Esta edição busca oferecer ao leitor a possibilidade de ter uma visão do pensamento de Montaigne. Os ensaios desta obra passam por temas como o medo, a covardia, a preparação para a morte, a educação dos filhos, a embriaguez e a ociosidade.
Fonte: Livraria Cultura
Faz uns dois anos que comecei a ler este livro – antes do surgimento do blog! – então é uma grande satisfação finalmente falar dele. Não quero, com esse começo, desencorajar o leitor: apesar de esses 26 ensaios serem desafiadores, eu os adorei.
Montaigne, como informa a excelente introdução, era um nobre que se recolheu à vida privada e que não era especialista em nenhum campo, o que torna seus ensaios algo diferente de tudo publicado até então: escritos de um leigo, para um público leigo. Por mais que alegue falar apenas sobre si mesmo, Montaigne aborda os assuntos mais variados, sempre apoiado em leituras extensíssimas (dos clássicos greco-latinos, principalmente), mas também em sua experiência de vida e em casos contemporâneos.
São ensaios pessoais demais para serem artigos de filosofia, mas profundos demais para serem meras crônicas. Eles respondem à antiga máxima “Conheça-te a ti mesmo”, e às vezes certo egotismo fica claro, como quando Montaigne desata a falar sobre suas preferências e – seu assunto preferido – o próprio caráter e disposição. Mas, no processo de investigar a si mesmo, faz análises afiadas sobre os costumes de sua época e de seu país e sobre a natureza humana em geral.
Tendo em mente que Montaigne viveu no século XVI, sua obra é interessante para o leitor moderno não tanto pelo que pode revelar da época, por meio de certos preconceitos e noções, mas por quanto ele se afasta da imagem que teríamos de um homem de seu tempo. É impressionante como algumas de suas ideias são não apenas revolucionárias para a época, mas ainda relevantes. Citarei apenas alguns temas de que trata, com algumas das muitas citações que marquei no livro.
Mulheres
Montaigne considera as mulheres inferiores, sensíveis e não aptas a tratar de assuntos sérios, isso quando não fala de sua “astúcia”, entre outros defeitos. Porém, trata abertamente de sexo e das exigências que os homens e a sociedade impõem a elas, apontando a dupla moral e a hipocrisia desses costumes. Por exemplo, considera a reverência que uma mulher deveria ter ao marido “injusta e difícil”, e mostra que os homens não se recriminam por seus desejos sexuais, mas esperam que as mulheres sejam castas. Sua misoginia é inegável e recorrente – porém, também inegável é que ele estava muito além do seu tempo nesse assunto. Como discordar das frases abaixo?
“As mulheres não estão erradas quando recusam as regras da vida que se introduzem no mundo, porquanto foram os homens que as fizeram para elas.”
“O amor é uma convenção livre, por que não nos ligarmos a ele como desejamos que elas o façam?”
Colonização
Em um ensaio surpreendente chamado “Sobre os canibais”, Montaigne não apenas não considera os povos do Novo Mundo selvagens, como aponta que piores são os próprios europeus, que eram “mestres muito maiores que eles em toda espécie de maldade” (!). Isso apenas algumas décadas após a chegada dos europeus na América. Em outros ensaios retoma o assunto da crueldade e abomina a tortura praticada pelos europeus, além de dizer que o ser humano deve ter respeito com os animais e as plantas. E até chega a afirmar a superioridade, em alguns aspectos, da China e de outros lugares em relação ao continente europeu.
“[…] acho que não há nada de bárbaro e de selvagem nessa nação, a não ser que cada um chama de barbárie o que não é seu costume. Assim como, de fato, não temos outro critério de verdade e de razão além do exemplo e da forma das opiniões e usos do país em que estamos.”
“O valor e o preço de um homem residem no seu coração e na sua vontade; […] a valentia é a firmeza, não das pernas e dos braços, mas do coração e da alma, não consiste no valor de nosso cavalo nem de nossas armas, mas no nosso.”
A educação das crianças
Para Montaigne, é mais importante um professor inteligente do que um professor recheado de conhecimento. Uma boa educação se vê não pela memória do aluno para decorar fatos, e sim em uma vida bem vivida, e na capacidade de reconhecer seus erros quando confrontado com a verdade. Essencialmente, defende que os bons professores fazem seus alunos pensar por si mesmos. Há algo mais moderno que isso?
“Todos nós estamos fechados e encolhidos em nós mesmos e temos a visão limitada ao comprimento do nosso nariz.”
“Este grande mundo […] é o espelho em que devemos nos mirar para nos conhecermos de um bom ângulo.”
