[Resenha] Catarina, a Grande: retrato de uma mulher

Esta resenha foi feita com base na edição em inglês da Random House. A tradução de trechos do livro foi feita por mim.

catSinopse:

Nesta obra, a autor procura narrar a trajetória da obscura princesa alemã levada para a Rússia aos 14 anos para casar-se com Pedro III, herdeiro do trono, e que acabou conduzindo um golpe que depôs o marido e a levou à coroação.

Fonte: Livraria Cultura

Raramente começo uma resenha recomendando o livro sem ressalvas, mas este é um desses casos. Não fique intimidado pelo assunto, pelo gênero ou pelas 600 páginas desta biografia: você pode lê-la mesmo sem saber nada sobre a Rússia (mas claro que é ainda melhor se souber!), e garanto que vai se apaixonar pelo brilhante relato.

Esse é o segundo livro de Robert K. Massie que leio: o primeiro foi Peter the Great: His Life and World, uma biografia do czar Pedro, o Grande, mais conhecido por europeizar a Rússia do seu tempo. Não costumo ler biografias, mas como amo história e cultura russa, resolvi dar uma chance ao livro – e o trabalho de Massie me encantou, não só pela extensíssima pesquisa que fez, mas principalmente por como conseguiu escrever uma biografia que se lia como um romance. Nesta obra sobre Catarina, ele repete o feito.

De algum modo, Massie reúne as fontes mais diversas – cartas, leis, despachos de diplomatas estrangeiros e, no caso de Catarina, escritos autobiográficos – e descreve pessoas reais de modo tão vivo que sentimos que as conhecemos. O leitor se torna especialmente íntimo do biografado, vê o mundo através de seus olhos e, mesmo quando discorda de suas ações, entende o que as motivou. É um feito impressionante e, aliado ao fato de que Massie sabe explicar facilmente contextos históricos complexos, o resultado é como um ótimo romance histórico. São livros de te manter acordado além da hora, lendo só mais um capítulo.

Há semelhanças entre os dois monarcas biografados por Massie: ambos foram figuras de personalidade forte, que fizeram (ou tentaram fazer) reformas inovadoras; cuja força de vontade e espírito eram admirados pelos contemporâneos; que chegaram ao poder após derrotar a oposição; que odiavam formalidades e se cercavam de pessoas com quem pudessem ser honestos; e que, de modos diversos, mereceram o epíteto que lhes foi dado. A própria Catarina se via como herdeira política de Pedro, e ergueu uma famosa estátua em São Petersburgo em homenagem a ele.

A maior diferença entre as biografias é que a de Pedro foca mais na política (ele passou grande parte do reinado em guerras contra o vizinho Charles XII, da Suécia) e é bem mais sangrenta – afinal, Pedro herdou a Rússia de Ivan, o Terrível; Catarina, a Rússia de Pedro. A biografia desta se concentra bem mais em sua vida pessoal, que foi, em grande parte, um pesadelo.

Catarina não era russa, mas uma princesa alemã trazida à Rússia pela imperatriz Elizabeth para se casar com o herdeiro ao trono, Pedro III. Sua infância foi extremamente opressiva – a mãe não gostava dela e seu espírito inquisidor não era apreciado por seus professores – e quando chegou à Rússia passou a adolescência e a juventude presa a um casamento com um homem problemático, que não lhe dava o mínimo de atenção ou afeto.

O casamento era uma prisão não apenas metaforicamente: a função de Catarina era ter um filho, e por isso era vigiada 24 horas, por pessoas que queriam mantê-la afastada da política e perto do marido. Não funcionou: Pedro III nem chegava perto dela, e o primeiro filho só chegaria 9 anos depois do casamento, fruto de um caso (na época, a própria imperatriz, desesperada para ter um herdeiro ao trono, incentivou a traição!). As intrigas palacianas parecem saídas de um romance, e as circunstâncias do casamento de Catarina e sua falta de liberdade são algumas das partes mais impressionantes do livro. Pra se ter uma ideia, quando nasce o primeiro filho, ela não pode escolher o nome da criança e não a vê por uma semana! A imperatriz afasta o menino, e cria o neto como se fosse seu filho.

A vida claustrofóbica atraiu Catarina para os livros, seu único refúgio. Ela se tornou uma grande leitora dos filósofos do Iluminismo, pupila de Montesquieu, Voltaire e Diderot, cujas ideias moldariam suas visões políticas por um bom tempo.

Sua vida se divide em duas metades quase iguais – do nascimento até a morte da imperatriz Elizabeth, em 1762; e do breve reinado do marido e sua ascensão ao trono até sua morte em 1796. Pedro III não durou muito no poder: universalmente odiado, incapaz e com vários problemas psicológicos, foi afastado pela mulher com ajuda do exército. Catarina era inteligente ao extremo, e ao longo dos anos foi conquistando o povo russo, o que o marido jamais fez. Quando o momento era propício, aos 33 anos, ela deu um golpe de Estado.

