[Resenha] As horas vermelhas

ashorasvermelhasSinopse:

Neste romance ferozmente imaginativo, o aborto é mais uma vez ilegal nos Estados Unidos, a fertilização in vitro é proibida e uma emenda constitucional concede direitos de vida, liberdade e propriedade a todos os embriões. Em uma pequena cidade pesqueira no Oregon, quatro mulheres muito diferentes vivem os dramas causados por essas novas imposições do governo enquanto levantam tradicionais questionamentos relacionados a maternidade, identidade e liberdade.

Fonte: Planeta

No ano passado, uma das minhas primeiras leituras foi O conto da aia, de Margaret Atwood. Parece simbólico que um ano depois eu tenha lido As horas vermelhas, que é anunciado como a distopia reprodutiva do século XXI. Atwood já havia me preparado para mergulhar em mais um livro do gênero, embora todo o reforço no estômago e no coração nunca seja suficiente.

Mas chamar As horas vermelhas de distopia soa inapropriado, pois sua semelhança com a realidade é bem mais concreta do que em O conto da aia. A premissa do livro é que um congresso conservador tornou o aborto mais uma vez ilegal nos Estados Unidos – ou seja, a distopia deles é a nossa realidade. Além dessa medida, também foi proibida a fertilização in vitro e a adoção por pessoas solteiras. Uma mulher que tentar fazer um aborto é presa por tentativa de homicídio, inclusive as que vão até o Canadá para isso (se forem pegas, elas são devolvidas às autoridades estadunidenses, graças a um acordo chamado Muro Rosa).

Nesse contexto, Zumas conta a história de quatro mulheres que vivem em uma cidadezinha pesqueira no Oregon. Mattie é uma adolescente que está grávida e não queria estar; Ro é uma mulher solteira que deseja ter um filho; Gin ajuda as mulheres da cidade a fazerem abortos e tratamentos com ervas medicinais; e Susan é casada e tem dois filhos, mas uma vida muito frustrante. Os capítulos do livro intercalam o ponto de vista de cada uma delas. Suas histórias, as conexões entre elas e as relações com outras mulheres nos remetem a elementos do universo feminino e do lugar social da mulher. O preconceito contra mulheres fora do padrão, assim como a dita inveja feminina, estão presentes nessa história, embora também haja momentos significativos de sororidade.

Essa é uma leitura intensa. Cada uma das personagens vive conflitos complexos mas muito conhecidos para as leitoras, tornando fácil sentir empatia por elas. A narrativa introspectiva revela os pensamentos mais íntimos dessas mulheres, mas sem espaço para longas digressões – o que é simbólico de como estamos sempre seguindo com nossos planejamentos e tarefas, mesmo em meio às dificuldades.

Ao longo da trama, o narrador chama as mulheres não pelo seu nome, mas pelo papel social com que elas mesmas se definem: a Filha, a Biógrafa, a Reparadora e a Esposa. É interessante defini-las em termos tão limitadores: o livro aborda de maneira muito acurada os diferentes caminhos que uma mulher pode seguir em nossa sociedade, e como cada uma das opções as restringe e as torna passíveis de julgamento. O contraste mais claro e irônico é entre Susan e Ro. Susan é uma dona de casa com uma família tradicional perfeita, o que lhe tira o direito de fazer exigências e reclamações, além de lhe atribuir a imagem de mulher desocupada e sem ambições. Já Ro, uma boa professora que está trabalhando no sonho de escrever um livro, é frequentemente alvo de cobranças e lamentações pelo fato de nunca ter se casado.

Outro interessante estereótipo que aparece bastante no livro é o da bruxa. Gin, a Reparadora, vive sozinha em uma cabana na floresta. Ela evita o contato com outros seres humanos, mas usa seus conhecimentos sobre ervas e recursos naturais para fazer tratamentos médicos para as mulheres que a procuram. Claro que seus conhecimentos intrinsecamente ligados à natureza e aos conhecimentos de sua família lhe rendem a alcunha de feiticeira, e ela acaba passando pelo equivalente do século XXI à caça às bruxas.

Em uma sociedade em retrocesso como a nossa, As horas vermelhas é uma obra dolorosamente realista e significativa. Uma leitura pesada que levanta muitas reflexões, mas poucas respostas.

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As horas vermelhas
Autora: Leni Zumas
Tradutora: Isa Prospero
Editora: Planeta
Ano desta edição: 2018
336 páginas

Citações favoritas:

Quando o Toda Criança Precisa de Dois entrar em vigor, nenhuma criança adotada terá que sofrer com a falta de tempo, baixa autoestima e renda inferior de uma mulher solteira. Toda criança adotada vai colher as recompensas de crescer num lar com dois pais.  Menos mães solteiras, dizem os homens do Congresso, vai significar menos criminosos e viciados e recipientes de auxílio governamental. Menos agricultores. Menos apresentadores de talk show. Menos inventores de curas. Menos presidentes dos Estados Unidos.

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Ela queria tempo para pensar. Tempo, pelo menos, para se acostumar com a ideia de tocar um corpo que ela fez para desfazer um futuro corpo.

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O cheirinho quente e sedoso do pescoço de Bex recém-nascida.
A boca entusiástica dela no mamilo da esposa para puxar o leite que formigava nos dutos.
Como John dormia no peito dela com uma confiança imensurável.
Este planeta pode estar se engasgando até a morte, sangrando de cada buraco, mas ela ainda os escolheria, toda vez.

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