Os médicos
O horror de Montaigne aos médicos é divertidíssimo: acredita que são todos charlatães e que fazem mais mal do que bem, mais adiantando a morte do que protelando-a (o que não chega a ser mentira, considerando alguns dos tratamentos de sua época!).
“Deveriam contrair sífilis se quisessem saber curá-la.”
Os advogados e a lei
Montaigne critica duramente a multiplicidade das leis francesas e acusa os juízes de muitas vezes condenar inocentes. Aponta que há muita liberdade de interpretação nas leis, e que seria melhor se, em vez de julgar por precedentes, a Justiça considerasse cada caso individualmente.
“Por que é que nossa linguagem corrente, tão cômoda para qualquer outro uso, torna-se obscura e ininteligível nos contratos e testamentos?”
A religião
Montaigne é contra aqueles que dizem saber tudo sobre Deus e a natureza, e acha absurdo que o homem pense entendê-los. É contra superstições e a credulidade, e não hesita em apontar a hipocrisia dos cristãos declarados.
“A posição de um homem que mistura a devoção com uma vida execrável parece ser bem mais condenável que a de um homem coerente consigo mesmo e inteiramente dissoluto.”
Pais e filhos
Num ensaio muito interessante e talvez polêmico hoje, chamado “Sobre a afeição dos pais pelos filhos”, abomina que os pais mantenham os filhos próximos pela obrigação e por necessidade – mas também não entende por que os pais amam os filhos até que esses se provem dignos de afeição. E, para completar, questiona se não seria melhor criar um filho doente, tolo ou inepto do que um livro ruim.
“Um pai é um tanto infeliz se só conservar o amor de seus filhos pela necessidade que têm de seu auxílio, se é que a isso pode se chamar de amor.”
“Se fosse proposto (por exemplo) a Santo Agostinho, de um lado, enterrar seus escritos que são tão proveitosos para nossa religião, e, de outro, enterrar seus filhos, caso os tivesse, talvez seria impiedade se não preferisse enterrar os filhos.”
Os reis
Montaigne é bastante audacioso ao sugerir que os reis precisam mais de conselheiros honestos do que bajuladores. Ainda critica as despesas excessivas dos governantes, e defende – pasmem – que em vez de gastar dinheiro público com comemorações e demonstrações de ostentação que acabam rapidamente, seria mais proveitoso empregar esse dinheiro na construção de escolas, hospitais e reformas públicas. Qualquer semelhança com o ano de 2014 é mera coincidência.
“Pois se figurarmos com exatidão, um rei não tem nada propriamente seu: ele mesmo se deve aos outros.”
“Ora, não há nenhuma espécie de homem que tenha tão grande necessidade quanto estes de verdadeiras e livres advertências.”
Os ensaios tocam também em assuntos mais íntimos, como a defesa da solidão (enquanto capacidade do homem de aproveitar a companhia de outros, mas não depender dela para conseguir viver bem); os hábitos e a felicidade; o envelhecimento, a doença e a atitude diante da morte; a diferença entre a bondade inata e a virtude; a inconstância dos homens e os arrependimentos, entre outros.
É uma leitura demorada, mas que propicia uma reflexão sobre muitos tópicos. Concorde ou discorde dele, Montaigne tem lucidez demais para ser desconsiderado. Não acho que esses ensaios devam ser lidos como literatura nem como retrato de um século distante: as pessoas não mudaram o suficiente para podermos considerar Montaigne um estranho. Sem dúvida, ele estabelecerá um diálogo com o leitor do século XXI – e dos vindouros.
*
Os ensaios
Autor: Michel de Montaigne
Tradutora: Rosa Freire d’Aguiar
Editora: Penguin-Companhia
Ano de publicação: 1580, 1588 e 1595
Ano desta edição: 2010
624 páginas
Eu lembro desse livro na sua mesinha! =)
Excelente resenha, adorei a seleção de trechos e os comentários. E, se quer saber, a parte sobre o direito é incrivelmente verdadeira. Uns anos atrás houve um projeto de elaborar uma versão simplificada das leis, para ampliar o acesso da população ao conteúdo… Tantos juristas surtaram com esse “absurdo” que o lance não foi pra frente…
Obrigada, querida! Lembrei de você nessa parte, rs, e achei super relevantes os comentários dele.
Isa, supreendente: no ano passado, um livro que se chama “Un eté avec Montaigne” (Um verão com Montaigne) foi best-seller na França. Ficou na lista dos mais vendidos por bastante tempo, foram 170 mil exemplares vendidos!
Pra você ver como o cara era moderno! Várias ideias dele ainda são interessantes…
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