Sinopse:
Dodola, uma garota perspicaz e independente, foge de seus captores levando consigo uma criança. Eles crescem juntos no deserto, só os dois, vivendo num navio naufragado de areia. Em meio a sentimentos cada vez mais conflitantes, os dois passam o tempo contando histórias. Assim, somos apresentados também à origem do islamismo e de suas tradições, conforme as narrativas se combinam numa trama de aventura, romance, filosofia e tragédia.
Fonte: Quadrinhos na Cia
Às vezes eu gosto tanto de um livro que quero convencer todo mundo a ler aquela obra. Tenho vontade de empurrá-la para as mãos das outras pessoas e gritar: “Você não pode mais viver sem ler isso!” Desta vez, em vez de fazer isso, estou escrevendo esta resenha, numa tentativa educada e racional de explicar por que todos deveriam ler Habibi.
Dodola, uma escrava de doze anos do país fictício de Vanatólia, foge levando um bebê, que ela salva e decide criar. Os dois crescem sozinhos no deserto, e durante nove anos encaram a fome e a sede, até que por acidente se separam. Contada de forma não linear, a HQ narra a infância e a vida adulta dos protagonistas, e a saga de sua separação, desventuras e reencontro.
Não é uma história alegre nem leve. Dodola e Zam são submetidos a escravidão, fome, prostituição, sequestros e ameaças de morte. É desesperador acompanhar o sofrimento deles e perceber que cada reviravolta torna sua vida ainda mais dolorosa.
Além das ameaças externas, os protagonistas, que são personagens complexos e muito bem construídos, têm que lidar com muitos conflitos internos. A sexualidade – objetificada, romantizada ou reprimida – é parte muito forte desses conflitos, e o autor a desenvolve de forma delicada e ao mesmo tempo explícita. O desejo e os problemas íntimos dos personagens são expostos sem pudor, mas é impossível julgar os protagonistas, mesmo quando suas atrações não seriam socialmente aceitas.
Você nos criou assim. Incompletos. Metades separadas em busca da contraparte perdida. Que opção temos se não construir um ideal, um ídolo, para impor a quem amamos?
A relação entre Dodola e Zam é linda, e qualquer denominação a limitaria. Não são irmãos, não são mãe e filho, não são marido e mulher, embora todas essas palavras sejam usadas ao longo da história, enquanto os personagens tentam se entender. O que é inquestionável é o profundo amor entre eles, que leva a dores que só um sentimento tão forte pode causar.
Os demais personagens são sempre figuras passageiras na vida de Dodola e Zam, mas também são bem construídos e memoráveis. Vários deles nos fazem refletir, como um homem que tentava fazer o bem a todos em seu vilarejo, mas com esperança e bom humor em níveis cômicos, e para quem a boa vontade e a inocência não foram de muita serventia. Há também um grupo de transexuais vivendo em uma comunidade colaborativa mas cobrando um alto preço de ingresso, além de várias personagens de moral duvidosa, que ajudam a expor a realidade de Vanatólia e a explicar os conflitos psicológicos dos protagonistas.
Há certa magia na vida e na história dos dois – como no episódio em que uma serpente ajuda Zam a encontrar água no deserto. Esses momentos, porém, são bem subjetivos – nunca é provada a interferência de forças mágicas ou divinas, de modo que a história soa bem real. Esse encantamento, na verdade, combina muito bem com o relacionamento entre Dodola e Zam: eles têm amor e força além do normal, em uma relação tão bonita que supera muitos dos amores mais idealizados da ficção.
A magia também está presente nas histórias contadas por Dodola, que são parte muito importante da obra – todas ligadas ao Islã, são as equivalentes muçulmanas de histórias bem familiares ao leitor ocidental: Abraão sacrificando o filho, Noé construindo a arca, a vida de Moisés e os feitos do rei Salomão. A HQ nos mostra versões muito impactantes e bonitas dessas narrativas. Cheias de poesia e com um tom mítico encantador, elas se entrelaçam à vida de Dodola e Zam, lhes dando motivação, medo, esperança.
O autor soube usar as histórias de forma primorosa, e explorar a importância que elas têm para as culturas muçulmanas. A obra é resultado de muita pesquisa sobre o Islã, e explica vários de seus elementos e crenças, de forma respeitosa e muito poética. Thompson não apenas tem muito talento para desenhar como também faz composições maravilhosas em suas páginas, usando metáforas, padrões islâmicos e até a caligrafia árabe para contar a história.
A beleza da arte desenhada por Thompson, unida a pequenas cenas de humor, ajuda a amenizar um pouco todo o sofrimento transmitido ao leitor, que vai se maravilhar com o conteúdo e com a forma dessa história. Para quem gosta de HQs, de romances, de dramas e, no geral, de boa literatura, eu recomendo essa obra – insistentemente.
*
Habibi
Autor: Craig Thompson
Tradutor: Érico Assis
Editora: Quadrinhos na Cia.
Ano desta edição: 2012
672 páginas
Citações favoritas
Pingback: [Semana do Islã] Dicas de livros | Sem Serifa
Oi, Babi!
Eu gostei muito do livro, e amei a sua resenha.
Mas não sei… dei uma pesquisada e vi que esse livro dividiu opiniões. É unânime que os desenhos são magistrais, mas as pessoas o acusam de ser racista e orientalista (aprendi uma palavra nova!).
Quando li, eu não tinha me ligado nisso. Sim, os homens são todos monstruosos e comandados pelos seus pênis, mas não pensei que o livro estava falando exclusivamente sobre os homens árabes e as mulheres árabes (escravas de seus corpos e dos homens monstruosos), mas sim da humanidade em geral.
Só que, depois de ler algumas resenhas negativas, tendo a concordar um pouco com elas… porque, bom, apesar de Vanatólia ser uma cidade fictícia e atemporal, o autor escolheu conscientemente retratar um mundo árabe, com personagens árabes. E isso traz consequências e responsabilidades. Isso não quer dizer que ele necessariamente acredita que os brancos/ocidentais são superiores aos povos árabes, retratados como bestiais e atrasados. Mas talvez seja problemático no que diz respeito à criação de uma sociedade tão caricata e estereotipada.
Não sei… Os personagens planos servem para reforçar a humanidade dos protagonistas, e a sexualização da Dodola serve para retratar a sexualização dela na história inteira, tanto pelos homens que abusaram dela quanto por Zam, que a amava de verdade e que a desejava à loucura. Mas será que foi excessivo? Será que o orientalismo do autor não acabou sem querer diminuindo os povos árabes em vez de homenageá-los?
Eu ainda acho que não, mas a leitura dessa resenha está me fazendo pensar nisso até agora:
http://www.hoodedutilitarian.com/2011/10/can-the-subaltern-draw-the-spectre-of-orientalism-in-craig-thompsons-habibi/
Queria uma companhia pra discurtir essas ideais!
Beijo grande!