[Resenha] Y: o último homem

Esta resenha foi feita com base na edição em inglês da Vertigo. Todas as traduções de trechos foram feitas por mim.

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Sinopse:

O que aconteceria se todos os homens morressem? Em um instante, todos os seres de cromossomo Y do planeta caíram mortos – inexplicavelmente. As mulheres agora dominam o mundo, mesmo sabendo que não há salvação para a raça humana. O que elas não sabem é que há uma esperança: Yorick Brown e seu macaco Ampersand são os únicos machos que ainda caminham sobre a Terra. Se conseguirem continuar vivos, eles vão descobrir o que matou todos os homens – e salvar o planeta.

Fonte: Vertigo

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Vencedora do Prêmio Eisner, esta HQ me chamou a atenção desde a primeira vez que ouvi falar nela, devido ao tema intrigante: em 2002, por algum motivo desconhecido e ao mesmo tempo, todos os mamíferos com cromossomo Y simplesmente morrem. Todos exceto um jovem americano chamado Yorick e seu macaco de estimação, Ampersand.

Caso você não consiga imaginar a amplitude do problema, logo após o primeiro capítulo da história há um texto introdutório com alguns números que são um tapa na cara:

“O ‘generocídio’ exterminou instantaneamente 48% da população global, aproximadamente 2,9 bilhões de homens. 495 dos 500 CEOs mais importantes do mundo morreram, assim como 99% dos proprietários de terra.

Só nos Estados Unidos, mais de 95% de todos os pilotos comerciais, motoristas de caminhão e capitães de navio morreram… e também 92% dos criminosos violentos. Internacionalmente, 99% de todos os mecânicos, eletricistas e pedreiros se foram… mas 51% da mão de obra agrícola ainda está viva.

[…]

No mundo todo, 85% dos representantes de governo estão agora mortos… e também 100% dos sacerdotes católicos, imãs mulçumanos e rabinos judeus ortodoxos.”

Ou seja, todas as mulheres do planeta se veem, de um minuto para o outro, em uma realidade pós-apocalíptica, desesperadora e surreal.

Em meio a tudo isso estão Yorick e seu macaco, que logo são encontrados pelo governo norte-americano e recebem uma missão: acompanhados da agente especial 355, vão procurar a dra. Alison Mann, bióloga especializada em clonagem. Ela vai investigar por que os dois sobreviveram e tentar desenvolver uma solução para o que passa a ser denominado “a praga”.

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“… não estraguem tudo.”

O rapaz torna-se então a chave para a possível sobrevivência da humanidade, além de causa de conflitos nacionais e internacionais. Mas o plano de Yorick é outro: ele quer, a todo custo, ir à Austrália para reencontrar sua noiva Beth, que estava na Oceania a serviço e com quem não consegue se comunicar desde o início da praga.

Assim tem início uma jornada de proporções épicas, na qual os protagonistas viajam por vários países, enfrentam diversos contratempos e seguem rumos inesperados.

Personagens

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“Sério, você tem sido o último pinto da Terra há séculos. Como não fodeu nem uma garota esse tempo todo?”

O protagonista dessa história é um homem comum, não muito machista mas bastante babaca, que faz piadinhas fora de hora (mas bastante divertidas para o leitor!) e é extremamente romântico – mesmo se tornando o último homem da Terra, a única mulher em que pensa é a noiva. O hobbie de Yorick são truques de mágica – ele se autodenomina um “escape artist”, e suas habilidades de fuga são bastante úteis ao longo da trama. Mas o mais importante é que Yorick é um personagem complexo, com muitas nuances que o tornam verossímil e interessante. Muitos traços de sua personalidade são explicados no decorrer da HQ – inclusive a tendência, comum a heróis de ação, de tomar atitudes arriscadas e um pouco idiotas – e mudam bastante. O arco desse personagem se desenvolve a olhos vistos durante os cinco anos que a série retrata.

“Mãe de Deus. Por que estou me esforçando tanto para salvar esse planeta retrógrado?”

“Mãe de Deus. Por que estou me esforçando tanto para salvar esse planeta retrógrado?”

A dra. Mann é uma mulher amargurada com a vida. Extremamente séria e um pouco reclamona, ela tem pouca paciência com Yorick e, a princípio, não me cativou muito. Porém, à medida que a trama avança, vamos descobrindo os complexos dramas familiares dos quais ela tenta fugir a todo custo, e a personagem vai ficando mais interessante e humana.

“Mas, em todo caso, vou te deixar isto.”

“Mas, em todo caso, vou te deixar isto.”

 

“Minha mãe uma vez me disse que um bom relacionamento não é aquele em que a outra pessoa faz você se sentir melhor, mas sim quando ela te torna melhor. O seu é assim?”

“Minha mãe uma vez me disse que um bom relacionamento não é aquele em que a outra pessoa faz você se sentir melhor, mas sim quando ela te torna melhor. O seu é assim?”

