Sinopse:
A filha do contador de histórias é um relato que mescla reportagem e memórias. Filha do filósofo de tradição sufista e escritor Idries Shah, nascida e criada em Londres, Saira Shah conta mitos ancestrais e costumes do povo afegão. Paralelamente, narra os horrores das sucessivas guerras e regimes políticos violentos que assolaram o Afeganistão contemporâneo.
Fonte: Livraria Cultura
Meu interesse pelo Afeganistão surgiu quando li O caçador de pipas, de Khaled Hosseini. Desde então, foi crescendo minha vontade de saber o que realmente se passa nesse país tão exótico para os ocidentais, e que a mídia trata de forma tão enviesada. O livro de Saira Shah foi perfeito para saciar essa curiosidade.
A autora é filha de afegãos e nasceu na Inglaterra. Durante toda a infância, ouviu histórias fantásticas sobre a terra de sua família, que considera sua também. Mas crescer sem nunca ter pisado no que considerava a própria pátria gerou uma crise de identidade que ela enfrentou durante décadas. A necessidade de aprender a verdade sobre o Afeganistão a levou ao jornalismo e a viajar ao país diversas vezes para cobrir os conflitos que ocorriam no local entre os anos 1980 e 2000.
O livro narra as experiências da autora com a cultura, a religião e as guerras afegãs. Sempre em ordem cronológica, ela explica ao leitor o contexto político de suas narrativas, o que é bem útil para quem, como eu, não sabe muito sobre os conflitos do Oriente Médio, e também para quem quer ter uma visão diferente da fornecida pela grande mídia. Mas o foco da história é sempre nas experiências de Saira, cujas memórias incluem fugas por campos minados, hospedagens em vilarejos isolados e conversas em pleno campo de batalha.
Um ocidental adulto poderia me dizer que esta é a história de um Paraíso perdido: de um lugar de sonho, para o qual é impossível retornar. Mas eu não lhe daria ouvidos. Já absorvi o bastante do Oriente para me sentir oriental. E absorvi demais do Ocidente para não tentar destrinçar sonhos.
Durante suas viagens ao Afeganistão – e ao Paquistão, onde ficam muitos afegãos refugiados e jornalistas que não conseguem ou não podem entrar no país – Saira tenta conciliar a realidade com o país onírico sobre o qual ouviu na infância. Ao mesmo tempo, busca entender seu próprio lugar no mundo: na Europa, ela se sente afegã, mas na Ásia raramente é vista como tal. Em diversos momentos, inclusive, sua visão de mundo ocidentalizada entra em conflito com as imposições islâmicas para o seu gênero.
Mesmo assim, ela é muito respeitosa com a cultura de seu povo. Sua investigação sobre a vida no país islâmico é muito delicada; ela viaja com o coração aberto e tenta entender os costumes e a vida daquelas pessoas. Apesar de não embelezar a verdade – muitas vezes sofre com as cenas que presencia –, retrata um Afeganistão bem diferente do que imaginamos. Com uma visão bastante lúcida, ela nos mostra o lado humano de soldados e o lado delicado e compreensivo dos homens muçulmanos.
A mulher de Zahir Shah respirou fundo e despejou: “Ouvi dizer que no Ocidente há uma pílula mágica que faz a gente parar de ter filho”.
A mãe e a irmã desataram a rir desse boato ridículo.
Saira cresceu aprendendo sobre o Islã e ouvindo narrativas tradicionais de seu povo, que ama contar histórias. Essas narrativas formam uma espécie de mitologia sobre o Afeganistão, e a autora as compartilha com o leitor antes de cada relato, sempre comparando os contos com a realidade. Isso proporciona uma visão poética do mundo, que parece ser típica do Oriente, e se reflete na forma como ela retrata as pessoas que conheceu, formando personagens interessantes como os que costumamos ver em obras de ficção, mas que tão raramente enxergamos na vida.
Essa obra, que mescla reportagem com memórias pessoais, é especial e única como sua autora – sem essa mistura de Ocidente e Oriente e, é claro, sem um grande talento para a escrita, sua narrativa não seria tão completa, bonita e esclarecedora. Saira foi premiada pelo documentário Por baixo do véu, sobre o regime Talibã, que eu fiquei bem curiosa para assistir, mas que parece bem explícito. Para quem procura uma visão mais amena e palatável, eu recomendo fortemente este livro, que ensina e faz refletir sem te deixar (muito) chocado.
A filha do contador de histórias: uma jornada aos confins do Afeganistão
Autora: Saira Shah
Tradutora: Hildegard Feist
Editora: Companhia das Letras
Ano de publicação: 2003
Ano desta edição: 2004
292 páginas
Citações favoritas:
Eu esperava que o mito da romântica resistência afegã correspondesse aos rigores de minha investigação jornalística. […] E acima de tudo eu esperava que, resolvendo essas contradições, pudesse reconciliar meus mundos incompatíveis: o oriental e o ocidental.
*
De repente entendi que aquela canção não tinha fim, assim como aquela estrada, aquelas montanhas, aquela guerra não tinham fim; nem agora, nem nunca. Nações e sistemas políticos, disputas e ideais eram secundários. Aquilo era eterno, e nós éramos apenas visitantes, estávamos de passagem.
*
A esta altura eu já deveria saber que o mar do sofrimento humano é infinito. No entanto aqui estou, ainda tentando salvar as pessoas que acenavam da janela.
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