Essa resenha foi escrita por minha irmã, Carolina Prospero Graziano, professora e mestre em Literatura pela Unicamp, com base no livro da Companhia das Letras.
Sinopse:
Gênio ou louco? Tarado ou santo? Reacionário ou revolucionário? Nenhum outro escritor brasileiro foi tão polêmico em seu tempo.
Para escrever O anjo pornográfico, Ruy Castro, autor do consagrado Chega de saudade, realizou centenas de entrevistas com 125 pessoas que conheceram intimamente Nelson Rodrigues e sua família. Elas o ajudaram a reconstituir essa assombrosa história, capaz de arrancar risos e lágrimas.
Fonte: Companhia das Letras
Não costumo ler biografias. Entre pessoas reais e pessoas inventadas, geralmente fico com as inventadas, que reúnem as características mais marcantes das reais e, via de regra, vivem existências interessantes, cheias de experiências significativas. É só pensarmos em matadores russos de velhinhas ou em defuntos entediados que se tornam autores e fica explicada, se não a validade, ao menos a origem da minha predileção. Vez ou outra, porém, dada a sua própria natureza de mãe inspiradora, a vida concreta nos apresenta histórias que poderiam figurar facilmente no rol da ficção, intrigantes que são, quando bem contadas. É o caso da biografia de Nelson Rodrigues.
Em O anjo pornográfico, o escritor Ruy Castro traça com linhas cuidadosas o perfil do maior teatrólogo brasileiro. Por meio de quase 700 entrevistas, Castro reconstrói toda a trajetória do autor que, segundo ele, teria sido seu ídolo desde a infância. À parte o espanto de imaginar os textos de Nelson – em que surgem, uma atrás da outra, cenas de incesto, violência, preconceito, estupro, morte – sendo lidos e admirados por uma criança, é notável o trabalho de edificação realizado. Como muitos sabem, Castro é grande conhecedor do cenário cultural brasileiro, o que já lhe confere, de saída, uma vantagem; entretanto (e felizmente), ele não se contenta em mobilizar seus conhecimentos de almanaque, e mergulha fundo na pesquisa para a obra. Prova disso é o detalhado histórico do pai de Nelson, Mário Rodrigues, figura jornalística importante do início do século XX, indivíduo de temperamento empreendedor e emotivo. Sua ascensão e queda são narradas ao longo das primeiras 100 páginas da obra. Essa extensão pode, a princípio, surpreender, apesar de não ser gratuita. Posteriormente, fica claro o papel do pai na vida de Nelson, tanto para o desenvolvimento da carreira – o escritor trabalhou a vida inteira em jornais e beneficiou-se, sem dúvida, das conexões feitas por Mário – como para a vida pessoal, vivida de maneira tão inflamada e apaixonada quanto a figura paterna. Esse é apenas um dos vários indícios do quanto Castro se importa com a empreitada; seu envolvimento é tamanho que ele parece acompanhar a narrativa junto conosco, leitores de primeira viagem, vibrando com o sucesso de Nelson, como na estreia de Vestido de Noiva, “a peça impossível de ser encenada”, e ressentindo-se, como o próprio biografado, de seus reveses e fracassos. Em trechos como “Se Álvaro Lins, que era Álvaro Lins, achava isso, que importava para Nelson que aquela plateia de lorpas e pascácios não lhe tivesse dado bola?”, a voz de biografado e biógrafo quase se confundem, uma mistura que torna a narrativa, de maneira geral, muito saborosa.
O que funciona como qualidade em boa parte da obra, no entanto, acaba se tornando um problema em passagens pontuais. Um dos casos que merece ser analisado é o dos três filhos não reconhecidos por Nelson, frutos de um longo caso entre o escritor e uma cantora ocorrido na década de 50. Castro opta por dar foco aos esforços de Nelson para provar que as duas meninas não eram suas, bem como por realçar um certo caráter “desagradável” que elas viessem a possuir. Em trechos como “pelos dez anos seguintes em que Nelson pagou a pensão, até 1977, houve um clima de hostilidade permanente entre ele e as duas moças a respeito do valor”, fica implícita essa visão negativa. Também não por acaso, aparece em nota de rodapé – até onde me recordo, a única do livro todo – que, nos anos 90, exames de DNA confirmaram a paternidade dos três. Isso mostra como a aura “heroica” criada por Castro para Nelson Rodrigues, por vezes, acaba interferindo na história contada com a intenção de valorizar o biografado, mesmo em episódios lamentáveis. A menção de que Nelson ausentou-se em absoluto da vida desses três filhos é passageira e tende, visivelmente, a banalizar o fato.