A agente 355 é, de longe, minha personagem favorita. Ela é centrada e durona, aquela mulher que entra em cena matando todo mundo. Mas, ao contrário de muitas personagens com esse perfil, não se resume apenas a um soldado! Como vai se revelando pouco a pouco ao leitor, 355 tem seus momentos de fraqueza, tanto física (ela apanha algumas vezes, e bem feio!) como emocional. É a pessoa mais competente para cumprir sua missão, mas às vezes chora e diz que não aguenta mais. É guardiã e guia de Yorick, mas também aprende muito com ele. Ela é uma personagem completa como poucas que eu já vi, muito bem construída e inesperadamente cativante. Todo o meu amor para 355!

Outras personagens da história também são muito bem estruturadas. Há Hero, irmã de Yorick, que vive grandes dilemas éticos ao longo da trama; Victoria, líder do grupo misândrico das “Amazonas”, que tentam a todo custo destruir tudo o que restou do extinto patriarcado; Alter, comandante das tropas iranianas que descobrem Yorick e tentam sequestrá-lo; e outras mulheres incríveis que cruzam o caminho de Yorick e acabam se tornando parte importante da história.

Fiquei positivamente surpresa ao descobrir que todos os protagonistas (incluindo Ampersand!) e alguns dos coadjuvantes têm seu background contado no gibi, em flashbacks que permitem ao leitor entender melhor cada um deles e como se tornaram o que são.

Feminismo e representatividade

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“Nós somos várias coisas, mas não somos putas, menina. O dia em que você foder um cara para salvar sua vida é o dia em que você deveria ter morrido. Entendeu?”

Nem preciso dizer que a série é repleta de questões de gênero, né? É um prato cheio para quem quer refletir sobre o assunto. O simples questionamento sobre as consequências da praga já nos faz pensar sobre quais foram as reais conquistas das mulheres na sociedade até agora.

Mesmo os flashbacks, que remetem à vida dos personagens antes da praga, sempre trazem debates relacionados ao assunto – a primeira conversa entre Yorick e a noiva, por exemplo, foi sobre o uso de pronomes masculinos e femininos na língua francesa (porque Yorick, além de garanhão, é bacharel em Letras).

Y sabe retratar mulheres com muitos tipos de conflitos – elas têm que ser fortes para sobreviver a um mundo em crise, para superar a morte de vários entes queridos de uma vez e para enfrentar o fato de que, a não ser que a ciência ou um milagre ajude, serão a última geração da Terra. Algumas encaram a situação muito bem, outras nem tanto (eu mencionei as Amazonas, certo?), e a riqueza de perfis e de personalidades é encantadora.

A única grande crítica que tenho a fazer nesse aspecto é à representação dos corpos femininos. Mesmo sem a distorção bizarra que muitos quadrinhos fazem das mulheres, em Y uns 90% delas têm o corpo idêntico – que é, basicamente, o corpo da Barbie. Achei uma falha bem grave para uma HQ que se propõe a discutir questões de independência feminina e das imposições masculinas. Além disso, há algumas cenas de nudez ou sensualidade um tanto quanto gratuitas – embora seja até compreensível que, sem nenhum homem na face da Terra, seja prático e agradável andar por aí de biquíni em dias quentes.

A única mulher gorda deste grupo é também meio abobalhada.

A única mulher gorda deste grupo é também meio abobalhada.

Comentários gerais

Os desenhos de Y são maravilhosos e a harmonia de cores em cada página é perfeita. Isso, junto com os vários easter eggs envolvendo a letra Y, a metalinguagem com a qual os roteiristas brincam aqui e ali e as referências à obra de Shakespeare (que começam no nome do protagonista, personagem de Hamlet), deixa a história ainda mais gostosa de ler.

Enquanto os personagens atravessam o mundo, o leitor descobre um pouco sobre a situação de vários grupos de mulheres em diferentes países. À questão de gênero se unem discussões sobre política, religião e ética, mas tudo com um clima de aventura. A trama principal vai seguindo rumos cada vez mais inusitados (Yorick e suas companheiras são perseguidos por exércitos inteiros, grupos misândricos e até por uma ninja), culminando em cliffhangers de tirar o fôlego no final de cada revista. Tudo isso é muito bem desenvolvido até o fim da série, que tem um desfecho inusitado mas bem justificado (à exceção do destino de duas das personagens, que não me convenceu).

Recheado de ação, romance, guerra, mistério e amizade, Y é leitura indispensável para todos os amantes de histórias em quadrinhos, e uma excelente história da qual me tornei fã.

*

Y: o último homem
Autores: Brian K. Vaughan e Pia Guerra
Tradutor: Fábio Fernandes
Editora: Vertigo
Ano de publicação: 2009-2012
5 volumes, 132 páginas cada

Citações favoritas

“Porque, quando você tira a balança e a venda... a Justiça é uma mulher com uma espada.”

“Porque, quando você tira a balança e a venda… a Justiça é uma mulher com uma espada.”

