Sinopse:
Operário discreto de uma usina que destrói encalhe de livros, Guylain Vignolles é um solteiro na casa dos trinta anos que leva uma vida monótona e solitária. Todos os dias, esse amante das palavras salva algumas páginas dos dentes de metal da ameaçadora máquina que opera. A cada trajeto até o trabalho, ele lê no trem das 6h27 os trechos que escaparam do triturador na véspera. Um dia, Guylain encontra textos de um misterioso desconhecido que vão fazê-lo buscar cores diferentes para seu mundo e escrever uma nova história para sua vida.
Fonte: Livraria Cultura
Guylain Vignolles é vítima de um crime sofrido por muita gente: seus pais lhe deram um nome que dá abertura a um trocadilho esdrúxulo. No caso, Vilain Guignol, algo como “palhaço feio” em francês. Depois de toda uma vida sofrendo piadinhas, Guylain aprendeu a não chamar atenção. Aos 36 anos, vive uma rotina monótona e trabalha em uma fábrica fazendo algo que despreza: triturando livros em algo que chama de “a Coisa”, uma máquina gigantesca cujas lâminas já amputaram as pernas de um antigo colega de trabalho e amigo num acidente terrível. Na fábrica, Guylain tem que lidar com um chefe ganancioso e um colega de trabalho que adora atormentá-lo, achando refúgio apenas na companhia do vigia Yvon Grimbert ─ uma figura bem peculiar que ama peças de teatro e fala em versos alexandrinos.
Como um tipo de “terapia” contra seu trabalho, Guylain salva as poucas páginas que ficam presas na Coisa e, todo dia, indo para o trabalho no trem das 6h27, ele as lê em voz alta para os passageiros do vagão. Essa atividade o levará a duas surpresas: um convite inusitado de duas senhoras e a descoberta do pen drive de uma moça desconhecida que limpa banheiros em um shopping e escreve um diário em arquivos de texto. Lendo os textos da moça, Guylain fica encantado pela sua personalidade, e deseja mais que tudo conhecê-la.
Eu não sabia quase nada sobre o livro quando o pedi à Intrínseca: só tinha gostado do título. A curta obra foi uma surpresa gostosa: Didierlaurent narra com sensibilidade a vida solitária do protagonista, criando um elenco de personagens peculiares à sua volta.
O mais impressionante, no entanto, é a completa reviravolta de tom que a obra sofre depois da metade. Ela começa bastante pesada, focando-se no asco que Guylain sente em relação ao trabalho e na sua relação com o amigo que perdeu as pernas na fábrica, mas, depois do encontro do pen drive, assume um ar de comédia romântica e ignora algumas pontas soltas da primeira metade. Por exemplo, as suspeitas de Guylain em relação à morte de ratos na Coisa (que parecia ser um ponto importante, e que eu jurava que terminaria sendo culpa de um dos funcionários da fábrica!). Possivelmente foi uma escolha intencional, e não digo que não gostei do caminho pelo qual a história enveredou (adoro um romance fofo), mas foi uma mudança bem notável.
De qualquer modo, ambas as metades do livro têm seu charme e nos fornecem reflexões interessantes. Mas o destaque, para mim, foram os escritos encontrados por Guylain. A autora deles, limpadora de banheiros em um shopping, faz um relato da sua rotina e fala sobre as pessoas com que tem que lidar, as quais esperam que ela ocupe um lugar marginal na sociedade: que não seja uma escritora, em suma. É tocante ver Guylain dar voz a essa personagem por meio de suas leituras diárias, e ver essas duas pessoas à margem da sociedade se encontrarem por meio da escrita.
O leitor do trem das 6h27 é uma leitura rápida e agradável, que consegue dar um toque de magia a eventos triviais e pessoas comuns. Gostei bastante!
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O leitor do trem das 6h27
Autor: Jean-Paul Didierlaurent
Tradutora: Adalgisa Campos da Silva
Editora: Intrínseca
Ano de publicação: 2015
176 páginas
Livro cedido em parceria com a Intrínseca.
Citações preferidas
Em trinta e seis anos de existência, acabara aprendendo a se fazer esquecível, a se tornar invisível para não provocar mais gargalhadas e zombarias do que as que sempre se manifestavam tão logo era notado. Não é nem bonito nem feio, nem gordo nem magro. Só o vislumbre de uma vaga silhueta nas margens do campo de visão.
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Gosto da ideia de que os textos amadurecem durante a noite, como uma massa de pão que deixamos descansar e encontramos na manhã seguinte muito crescida e cheirosa.
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Precisei rapidamente me render à evidência de que as pessoas em geral só esperam uma coisa: que você ofereça a imagem daquilo que elas querem que você seja.
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─ Eu necessito de um peixe dourado.
Necessidade. Era disso que se tratava. Ele sofria de uma verdadeira dependência em relação ao peixe dourado. O homem não conseguia mais ficar sem essa presença muda e colorida que enfeitava sua mesa de cabeceira. Por já ter passado por isso, ele sabia que existia uma enorme diferença entre viver sozinho e viver sozinho com um peixe dourado.