“Ela sentava no trono de Pedro, o Grande, e comandava um império, o maior na Terra. Sua assinatura, escrita em um decreto, era lei e, se ela quisesse, poderia significar vida ou morte para qualquer um dos seus 20 milhões de súditos. Era inteligente, uma grande leitora, e uma juíza perspicaz de caráter. Durante o golpe, tinha mostrado determinação e coragem; uma vez no trono, revelou uma mente aberta, disposição para perdoar, e uma moralidade política fundada na racionalidade e na eficiência prática. Ela suavizou a figura imperial com senso de humor e uma língua afiada; na verdade, com Catarina, mais do que com qualquer outro monarca de sua época, havia sempre um grande espaço para o humor. Havia também uma linha a não ser cruzada, mesmo pelos amigos próximos.”

Durante seu reinado de 34 anos, ela começaria e enfrentaria guerras e faria alianças com os vizinhos europeus; se tornaria a maior colecionadora de arte da Europa e trocaria cartas com Voltaire e Diderot; enfrentaria rebeliões internas; teria amantes – alguns de quem realmente gostava, outros meramente para servir de companhia; seria a principal responsável pela divisão da Polônia entre Rússia, Prússia e Áustria, efetivamente acabando com o país; e tentaria realizar mudanças significativas em seu império, só pra descobrir que boa vontade, trabalho duro e ideias iluministas não mudariam o país da noite para o dia.

Este último caso merece destaque: Catarina tenta criar um novo código de leis para o país, um esforço que acabou não dando em nada, uma vez que a Igreja e a nobreza resistiam a qualquer mudança que pudesse melhorar as condições do povo russo. No entanto, foi a primeira vez em que os vários setores sociais do país se reuniram para discutir abertamente seus problemas e fazer reclamações (o que, como aponta Massie, só aconteceria de novo em 1905!).

O livro também é fascinante pois, mesmo focado na história de Catarina, aborda a situação europeia geral – os monarcas faziam e quebravam alianças a toda hora, dependendo de suas ambições e sagacidade política, de modo que falar de uma monarquia é falar de todo o continente. Além de explicar essas relações, Massie revela conexões que eu nunca imaginei existir (como o fato de a Inglaterra ter pedido 20 mil soldados russos para combater certa revolta em suas colônias na América do Norte em 1776!) e, ao fim do livro, mostra a reação de Catarina, e dos outros monarcas da época, à Revolução Francesa.

É interessante ver como a imperatriz discípula de Montesquieu se torna reacionária em seus últimos anos – mas inteiramente compreensível, uma vez que o autor explica como o abismo entre ideologia e realidade a levaram a esse ponto. Mesmo assim, é uma posição radical da mulher que décadas antes escrevera, profeticamente:

“Uma emancipação geral do jugo insuportável e cruel não vai ocorrer… mas se não concordarmos com a diminuição da crueldade e a melhoria da posição intolerável da espécie humana, então, mesmo contra a nossa vontade, eles mesmos a conseguirão, mais cedo ou mais tarde.”

Tenho poucas críticas ao livro. Minha edição (em inglês, da Random House) não tem tantas imagens quanto a biografia de Pedro – senti a falta de fotos, especialmente quando Massie fala da arquitetura; é difícil imaginar todos aqueles prédios e jardins. Além disso, vez ou outra, o autor faz menções que um leitor sem algum conhecimento da história russa não entenderia.

Mas são coisas pequenas em meio a uma grande obra. Massie levou oito anos para completar o livro, e o resultado é uma união perfeita entre a pesquisa minuciosa do biógrafo e a maestria narrativa do romancista. Ao fim, depois de acompanhar a jornada da princesa alemã que se torna uma das monarcas mais poderosas do seu tempo e última imperatriz da Rússia, sentimos saudade dessa grande figura.

*

Catarina, a Grande: retrato de uma mulher
Autor: Robert K. Massie
Tradutora: Ângela Lobo de Andrade
Editora: Rocco
Ano de publicação: 2012
640 páginas

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6 respostas em “[Resenha] Catarina, a Grande: retrato de uma mulher

  1. Adorei, adorei, adorei!

    Sou apaixonada por história e quando é biografia então… Não conheço muito da história da Rússia, mas parece ser fascinante!

    Lembrei de uma biografia histórica que li da editora Casa da Palavra, A Bastarda. Conta a história de uma bastarda de D. João. Eu comecei a ler esse livro sem saber que era uma história real – pasme! E no fim, quando finalmente parei para pesquisar sobre fiquei até arrepiada por saber que tudo pelo o que a personagem passou foi real. Apesar de terem alguns pontos que eu não curti do livro, recomendo a leitura! (se quiser saber mais tem resenha lá no blog).

    Beijos!
    Um Metro e Meio de Livros

    • Oi, Babi! A história da Rússia é cheia de personagens incríveis, sou apaixonada pelo assunto.

      Não conheço esse livro, vou lá no blog procurar! E, por mais que eu ame ficção, saber que alguém realmente passou pelas coisas que você está lendo é muito legal (e bizarro). Faz você realmente abrir a mente.

      Enfim, fico feliz que tenha gostado da resenha! 🙂

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