“Você não entende, né? As australianas estão certas. Agora que você está aqui, eu sou só mais uma vaca louca fodendo com o mundo que você vai salvar. É claro. Um mundo inteiro de mulheres, e o único homem vira o protagonista.”

“Você não entende, né? As australianas estão certas. Agora que você está aqui, eu sou só mais uma vaca louca fodendo com o mundo que você vai salvar. É claro. Um mundo inteiro de mulheres, e o único homem vira o protagonista.”

17 respostas em “[Resenha] Y: o último homem

  1. Existe um filme com essa mesma temática, mas ele foi feito pra televisão e acho que nunca passou aqui na TV aberta: O Último Homem do Planeta Terra. Os homens morreram numa guerra e as mulheres assumiram o mundo em todos os segmentos. Mas uma cientista conseguiu isolar um cromossomo Y e criou um homem. Quem é hetero, quem sente atração pelos homens é mal visto. Tanto que existe até um mercado negro de revistas com nu masculino.

    Ótima resenha. 🙂

    • Esse filme parece muito interessante, vou procurar! A questão da sexualidade é vista de forma mais aberta nessa HQ – há muitas mulheres trans que agradam às héteros, e muitas delas se prostituem.
      Que bom que gostou da resenha! 😀

  2. Excelente resenha! Parabéns!
    Desde que a revista foi lançada que sou louco pra lê-la, mas só conseguir esse ano. E achei a história fantástica! Pra falar a verdade fiquei super empolgado falando dela pra todo mundo que conheço. Até pensei em escrever uma resenha sobre ela também, mas achei que minha empolgação poderia ser um problema ao julgar a revista, o que de fato teria ocorrido. E vejo isso agora depois de ler sua resenha.
    “Um mundo inteiro de mulheres, e o único homem vira o protagonista.” Adoro essa citação também!
    E 355 é também de longe minha personagem preferida! Amo a personagem! Perfeita! Acredite ou não, chorei muito com ela!
    Mas fiquei curioso com uma coisa: Com qual destino de duas das personagens você não ficou convencida? Eu, particularmente não fiquei muito convencido com o destino de Hero e Beth.
    Abraços e excelente Blog!

    • Oi, Humberto! Que bom que gostou da resenha, muito obrigada! Eu também fiquei com medo que minha empolgação acabasse transbordando demais para a resenha, mas espero que não tenha acontecido.
      Com relação à sua pergunta:

      — SPOILERS —
      Sim, foi justamente com Hero e Beth que eu não fiquei convencida. Achei que foi um final bem infundado para as duas, que não se justificava com nada que tivéssemos visto no restante da HQ. Acho que faria mais sentido, por exemplo, se Hero ficasse com Beth 2, que a pedido de Yorick a acompanhou e ajudou por tanto tempo.
      Mas o final da HQ foi, de forma geral, tão bom, que eu perdoo os autores. 😉

      • A resenha foi na medida, bem sóbria e ponderada!
        Quanto ao final das personagens (e espero não ter soltado nenhum spoiler 🙂 ) concordo plenamente com você! Foi a mesmíssima impressão que eu tive. Mas, de fato, o final muito bom mesmo. Dá pra perdoar sim!
        Abração!

  3. Como sempre, em todas as séries que eu vi, filmes, eu odiei o o final. E simplesmente odiei o final! AEHUAHEAUEH Mas fazer o quê né, pra obra virar um épico acontecem essas merdas aí. A 355 tinha que ficar viva, e pra que fazer a Hero virar lésbica, tipo sério? Final CAGADOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!

    • – SPOILERS –
      Oi, Ana! Eu gostei de algumas partes do final. A única parte que não gostei de verdade foi a Hero ficar com a Beth – isso não fez sentido nenhum, a história nunca mostrou uma conexão forte entre elas. Mas de resto, achei que valeu muito a pena, e inclusive gostei que o final não tenha sido muito feliz, achei que combinou com a história.
      Obrigada pelo comentário!

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  6. Estranho, muito estranho mesmo. Acabei de comprar a primeira edição de luxo da obra e confiava plenamente na qualidade da HQ – raramente me decepciono com obras da Vertigo – quando me vi embrulhado em uma trama sacal !
    A premissa é realmente interessante, mas permeada por personagens EXTREMAMENTE pueris, beirando o infantiloide, e repleto de diálogos insulsos. Esperava um desenvolvimento de personagens denso, que nos prendesse por suas características, como em Sandman, Hellblazer, Monstro do Pantano e até mesmo Lúcifer. Mas nada disso é entregue para o leitor. Fiquei decepcionado.

    • Elmer, obrigada pelo comentário. Talvez a sua expectativa estivesse diferente porque, diferente das outras obras que você citou, esta é mais focada na trama e na discussão política do que no desenvolvimento de personagens. Mas devo dizer que esse desenvolvimento acontece sim – ele é bem sutil e vai se revelando pouco a pouco, e por isso mesmo acho muito bem feito. Mas é claro que essa é a minha opinião!

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