Mariam tem 33 anos. Sua mãe morreu quando ela tinha 15 anos e Jalil, o homem que deveria ser seu pai, a deu em casamento a Rashid, um sapateiro de 45 anos. Laila tem 14 anos. Ela vai à escola todos os dias, é considerada uma das melhores alunas do colégio e sempre soube que seu destino era muito maior do que casar e ter filhos. Mas as pessoas não controlam seus destinos.
Fonte: Livraria Cultura
Este livro de Khaled Hosseini traça um panorama da história do Afeganistão desde os anos 70 até o início dos anos 2000. Essa não é uma história fácil: o país passou invasões estrangeiras, mudanças de governo e guerras civis sangrentas no período. Hosseini nos apresenta essas reviravoltas através do ponto de vista de duas mulheres – que, como tantos civis inocentes, presenciaram atrocidades e sofreram a perda de entes queridos; e que, além disso, por serem mulheres, foram submetidas a doses extras de sofrimentos e restrições.
A primeira parte do livro fala de Mariam, garota bastarda que passou os primeiros 15 anos de vida num vilarejo de montanha perto da cidade de Herat, e que idolatrava o pai até que este demonstra preferir sua reputação a reconhecer a filha. Quando a mãe morre, Mariam é dada em casamento a Rashid, um homem violento e amargurado trinta anos mais velho que ela. A garota, gentil, sensível e esperta, é forçada a se mudar para Cabul e submetida ao humor irascível e aos ataques – verbais e físicos – do homem.
A segunda parte da obra é sobre Laila, nascida em Cabul, filha de uma vizinha de Mariam. O pai da garota é o oposto de Rashid: um professor pacato, educado e sensível, que valoriza a educação da filha acima de tudo e acredita num futuro em que o Afeganistão dê oportunidades iguais para homens e mulheres. Laila é inteligente e vai à escola durante a ocupação do país por tropas soviéticas. A menina não conhece os irmãos mais velhos, que se uniram aos mujahedins para combater os invasores, e vê a mãe, uma mulher alegre, se tornar ansiosa e deprimida à medida que os anos passam e os filhos não retornam. Quem faz o papel de “irmão” de Laila é seu melhor amigo, Tariq. À medida que os dois crescem, a amizade se transforma em algo mais.
Mariam e Laila se encontram quando uma tragédia muda a vida de Laila, em circunstâncias que não revelarei. O que acontece em seguida são anos de convivência, em que essas duas mulheres de história e criação muito diferentes passam a amar uma à outra como mãe e filha, se dando forças para suportar as dificuldades que a vida continua lhes apresentando.
Este é meu primeiro livro de Hosseini, e achei a escrita primorosa. O modo como o autor explora o mundo interior das mulheres – seus sentimentos, reações, medos, amores e desejos – é muito natural e verossímil. Mais impressionante ainda é como ele narra os sofrimentos (e há muitos no livro) pelo quais as protagonistas passam, sem se tornar excessivamente dramático ou cansativo. Pelo contrário, o peso dos eventos é destacado pela sutileza e beleza da narrativa, de modo que alguns dos momentos mais chocantes e terríveis são cenas verdadeiramente poéticas.
O livro aborda momentos como nascimento de filhos, a perda de entes queridos, abusos, humilhações, sacrifícios e privações. As mulheres são as protagonistas e heroínas inquestionáveis, e muitos dos problemas decorrem da ação de homens. Não que sejam todos tão ruins como o desprezível Rashid (Tariq, por exemplo, é de disposição forte, mas generoso e amável). Porém a realidade que se segue à dominação talibã do país é restritiva e punitiva para as mulheres, e a falta de direitos as deixam à mercê de homens que passaram boa parte da vida em guerra. A compaixão é encontrada, mas é a exceção, não a regra. É a força não reconhecida e pouco apreciada das mulheres da obra (não só as protagonistas como muitas das personagens secundárias que aparecem) o que marca o leitor, assim como a gentileza e compaixão que elas conseguem manter depois de tantas dores e injustiças.
Além de ter personagens excelentes e complexas e uma história que se move rapidamente (afinal, o livro abarca mais de trinta anos), a ambientação é outro elemento desenvolvido muito bem pelo autor: a colina onde morava Mariam; as cidades de Herat e Cabul; o vizinho Paquistão, para onde vão muitos refugiados; e lugares como Bamiyan, onde ficavam os dois Budas explodidos pelo Talibã, são descritos vividamente, evocando cores, cheiros e sons desse país desconhecido para grande parte dos leitores ocidentais.
A abordagem da religião e da cultura é outro aspecto bem trabalhado: Hosseini mostra como é grande a riqueza cultural e histórica do país (o próprio título do livro vem de um poema), assim como a beleza da religião islâmica. As guerras políticas e a corrupção dos preceitos muçulmanos por grupos que buscam o poder não poderiam estar mais distantes da devoção pura de Mariam, que tira forças dos versos do Corão que lhe foram ensinados quando criança.
Emocionalmente, a leitura não é fácil: para mim, foi angustiante da primeira à última página. As injustiças cometidas contra as mulheres são de enlouquecer, e eu queria apenas tirar essas personagens pelas quais me afeiçoei tanto dessas tragédias e sofrimentos. Mas vale a pena pela qualidade da narrativa, pela emoção e compaixão que desperta, e por celebrar a existência de mulheres como Mariam e Laila em todo o mundo.
A cidade do sol
Autor: Khaled Hosseini
Tradutora: Maria Helena Rouanet
Editora: Nova Fronteira
Ano desta edição: 2007
368 páginas
Citações preferidas
– Aprenda isso de uma vez por todas, filha: assim como uma bússola precisa apontar para o norte, assim também o dedo acusador de um homem sempre encontra uma mulher à sua frente.
*
Foi nessa semana que Laila se convenceu de uma verdade: de todas as dificuldades que uma pessoa tem de enfrentar, a mais sofrida é, sem dúvida, o simples ato de esperar.
*
O passado só continha uma certeza: o amor era um erro nocivo, e sua cúmplice, a esperança, uma ilusão traiçoeira. E, onde quer que brotassem essas duas flores venenosas, Mariam as arrancava. Arrancava e jogava fora, antes que criassem raízes.
Muito, muito revoltante. Depois de acabar “A cidade do sol”, eu jurei nunca mais ler Hosseini… Mas acabei lendo “O silêncio das montanhas”, que também é lindo. “O caçador de pipas” ainda é o meu preferido. Chorei tanto.
Hahaha pensei a mesma coisa logo que acabei. Depois decidi que quero ler “O caçador de pipas” – mas vou dar um tempo antes, pq é sofrimento demais.
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