O livro é a viagem que Joe Sacco fez ao Oriente Médio, entre 1991 e 1992. Durante dois meses ele coletou histórias nas ruas, nos hospitais, nas escolas e nas casas de refugiados, onde ele fez mais de 100 entrevistas com palestinos e judeus. Com rara sensibilidade e perspicácia, o artista criou uma série de nove histórias. Palestina – Uma nação ocupada reuniu alguns desses relatos; Palestina – Na Faixa de Gaza dá continuidade às incursões de Sacco.
Fonte: Livraria Cultura
Os nove quadrinhos originais da série Palestina de Joe Sacco foram compilados em dois volumes: Uma nação ocupada e Na Faixa de Gaza.
Sacco passou alguns meses na Palestina, entre 1991 e 1992, buscando histórias e perfis específicos para relatar (o que ele chama por vezes de “lista de desejos”). Passou por Jerusalém e pela Cisjordânia, além de uma semana e meia na Faixa de Gaza.
O primeiro volume conta com uma preciosa introdução histórica, que foi particularmente útil para mim. Nela, constam informações sobre o movimento sionista, a criação do Estado de Israel, o envolvimento das nações ocidentais no processo e as tentativas falhas da ONU de amenizar a situação.
Eu não conhecia o gênero “reportagem em quadrinhos” e devo dizer que fiquei agradavelmente surpresa. O autor soube orquestrar bem os recursos dos quadrinhos para informar e sensibilizar o leitor. Cada face é única e senti que nenhum detalhe dos desenhos estava lá por acaso.
Sacco toca em um ponto muito delicado: o movimento sionista promoveu a criação do Estado de Israel na Palestina com o slogan “uma terra sem povo para um povo sem terra”. Entretanto, sabemos que a Palestina estava sim ocupada. A visão ocidental dos povos árabes possui profundas distorções: ou os romantizamos como um povo exótico com imensos turbantes, adagas curvas e mulheres misteriosas ora sob burcas, ora em trajes de dança do ventre; ou os vemos como bárbaros extremistas e atrasados. Foram essas distorções que permitiram que o povo palestino fosse encarado como um obstáculo menor para a ocupação judaica da Palestina. A partir disso, famílias palestinas foram desalojadas à força e as hostilidades entre os dois povos só se tornaram mais e mais cotidianas.
Os soldados israelenses são muitas vezes treinados em Ansar, uma prisão que já surgiu com capacidade ultrapassada (o que não é de surpreender, dado que moleques palestinos que jogam pedras nos soldados são condenados à prisão), e na qual os prisioneiros precisam se autogerir para dividir até talheres. Ao observar os prisioneiros palestinos em condições sub-humanas, dentro de Ansar e dos campos de refugiados, os soldados acostumam-se a encará-los como algo abaixo de humanos. E, ao lidar com a arrogância dos soldados, constante humilhação, injustiças, falta de empregos, impostos abusivos, interrogatórios violentos e com prisões e mortes de familiares e amigos, os palestinos aprendem a desprezar os israelenses. Sempre que Sacco pergunta a alguém “Você acredita que pode haver paz?”, as respostas são vagas e desesperançosas.
A temática de exílio e refúgio é uma que me sensibiliza em especial e o que me chamou muita atenção, além das histórias terríveis e da resiliência de todo um povo, foi a imensa hospitalidade de todos que receberam Sacco, para uma conversa ou como hóspede. Em todos os lugares ele foi recepcionado com chá ou café – e sempre com muito açúcar. Essa hospitalidade é bem característica dos povos árabes, e é quase injusto (e bastante comovente) que eles a mantenham em situações extremas. Sacco sempre era colocado na frente do aquecedor, nos melhores lugares para dormir, e recebia refeições fartas.
Outro ponto muito interessante é que o autor não esconde algumas reações suas que poderiam ser consideradas vergonhosas, como o fato de não recusar a comida de refugiados, de não ter coragem de acompanhar de muito perto as manifestações, e de, num ônibus para o Cairo cujo motorista se perde pela Faixa de Gaza, sentir medo das crianças palestinas com pedras.
