[Resenha] Promethea – Edição Definitiva – Volume I


promethea-vol1Sinopse:

A jovem Sophie Bangs era apenas mais uma estudante universitária em uma versão futurista de Nova York até que uma entrevista para um trabalho da faculdade a colocou no caminho de Promethea, uma entidade que incorpora a imaginação humana.

Fonte: Livraria Cultura

Voltaire uma vez escreveu que “Se Deus não existisse, nós precisaríamos inventá-lo”. Moore brincou com essa ideia ao colocar na capa da primeira edição de sua série a frase “Se Ela não existisse, nós precisaríamos inventá-la”. Neste aspecto, Promethea é justamente um convite à invenção, à criação e à imaginação, além de propiciar uma jornada inesquecível e marcante para todo e qualquer leitor de literatura e quadrinhos que deseje acessar os reinos da ficção, da magia e das boas histórias.

Com Alan Moore & J. H. Williams III assinando roteiro e desenho, na companhia de Mick Gray na arte-final, Jeroy Cox nas cores e Todd Klein no letramento, Promethea é talvez a obra mais audaciosa já produzida no formato narrativa gráfica. É claro que há várias outras obras de renome (muitas delas assinadas pelo próprio Moore), mas nenhuma é tão consciente do exercício metaficcional possível aos quadrinhos quanto o percurso imaginativo, cabalístico e apocalíptico de Sophie Bangs. A série protagonizada por ela durou 32 números, publicados entre 1999 e 2005 pela ABC Comics, selo criado por Moore para a Wildstorm Studio de Jim Lee.

Os belos painéis duplos criados por J. H. Williams III

Os belos painéis duplos criados por J. H. Williams III

Em suas páginas duplas, quando não em painéis únicos que duram a edição inteira – uma vez que muitos números produzem um quadrinho interminável no qual a imagem de uma página continua na seguinte – ou em suas molduras inovadoras, Moore e Williams brincam com diferentes artes, gêneros e estilos, sejam eles pictóricos ou literários. Há de tudo em Promethea, desde narrativas oitocentistas até histórias pulp e contos eróticos, passando por relatos de guerra ou por diálogos leves e divertidos entre Sophie e sua amiga/antagonista Stacia. Há inclusive poesia de excelente qualidade, que deve ter dado grandes dores de cabeça ao tradutor da edição nacional Octavio Aragão.

Um exemplo dessa polivalência é o aclamado e premiado número 12, “O Teatro Místico da Mente”, no qual somos levados, num único e interminável quadrinho (!) – visto que a última página nos leva novamente à primeira – a uma narrativa tripla (!!) em que temos uma aula sobre os arcanos maiores do tarô, um diálogo rimado entre a heroína e as serpentes do seu caduceu e uma biografia visual do nascimento à morte (e então ao renascimento) de ninguém menos que Aleister Crowley, um dos místicos mais poderosos e odiados do século XX. Não satisfeito, Moore ainda acrescenta à intrincada estrutura outras três narrativas (!!!): a história do universo – simbolizada pela sequência dos arcanos maiores –, uma piada contada por Crowley que elucida sua compreensão da magia e 24 anagramas construídos a partir do nome da heroína.

Por outro lado, se a narrativa truncada e repleta de detalhes pode ser desafiadora – nós demoramos a nos familiarizar com as predecessoras de Sophie, sendo necessário até mesmo um artigo acadêmico na abertura do volume, para nos auxiliar a compreender o “Quebra-Cabeças de Promethea” –, a história surpreende pela leveza, humor e dinamicidade, brincando também com estereótipos dos quadrinhos ou da cultura atual, como o Gorila Chorão, os Cinco Caras Legais e o Boneco Pintado. Também destaco quão emocionante é o percurso de Sophie, tanto em seu arco heroico – ela descobre ser a própria emissária do Apocalipse! – como também pelo sutil e emocionante drama familiar do qual é protagonista, além de seu próprio percurso místico.

Uma pequena mostra da complexidade de Promethea 12

Uma pequena mostra da complexidade de Promethea 12

Promethea foi escrita logo depois de Moore anunciar a amigos e familiares que aos 40 anos, em vez de ter uma irritante crise de meia idade, ele se tornaria um mago, decisão que vem sendo cumprida através de obras-primas compostas em vários gêneros, em performances transmídia e em um aguardado compêndio de Magia no qual trabalhava com Steve Moore. Assim, o escritor usou a série para explorar e também detalhar suas leituras, estudos e reflexões sobre esoterismo, cabala e misticismo, o que também confere a Promethea o caráter de excelente introdução ao assunto.

Nos primeiros 12 números, por exemplo, além da supracitada jornada pelos arcanos do tarô, temos alusões a astrologia, hermetismo medieval, simbologia arcana e a importância dos livros e do estudo para se acessar os reinos sobrenaturais. Trata-se de se preparar a mente não para deixar o corpo e sim para fazê-lo perceber as esferas superiores da imaginação e da espiritualidade, numa jornada que é tanto transcendente quanto imanente. E se você acha que Apocalipse é o fim do mundo, prepare-se, pois Moore recupera do termo o seu significado original grego de Revelação, dando aos leitores da série uma experiência única que pode ser tanto literária e pictórica como também existencial e espiritual.

