[Resenha] O conto da aia

contodaaiaSinopse:

Escrito em 1985, o romance distópico O conto da aia, da canadense Margaret Atwood, tornou-se um dos livros mais comentados em todo o mundo nos últimos meses, voltando a ocupar posição de destaque nas listas do mais vendidos em diversos países. Além de ter inspirado a série homônima (The Handmaid’s Tale, no original) produzida pelo canal de streaming Hulu, a ficção futurista de Atwood, ambientada num Estado teocrático e totalitário em que as mulheres são vítimas preferenciais de opressão, tornando-se propriedade do governo, e o fundamentalismo se fortalece como força política, ganhou status de oráculo dos EUA da era Trump.

Fonte: Saraiva

Em um futuro não muito distante, os Estados Unidos se tornaram uma ditadura religiosa cristã, renomeada como Gilead. Após guerras e diversas crises sociais (incluindo níveis criticamente baixos de natalidade), um grupo de fundamentalistas tomou o poder e instaurou novas leis e regras sociais. A principal medida tomada por eles é pôr fim aos direitos das mulheres e dividir toda a população feminina em castas com papéis extremamente bem definidos. Enquanto as mulheres inférteis são designadas como educadoras/fiscais do novo sistema ou empregadas domésticas, as poucas mulheres que podem ter filhos, as chamadas aias, são aprisionadas e destinadas a gerar bebês para as famílias mais ricas. E tudo isso é feito com base em escrituras cristãs.

O conto da aia é uma distopia (como já deu pra perceber pela simpática sinopse do parágrafo anterior) narrada em primeira pessoa por Offred, uma mulher designada para ser aia. A protagonista é uma pessoa comum dentro dessa sociedade, e oferece ao leitor um ponto de vista limitado sobre o que acontece em seu mundo, em uma narrativa intimista sobre seus dias cheios de tédio, medo e dor. Ela não tem o direito de escolher o que come, de sair de casa quando quiser e ir para onde quiser, de conversar o quanto quiser com outras pessoas, sequer de olhar para onde quiser. (Nessa realidade, todas as mulheres usam uniformes, e o das aias inclui abas aos lados do rosto, para restringir sua visão periférica.)

Em meio a seus relatos, Offred insere diversos flashbacks de sua vida antes de Gilead – ela vivia como uma mulher da nossa época, casada, com uma filha pequena, um emprego, um diploma, uma melhor amiga. Sua vida em Gilead, que já é tão assustadora e chocante para o leitor, parece ainda pior quando nos deparamos com o fato de que a personagem conheceu uma vida como a nossa.

Esse não é o único fator de aproximação e empatia para com a protagonista. Como outras distopias, O conto da aia também denuncia verdades desconfortáveis sobre a nossa realidade. Diversas realidades do patriarcado, tão sutilmente inseridas na nossa sociedade, são explicitadas na história: a cultura do estupro, as justificativas religiosas para a dominação masculina, o silenciamento e invalidação da voz da mulher. A relação da protagonista com os homens de Gilead é perturbadora, principalmente porque ela não os odeia, o que diz muito sobre o quanto esse sistema está intrínseco em nós. Ela menciona, inclusive, que sua história será melhor entendida por mulheres que já sentiram a tentação irresistível de perdoar um homem.

Confraternizar significa comportar-se como um irmão. Luke me disse isso. Ele me disse que não existia palavra correspondente que significasse comportar-se como uma irmã. Teria que ser consororizar, disse ele.

O conto da aia nos faz refletir muito sobre a dominação masculina, mas também sobre o relacionamento entre as mulheres. O livro deixa muito explícito que nós somos levadas, pelo sistema patriarcal, a condenar, julgar e odiar umas às outras – a protagonista relata até mesmo aulas que as mulheres assistem que as treinam para julgar as outras. Ao mesmo tempo é acalentador (tanto quanto um livro desses permite) ler os poucos trechos em que Offred relembra as mulheres mais importantes de sua vida (sua mãe, sua amiga Moira). Curiosamente, essas lembranças são quase sempre de discussões acirradas, mas das quais a personagem sente falta – até nas discordâncias, havia muito amor naqueles relacionamentos entre mulheres, mesmo que talvez não fosse percebido até então.

Também não aconteceu dessa maneira. Não tenho certeza de como aconteceu; não exatamente. Tudo o que posso ter esperança de conseguir é uma reconstrução: a maneira como se sente o amor é sempre apenas uma aproximação.

Brincando com o fato de este ser um texto em primeira pessoa, Atwood frequentemente nos lembra que sua narrativa é incompleta, é uma “reconstrução”. A ela faltam outros pontos de vista e outras sensações, além de estar potencialmente distorcida pelas emoções e memórias da narradora. Explicitar isso para o leitor é uma metalinguagem interessante, mas é também curioso que o seja feito nesse livro, o que nos lembra que histórias contadas por mulheres são, tantas vezes, questionadas.

O conto da aia está entre o panteão das grandes distopias, e tem elementos similares a Nós e Admirável mundo novo. Porém, o romance de Atwood é infinitamente mais assustador, não apenas por nos tornar tão íntimos de sua narradora, como por diluir o agente de dominação, que passa a ser toda a metade masculina da população. Nem preciso dizer que a proximidade disso com a realidade é também bastante perturbadora.

