ela alimenta Gan e a família com seus ovos inférteis, que embebedam e amortecem, mas também propiciam uma vida mais longa.
Essa é a realidade dessa família e também de muitos outros Terranos – humanos cujos ancestrais fugiram da Terra em busca de liberdade, e acabaram vivendo no planeta dos Tlic. Essa raça alienígena inteligente e organizada estava à beira da extinção quando os humanos chegaram, e as duas espécies começaram uma relação de simbiose. Para se reproduzir, os Tlic implantam seus ovos dentro dos humanos. Quando estes eclodem, as larvas precisam ser removidas rapidamente por meio de cirurgia, antes que comam o humano de dentro para fora.
Ao contrário de outros Tlic, T’Gatoi não quis escolher seu humano entre os adultos ou adolescentes: ela escolheu Gan para si antes mesmo de o menino nascer, e esteve presente em sua vida desde os primeiros dias. Assim, a presença e o contato com a alienígena são familiares e naturais para o garoto, acostumado a dormir no colo de T’Gatoi e passear com ela pela cidade. Ele sabe que um dia portará os ovos dela, mas a ideia não o incomoda.
O irmão de Gan, ao contrário, odeia os Tlic. Revoltado com a dependência das espécies, Qui já tentou fugir da Reserva onde vivem os humanos, mas sem sucesso. E, em um momento tenso, no qual o próprio Gan começa a questionar seu papel e suas obrigações naquela sociedade, Qui o confronta e o faz refletir sobre o que realmente deseja fazer, e se é justa a vida que os Terranos levam junto aos Tlic.
Este conto de temática extremamente impactante, ganhador dos prêmios Nebula e Hugo, narra apenas um dia na vida de Gan, mas nesse curto intervalo de tempo muitos assuntos perturbam o garoto e o fazem refletir e tomar decisões. Exposto a situações limite, Gan precisa sair um pouco da própria inércia e decidir conscientemente seu papel numa sociedade que já lhe rotulara desde o nascimento.
“E seus ancestrais, fugindo de seu mundo natal, de sua própria espécie, que os teria matado ou escravizado – eles sobreviveram graças a nós.”
Ao longo da leitura, eu tive a impressão equivocada de que esta era uma metáfora para a escravidão dos negros africanos. Muitos sinais pareciam apontar para isso, em especial falas de Qui questionando a falta de liberdade dos Terranos (que, além de tudo, estão longe de casa e não podem mais voltar) e a pretensa bondade dos Tlic, que consideram os humanos “parte da família”, mas apenas por depender deles para manter a própria sociedade.
Qual não foi a minha surpresa ao chegar ao posfácio do conto, cuja primeira frase justamente avisa que esta não é uma história sobre escravidão. Aparentemente, não fui a única a fazer essa leitura, e reflito que essa é possivelmente uma visão preconceituosa de que autores negros escrevem apenas sobre escravidão. (Octavia E. Butler, grande escritora de ficção científica, ficou conhecida por inserir a questão do racismo em suas histórias – o que também pode ter induzido essa leitura.)
A verdade é que “Bloodchild” é uma história sobre a forte relação de amor e amizade entre dois seres de espécies diferentes. É também uma relativização de tantas estruturas que tomamos como garantidas em nossa sociedade – desde a superioridade da raça humana até a gestação exclusivamente feminina.
Enfim, é uma excelente história que mostra o que a científica faz de melhor (como disse outra escritora maravilhosa, Ursula K. Le Guin): usar cenários e situações fictícias para refletir sobre o mundo real e contemporâneo.
*
“Bloodchild”
Autora: Octavia E. Butler
Editora: Headline
Ano de publicação: 1984
Ano desta edição: 2014
E-book gratuito disponível na Kobo
Citações favoritas
Toda a minha vida, me disseram que esta era uma coisa boa que Tlic e Terranos fazem juntos – como um parto. E eu acreditara nisso até agora. Eu sabia que partos eram sempre dolorosos e sangrentos. Mas isto era diferente, pior. E eu não estava preparado para ver. Talvez nunca estivesse. Mesmo assim, eu não podia não ver. Fechar os olhos não ajudava.
*
– Ninguém pediria que ele fizesse isso de novo.
Eu olhei em seus olhos amarelos, imaginando o quanto eu via e entendia ali, e o quanto eu apenas imaginava.
– Ninguém nunca nos pede nada – eu disse. – Você nunca me pediu.
Pingback: [Semana da Mulher] Octavia E. Butler | Sem Serifa