Por motivos pragmáticos acabei lendo o primeiro o Na Faixa de Gaza e não senti que isso prejudicou minha compreensão, mas recomendo a leitura na ordem certa, especialmente pela introdução. Eu precisei de dois dias de pausa entre os dois volumes para realegrar meu coração – e não costumo me sensibilizar muito com leituras. Então se você for se engajar nessa leitura, prepare-se para franzir a testa de preocupação pela Palestina e reavaliar os privilégios de ter uma pátria.
Palestina – Uma nação ocupada
Autor: Joe Sacco
Tradutora: Cris Siqueira
Editora: Conrad do Brasil
Ano desta edição: 2000
144 páginas.
Citações preferidas
Volume I
O cara do leite pega alguém na plateia. Um rapaz jovem, com uns dezesseis anos.
“Ele foi baleado cinco vezes.”
“Cinco vezes?”
[…]
“Quer ver mais?”
Claro! Ferimentos de tiros! Ossos quebrados! Amputações! A Intifada que eu conheço de apêndices em livros de editoras pequenas! Com nomes, lugares, datas! A Intifada que você pode contar! Então, para onde estamos indo? Hospital!
*
“Os israelenses sabem que uma oliveira é como um filho… Precisa de muitos anos para crescer, seis ou sete anos para uma árvore forte…
Há dois anos os israelenses cortaram dezessete das minhas árvores… Meu pai plantou aquelas árvores… Algumas tinham cem anos de idade…”
[…]
“No final, obrigaram-me a derrubar as árvores eu mesmo. Os soldados trouxeram-me uma serra e assistiram. […] Senti como se estivesse matando um filho”.
*
E o meu heroísmo? Acho que você já viu o máximo do meu heroísmo. Foi aquilo no alto da página. Agora voltei ao normal… discretamente posicionado em frente a uma loja… tremendo pra caramba.
*
“Desculpe-me, não tem chá hoje… Nem tomei café da manhã. Uma das minhas esposas está doente, a outra está visitando os pais… Acho que vou ter que sair e arranjar outra mulher.”
“HAHAHAHAHAHAHAHAHA”
“Se você se casar com ela dentro de uma hora, talvez ainda tenha almoço.”
Volume II
“De que adianta você vir aqui e escrever sobre essas coisas?
As pessoas escrevem sobre a gente há cinquenta anos… Desde a Intifada, jornalistas de todas as partes do mundo vêm aqui. A Palestina está cheia de jornalistas…
[…]
Mas o que foi feito pela Palestina? O que mudou?”
“Não é nada pessoal.”
*
“Antes da Intifada, nós achávamos que Israel tinha todo o poder, que não havia modo de lutar contra eles…”
“Tínhamos medo dos soldados, achávamos que eles eram como o Super-Homem. Mas então vimos que eles tinham medo de pedras.”
*
“Você ouviu Mohammed dizer que nunca foi preso? Ele tem vergonha disso.”
*
Assistimos ao vídeo almoçando com chá e doces… Os ferimentos e o sangue, os braços sendo torcidos são mais fáceis de engolir da segunda vez […] Essa é a parte boa dos vídeos, você pode rebobinar, assistir tudo de novo, eliminar todas as surpresas… É menos agressivo para os nervos, você pode tomar o seu chá sossegado, sabe que os soldados não aparecem… garantido. Saia na rua, no tempo presente e tudo pode acontecer.
*
“Os soldados se protegeram da chuva embaixo de um telhado, e fizeram o garoto tirar seu kaffiyeh e mostraram para ele onde ele deveria ficar – na chuva…
[…]
Um garoto de pé na chuva, e o que ele está pensando?
E se eu tivesse imaginado antes de chegar aqui e descobrisse, quase sem surpresa, o que pode acontecer com alguém que pensa ter todo o poder – o que é isso…
O que acontece com alguém que acredita não ter poder nenhum?”
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