Esse romance tão cheio de nuances e de assuntos para debate e reflexão, e ao mesmo tempo tão envolvente e angustiante, despertou milhares de emoções em mim. Recomendo fortemente.

SPOILERS do fim do livro:

O capítulo final, chamado “Nota histórica”, se passa 200 anos depois da trama. Após a queda de Gilead, os relatos de Offred são relidos por historiadores que tentam investigar a veracidade de sua história. Foi uma leitura um pouco desconfortável, em primeiro lugar por ter um estilo muito diferente de todo o resto do livro – a voz intimista e poética de Offred é substituída pela de um historiador que fala da protagonista com muito distanciamento e frieza. Apesar disso, o capítulo fornece muitas informações que ajudam o leitor a completar algumas lacunas da história de Offred e especialmente do mundo à sua volta, a entender a origem de Gilead. Não pude deixar de sentir um estranhamento com essa escolha narrativa e de me perguntar se haveria outra maneira de dar ao leitor essas informações, mas ao mesmo tempo foi interessante entender mais sobre Gilead e saber que, em algum ponto no futuro, essa ditadura teve fim.

Livro X Série (sem spoilers)handmaids

No ano passado, o romance de Atwood ganhou uma adaptação televisiva pelo serviço de streaming Hulu, que manteve o título original, The Handmaid’s Tale. A série é impactante, do tipo que te faz ficar pensando por dias. Ela transmite bem o ambiente de Gilead, incluindo os uniformes das mulheres, e retrata os rituais pelos quais elas passam em cenas extremamente incômodas. Além disso, mantém alguns diálogos idênticos aos do romance.

Vários personagens, como Luke, Moira, Janine e Ofglen, ganharam mais profundidade ou até um final diferente do que tinham no livro, e esse não é o único acréscimo feito pela adaptação. A primeira temporada acompanha a vida da protagonista ao longo de todo o primeiro livro, o que significa que a segunda, que estreia em abril deste ano, vai desviar completamente do livro, e continuar contando ainda mais sobre Gilead. Atwood esteve envolvida na produção das duas temporadas, inclusive fazendo uma aparição na primeira.

A série ganhou o Emmy e o Golden Globe de melhor série dramática, o que foi merecido. Com certeza foi a melhor série que assisti em 2017.

Veja aqui o trailer da primeira e da segunda temporada.

*

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O conto da aia
Autora: Margaret Atwood
Tradutora: Ana Deiró
Editora: Rocco
Ano de publicação: 1985
Ano desta edição: 2017
368 páginas

Citações favoritas:

Tento não pensar demais. Como outras coisas agora, os pensamentos devem ser racionados. Há muita coisa em que não é produtivo pensar. Pensar pode prejudicar suas chances, e eu pretendo durar.

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Quando pensamos no passado são as coisas bonitas que escolhemos sempre. Queremos acreditar que tudo era assim.

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Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. Ninguém disse quando.

*

Um homem é apenas a estratégia de uma mulher para fazer outras mulheres.

*

Gostaria de saber o que Tu estiveste fazendo. Mas seja lá o que for, ajuda-me a suportá-lo, por favor. Embora talvez não seja Tua obra; não creio nem por um instante que o que está acontecendo lá fora no mundo seja o que querias.
Tenho o pão suficiente de cada dia, então não perderei tempo com isso. Não é o problema principal. O problema é engoli-lo sem sufocar com ele.

*

Quando o poder é escasso, ter um pouco dele é tentador.

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11 respostas em “[Resenha] O conto da aia

  1. Pingback: [Especial] Livros favoritos de 2018 + lista de leituras do ano | Sem Serifa

      • Interessante. Profundo também. Creio que a leitura nos remete aos caos de nossas vidas sem autocrítica. Mais temeroso, ainda, é a cilada de culpar outras culturas de atos e fatos que acontecem na nossa cultura e que, aos poucos, vão sendo acolhidas como naturais. Assustador!!!

  2. Publicado em 1985, O Conto da Aia tem claras inspirações na Revolução Islâmica de 1979 que transformou o Irã em uma república islâmica teocrática. Ao imaginar um país comandado por cristãos radicais, Margaret Atwood nos mostra as várias possiblidades de dominação que povos podem sofrer, independente de credos, raças ou culturas. Em momentos de fragilidade, as pessoas tendem a confiar naqueles que trazem as soluções rápidas, mesmo que para isso seja preciso sacrificar um pouco da tão falada liberdade.

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  4. Ótima análise. Especialmente sobre o último capítulo. Foi o primeiro ebook que comprei e li no meu Kindle, fiquei com a impressão que o arquivo estava corrompido ou teria ocorrido algum outro erro.

  5. Amei sua resenha.
    Estou lendo o livro e leio muito , e muito rápido rsrs
    Gostando demais da escrita … das colocações… etc, porém , às vezes me perco no tempo e espaço , inclusive qdo mudo de capítulo . Sou leitora ávida desde a infância , e hoje, gosto de ler três livros, concomitante rsrs
    Parece loucura ne? Mas esse O Conto de Aia tem me prendido na exclusividade rsrs

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