Sinopse: No final do século XIX, o Ministério da Guerra britânico convoca o jovem Edgar Drake para afinar um piano de cauda Érard no forte de Mae Lwin, no sudeste asiático. O instrumento fora levado aos confins da selva birmanesa a fim de tentar apaziguar, por meio da música, a convivência entre nativos e militares ingleses. O tímido e ingênuo afinador aceita a incumbência e começa uma longa viagem de iniciação e aprendizagem.
Fonte: Livraria Cultura
Inglaterra, segunda metade do século XIX. O afinador de piano Edgar Drake recebe um pedido inusitado do exército britânico: ir até um posto remoto na Birmânia e consertar o piano Érard de um major peculiar, Anthony Carroll. Carroll é como uma lenda. Foi o único a conseguir estabelecer um forte na fronteira da Birmânia e por isso os militares o mantêm no lugar, mas não gostam muito dele e de seus métodos pouco ortodoxos. Uma das extravagâncias do major foi exigir que lhe trouxessem um piano de cauda no meio da floresta birmanesa, e então pedir que enviassem um afinador para consertá-lo.
Edgar logo começa a simpatizar com esse homem que nunca viu e, sem entender bem por quê, aceita empreender a viagem árdua.
Por minha vez, já tinha simpatizado com Edgar só de ler a quarta capa, e o livro não decepcionou. À primeira vista, ele não é um protagonista dos mais fascinantes: aos 41 anos, tem um emprego pacato, um casamento feliz e nenhum filho, e é um cara sossegado, que gosta de poesia e ama – para não dizer respira – música. Mas não toca, pois, segundo ele, não tem talento.Assim, limita-se a consertar pianos.
Só por ter aceitado a missão, no entanto, vê-se que há algo mais nesse homem, e ele vai se revelando (e se conhecendo) à medida que se afasta de casa pela primeira vez.
Edgar é curioso, tem mente aberta, não gosta muito dos militares britânicos e admira os orientais por suas invenções. Também tem um senso de humor que transparece em certos pontos da história, como quando envia uma carta bastante séria ao Ministério da Guerra contando a história dos pianos Érard (que, ele argumenta, é de extrema importância que eles conheçam).
A primeira parte do livro narra o trajeto até Mae Lwin, o forte de Carroll. A viagem é extensa e complicada, por rio e terra, incluindo várias paradas. A paisagem da África e da Ásia vai se descortinando ao leitor, sendo descrita com toda a calma, detalhada e minuciosamente. O tempo da narrativa é quase o tempo da viagem; o leitor é obrigado a passar os dias com Edgar e vai se acostumando ao ritmo da viagem. No meu caso, quase não queria que ela acabasse. Afinal, Edgar tem várias experiências só na ida – ouve histórias de viajantes, vê templos e cidades, passeia por ruas movimentadas. A descrição é tão vívida que sentimos os cheiros, vemos as cores e queimamos sob o sol escaldante. Pra não mencionar os sons: os percebemos pelos ouvidos de Edgar, que atrelam sensações à música.
Seu encantamento só aumenta à medida que a viagem progride e o leitor/viajante sem dúvida se reconhecerá nas reações de Edgar às paisagens e costumes novos, belos e fascinantes. A obra me fascinou ainda por outro motivo: fala de uma época em que ainda havia partes desconhecidas no mundo, em que viajar era um grande empreendimento – muitas vezes perigoso. O livro, apesar de ser completamente diferente em tom, me lembrou da sensação de ler Júlio Verne, que retratava um mundo muito maior do que o nosso, com foco nas dificuldades de vê-lo. A viagem em si é grande parte da história, pois, como diz o major Carroll sobre a Odisseia:
Sempre entendi o poema como uma lenda trágica sobre a luta de Odisseu para encontrar o caminho de casa. Cada vez mais compreendo o que Dante e Tennyson escreveram a respeito, que Odisseu não estava perdido, que, depois de todas as maravilhas que testemunhara, Odisseu não podia, talvez não quisesse, voltar para casa.