E isso antes do número 13, quando a dupla nos levará, número a número, a visitar  cada um dos sefirotes cabalísticos da árvore da vida, numa experimentação sensorial única nos quadrinhos. Originalmente, a versão definitiva da série compreendia três volumes, que justamente aludiam a estes estágios de iluminação: Magia (Capítulos 1-12), Cabala (Capítulos 13-25) e Apocalipse (Capítulos 26-32). Por razões editoriais, a Panini Books dividiu a série em dois volumes, sendo que esta edição definitiva compreende os capítulos 1 a 16, o que interrompe na metade a jornada cabalística.

A equipe da edição nacional merece aplausos, a começar pelo editor Fabiano Denardin pela coragem de trazer ao Brasil uma série tão desafiadora e que já tinha tido sua publicação interrompida por aqui, com o fim da Pixel Media. Também destaco o cuidado com o letramento, que é absolutamente expressivo nesta história. Daniel de Rosa fez um trabalho excelente ao recriar para a nossa língua a arte de Todd Klein.

Mais um exemplo do belo design da história e a capa da Edição Definitiva Nacional

Mais um exemplo do belo design da história e a capa da Edição Definitiva Nacional

Por fim, enfatizo a excelência do trabalho de Octavio Aragão na tradução do volume. Nas mãos de um profissional menos habilidoso e paciente, a riqueza estilística, rítmica, sonora e poética de Moore teria seria relegada a segundo plano, quando não ignorada. Nas mãos de Aragão, um grande admirador da série e conhecedor de suas referências cultuais e esotéricas, o que temos é um texto primoroso e digno de ser lido em voz alta pela melodia e inventividade de certas passagens. Completam a edição os esboços de Williams III, um texto do escritor Brad Meltzer sobre quadrinhos e fantasia e outro de Aragão sobre os anagramas do capítulo 12.

Encerrando esta resenha, faço a você, leitor ou leitora, a seguinte pergunta: O que torna uma história importante e fundamental? Para mim, a diversão da leitura, a qualidade das referências, a conexão emocional com os personagens e seus dramas. No caso de quadrinhos, a excelência e a inventividade dos desenhos, das cores e das letras também ganham importância. Além disso, a delicada e rara experiência de se fechar um livro percebendo que sua história continuará viva dentro de você, ecoando na sua memória, refinando seus sentimentos. Posso dizer, sem dúvida alguma, que tudo isso está presente nesta que é uma das obras mais lindas, inovadoras e fascinantes dos últimos anos.

Como ela não existia, Alan Moore & J. H. Williams III felizmente a inventaram e nos convidaram a sonhar belos sonhos de imaginação, beleza e encanto, para não dizer, magia. Boa viagem & não estranhem se o “mundo real” parecer menos interessante depois do seu retorno a ele.

*

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Promethea – Edição Definitiva – Volume 1
Autores: Alan Moore, J. H. Williams III, Mick Gray
Tradutor: Octavio Aragão
Editor: Fabiano Denardini
Editora: Panini Books
Ano de publicação: 1999-2005
Ano desta edição: 2015
464 páginas

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Citações Favoritas (entre milhares de outras…):

Existe o mundo material e o mundo imaterial. Ambos existem, mas de maneiras diferentes. (…) Humanos são anfíbios, Sophie. Isso significa que eles vivem em dois mundos ao mesmo tempo: físico e mental. Ainda assim, muitos apenas percebem o mundo sólido que se condicionaram a pensar como mais real enquanto à sua volta diamantes glaciais racham e vulcões estelares trovejam.

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Ideias crescem como flores aqui. Algumas são ideias comuns, encontradas em todos os lugares, mas, se você quer ideias raras, os buquês mais exóticos, terá de viajar além. Artistas, cientistas, filósofos… eles são os pioneiros desses territórios.

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Varas, taças, espadas e moedas. Fogo, água, ar e terra. Você vai precisar de todos esses elementos. Quatro elementos. Quatro armas mágicas. Quatro qualidades humanas essenciais… são todos a mesma coisa, de certa maneira. Espírito, compaixão, intelecto e existência física. Você precisa de todas elas para ser Promethea… ou para ser humana.

*

Infinita como a maré. Como a respiração. Como o ritmo sanguíneo, como os raios x pulsando através de estrelas moribundas. Ligado e desligado. Para trás e para frente. Dentro e fora… infinito. O ritmo. Infinito. Você compreende?

*

Assim, as serpentes concluem a caudalosa saga
Narrada (ou começam de novo, se lhes agrada).
Girando e girando, ouroboros vira o verso ao reverso
Nesta fábula tão eterna quanto o universo.

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