Não é só no conteúdo da obra que a intervenção de Castro se faz presente. O estilo empregado é digno de um olhar mais detido, já que o autor não se atém a uma terceira pessoa normativa. Existe uma opção clara por uma linguagem mais informal, com a utilização de inúmeros termos e expressões coloquiais, muitos metafóricos ou ligados à criação de alguma imagem. Alguns deles: “à espera de que jornais e revistas quebrassem lanças para contratá-lo”; “com sua alturinha”; “Pipocas, ninguém enxergava…”; “os quiproquós da garota”; “Pascoal, com as orelhas em chamas…”. Essa utilização, provavelmente, não pode ser considerada uma unanimidade. Por um lado, aproxima o leitor da história, como se “a contasse na sua língua”; por outro, gera um tom informal impossível de se ignorar e que, ocasionalmente, chama em demasiado a atenção para o narrador – que, para muitos, deveria manter-se à sombra do biografado. Mas não se pode acusar Castro de incoerência: este é o registro que utiliza em seu romance Era no tempo do rei, por exemplo, ou ainda em suas colunas de jornal. Isso lhe garante um estilo único, que dificilmente deixa o leitor indiferente. Particularmente, considero um pouco incômodo e, não raro, forçado. Porém, imagino ser voz quase solitária nessa questão.
E, por falar em romance, vale a pena destacar que, da literatura, ele empresta recursos preciosos. O vai e vem cronológico é um deles. Castro domina a questão temporal com segurança, avançando e recuando no tempo à medida que isso se faz necessário. Apresenta um indivíduo a certo momento em que ele se faz importante na história, suprime-o, e depois retorna para ele em outra ocasião, resumindo o que fez no tempo em que esteve ausente. É o que acontece com as trajetórias dos irmãos de Nelson – em especial, com Mário Filho, o que teve maior destaque como jornalista (além do próprio Nelson) e serviu de amparo a boa parte da família. Também não passam despercebidos os parágrafos curtos, incisivos, que têm por objetivo deixar um gancho para o que vem em seguida, como nos folhetins, ou somente fechar blocos com um tom dramático, bem ao gosto do próprio biografado. É o caso, respectivamente, de “E então uma chuva forte desabou sobre o Rio naquela noite de domingo” e “… Nelson Rodrigues Filho. Aquele que não podia morrer”. Estes e outros aspectos literários contribuem para conferir certo tom ficcional a uma figura que poderia, muito bem, ser ficcional de fato, considerando os acontecimentos notáveis de sua trajetória. A máscara de personagem, inclusive, foi cultivada pelo próprio Nelson na mídia da época, utilizada como forma de chamar atenção para suas peças. Como já mencionado anteriormente, foi essa opção de Castro uma das razões pelas quais o livro, como um todo, me agradou.
Em suma, trata-se de um trabalho único, fruto de enorme e dedicada pesquisa sobre a vida do maior teatrólogo do país. É, portanto, livro relevante para que compreendamos uma parte da história do Brasil, enxergada através da história da família Rodrigues, que tantas marcas deixou em sua passagem. O estilo coloquial, embora possa não agradar a todos, tende a aproximar o leitor da narrativa e é indissociável do projeto de Castro. Mas isso não impede que a obra seja apreciada por inteiro. Afinal, como diria o próprio Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra”.
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O anjo pornográfico
Autor: Ruy Castro
Editora: Companhia das Letras
Ano desta edição: 1992
464 páginas
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Tenho interesse em conhecer melhor Nelson,principalmente por sua relação com o teatro. Conheço-o mais por ser um bom frasista do que por sua obra. Boa dica, talvez seja um bom começo para me animar a conhecer sua vasta-e polêmica-obra.
Quero parabenizar quem escreveu esta resenha. Achei ela de excelente qualidade. Viva Nelson.