Apesar de a história do piano e os protagonistas serem fictícios, o autor se baseou em um contexto histórico real, e é impressionante como o evoca em suas descrições de eventos, de lugares e da política, pra não mencionar seu extenso conhecimento da flora e fauna da região (não à toa; ele escreveu a obra no próprio local). Talvez alguns considerem essas partes um pouco cansativas, mas o livro é longo e exige uma leitura pausada. Não me incomodei com o ritmo lento, deixando-me arrastar pelas frases musicais, como Edgar desliza suavemente a um destino exótico e empolgante.
Ele chega em Mae Lwin, é claro, e as coisas ficam ainda mais interessantes. Além de conhecer o famoso Dr. Carroll (que é e não é o que ele espera), torna-se íntimo de uma birmanesa, Khin Myo, estabelecendo com ela um relacionamento delicado e hesitante, considerando que Edgar é casado e que ela tem as próprias restrições.
Ah, e não posso deixar de mencionar que fãs de música – em especial, do piano – devem amar as descrições habilidosas sobre música e sobre o funcionamento do instrumento. Eu, que não entendo nada do assunto, já achei essas partes bem bonitas. E, como disse, a sensibilidade musical de Edgar rende belíssimos trechos.
Minha maior crítica ao livro é o final – ocorre uma mudança de tom bastante brusca, que por um lado é interessante (dá um choque no leitor!), mas por outro me incomodou um pouco. Admito que, ao longo do livro, há pistas do que aconteceria, mas fiquei bastante surpresa com o desfecho. Também restam algumas dúvidas, que são instigantes mas que eu gostaria que o autor tivesse respondido.
O livro é de 2003 e não está disponível em livrarias, aparentemente, mas pode ser encontrado facilmente em sebos (Estante Virtual/Livronauta). Apesar do final diferente das minhas expectativas, não queria que o livro acabasse e o recomendo fortemente.
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O afinador de piano
Autor: Daniel Mason
Tradutora: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Ano de publicação: 2003
400 páginas
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Citações preferidas
[…] uma frase da carta de Carroll o seguiu como uma baforada sutil de cigarro num salão de concerto. É mais fácil entregar um homem do que um piano. Desconfiava que iria gostar desse médico; não era sempre que alguém encontrava palavras tão poéticas na carta de um militar. E Edgar Drake tinha bastante respeito por todos que encontram música na responsabilidade.
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Nessa noite, Edgar acorda várias vezes, desorientado. Faltam ainda dois dias para que desabe no jardim de rosas, mas já nesse momento sente o início de uma lágrima, irreparável, fragmentos de tinta dispersos qual poeira ao vento ao rasgar-se uma tela. Tudo mudou, ele pensa, Isso não é parte dos meus planos, do meu contrato, do meu serviço.
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[…] o que as crianças sabiam, e ele não compreendia, poderia ter aprendido com qualquer um dos carregadores que transportavam os caixotes para o trem. Os talismãs mais poderosos, eles teriam lhe dito, são aqueles que nos vêm por herança, e com tais talismãs herdamos também a sorte de quem os legou.
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Não entendia as palavras, mas sabia o que estava sendo cantado. As canções sobre a perda são universais, pensou, e junto com aquela voz alguma outra coisa ergueu-se no ar, retorceu-se, dançou com a fumaça da fogueira e flutuou rumo ao céu.
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Ele trabalhava de olhos abertos, mas quando acabava, quando revia o que tinha feito no dia, não conseguia jamais se lembrar de uma única imagem visível, apenas do que ouvira, uma paisagem marcada por tons, timbres, intervalos, vibrações, Eles são minhas cores.
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“O senhor foi o primeiro inglês que não me perguntou por que eu haveria de querer um piano em Mae Lwin.”
Edgar virou-se. “Por quê? Mas isso nunca foi mistério para mim. Nunca vi um lugar mais digno que esse.”
Não conhecia o livro, mas achei bem interessante tua resenha, acredito que seja mais fácil encontrar em e-book né?!
Não tenho dado sorte nos sebos daqui!
Beijos Joi Cardoso
Estante Diagonal
Oi Joice! Obrigada, que bom que gostou. Hm, não sei se tem e-book, o livro é meio antigo. Mas sei que em sites de livros usados vc encontra. Bjs!
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Excelente. Encontrei na LIvraria Romanceiro, que faz parte da Estante Virtural