[Resenha] A arte de pedir

Esta resenha foi escrita a quatro mãos por Gi Pausa Dramática e Enéias Tavares

artepedirSinopse:

Cantora e compositora, ícone indie, feminista, esposa de Neil Gaiman, agitadora e mobilizadora de multidões online – Amanda Palmer é um retrato perfeito da boa conexão entre o artista e seu público. Desdobramento inevitável de sua palestra homônima nos TED Talks, o livro A arte de pedir trata essencialmente de recorrer ao outro, sem temor, sem vergonha e sem reservas. Por que não pedimos ajuda, dinheiro, amor, com a mesma naturalidade com que pedimos uma cadeira vazia num restaurante ou uma caneta, na rua, para fazer uma anotação? Pedir é digno e necessário, e é a conexão entre quem dá e quem recebe que enriquece a vida humana, defende Amanda. Longe de ser um manual sobre como pedir, o livro é uma provocação bem-vinda e urgente, que incita o leitor a superar seus medos e admitir o valor de precisar e doar ajuda, sempre.

Fonte: Livraria Cultura

Grosso modo, há uma sistemática organizacional bem fácil de compreender presente na indústria cultural contemporânea. Há o artista de um lado. Gênio intocável e inalcançável. Há a obra. Produto de sua inspiração e talento. Há o público. Sedento não apenas da obra como da persona criadora, seus hábitos, seus gostos e sua rotina, criativa ou não. E há o mercado, que administra a vida do artista e que disponibiliza a obra ao público, mediando essa interação a partir de um cálculo bem simples: o artista/obra precisa ser lucrativo.

Todavia, e se o último elemento desse complexo biossistema cultural e comercial – que pode ser igualmente associado a cinema, música ou literatura – fosse descartado? E se um artista assumisse pra si a responsabilidade de não apenas criar a obra como de interagir com seu público e disponibilizar/comercializar sua arte? E se este artista fosse ainda mais longe, propondo não especificar o preço de sua arte, deixando ao público a decisão de não pagar ou pagar e, neste caso, do quanto pagar? E se em vez de vender sua arte, tal artista pedisse o apoio, financeiro ou não, ao seu trabalho?

Esse exercício hipotético é a rotina de Amanda Palmer – rock star, escritora, performer, feminista e ativista, entre outros epítetos comumente associados a ela – e um dos temas, entre vários outros, de seu livro A arte de pedir. A partir de uma palestra de treze minutos em uma das conferências TED, Amanda decidiu transformar o que seria sua experiência pessoal como estátua viva e depois musicista num escrito ousado, tanto pelo escopo como pelas proposições que defende nele.

O livro é bem escrito e brilhantemente editado, entrecruzando diversas narrativas ao discutir a importância do “pedir” – não o “implorar”, numa diferenciação importante para Palmer – em contextos tão díspares quanto mercado cultural, relações familiares, envolvimentos afetivos e interação autor/público. Seu estilo é espontâneo e leve, muitas vezes causando a impressão de que não estamos lendo um livro, mas conversando com a autora num bar ou num quarto, depois de uma agradável noite de vinho e música. A narrativa não é nada linear e nos dá acesso íntimo às memórias e sentimentos da artista.

Num primeiro momento, surpreende que uma mulher que sempre esteve decidida a não se casar tenha escolhido justamente um vestido de noiva para usar como estátua viva. “Todo mundo gosta de uma noiva”, explica. Ela oferecia flores àqueles que colocavam qualquer coisa em sua caixinha de doações, fosse um dólar, vinte dólares, um bilhete com pedido de casamento.  E mais que a flor, ela oferecia contato visual verdadeiro. Conexão. E recebia os agradecimentos pelo olhar de quem se sentiu visto, talvez pela primeira vez naquele mês. Quanto aos que não aceitavam a flor, ela ordenava (mentalmente): “Pega a porra da flor!”

Essa experiência, em dias ensolarados ou chuvosos, com pessoas respeitosas ou não, afeitas a fotografias ou a piadas, de crianças chorosas a adultos irritados, lhe ensinou que:

  • As pessoas querem ser vistas e;
  • É possível viver de arte.

Enquanto trabalhava como estátua-viva, ela manteve um emprego como atendente em uma sorveteria e depois como stripper. Mas assim que se viu em um ambiente liberal e criativo (The Cloud House, uma espécie de república artística), começou a investir (tempo, energia e dinheiro) em sua carreira como musicista. Formou uma banda com Brian Viglione, The Dresden Dolls, cujo público era composto basicamente dos amigos que vinham às festas no The Cloud Club e os amigos dos amigos. E todos sabiam que eles mesmos, além de criar a própria música, cuidavam dos CDs, da venda, do envio, da divulgação – em parte feita num incrível mailing.

E Palmer ainda ouvia as vozes dos passantes de carro que gritavam para A Noiva: “Vai trabalhar!”.

Mais adiante, quando já tinha um contrato com uma gravadora, ela viu essa conexão, estabelecida aos poucos com o público, ser desprezada. Os empresários estavam decepcionados, pois seu disco vendera “só” 25 mil cópias. Depois de perceber que não teria deles o respeito por sua autonomia criativa e justamente o tipo de atenção que sempre achara fundamental dispensar aos seus fãs, ela decidiu romper o contrato. Numa das passagens mais surpreendentes do livro, relembra como foi obrigada a mentir que estava grávida para conseguir ser liberada do contrato.

Ironicamente, 25 mil foi o número de doadores da campanha de música mais bem-sucedida no Kickstarter. Um milhão de dólares para que Palmer lançasse mais um disco. Qual foi o segredo desse resultado? A conexão com o público.

Enquanto muitos detratores da internet ou das redes sociais criticam de forma simplória a interação virtual, julgando-a superficial em comparação à interação física tradicional, Palmer evidencia que a relação com sua base de fãs – em especial com os milhões de seguidores que possui no Twitter – significa intimidade, cumplicidade, carinho e troca. São vários os episódios do livro que ilustram essa ligação, desde seu confortável couchsurfing, quando pede aos fãs que ofertem a ela (e à sua banda!) um sofá ou um colchão para dormir entre um show ou outro, até as apresentações repentinas (“sessões ninja”), passando por pessoas que abusaram de sua boa vontade e confiança. Afinal, se sua relação com os fãs é algo próximo de um namoro, este também pode comportar, vez ou outra, traição. Porém, o que Palmer oferta diante de tais situações é a exemplificação de sua compaixão, por mais caro que seja o preço por tais demonstrações públicas.

Por fim, o livro é perpassado pela história do seu relacionamento com Neil Gaiman, narrativa igualmente divertida, que exemplifica o quanto diferenças artísticas e pessoais podem produzir uniões enriquecedoras e inspiradoras, desde que as duas partes estejam dispostas à completa sinceridade e à mútua empatia. Enquanto Gaiman precisava administrar seu medo de ser abandonado, ela precisava lidar com seu medo de ser sufocada. Como resultado, ambos aprenderam a pedir coisas que antes acreditavam ser óbvias.

Durante toda a leitura, Palmer parece colocar as histórias em uma balança, que pesa a vulnerabilidade intrínseca ao ato de pedir e a vontade genuína que as pessoas têm de ajudar quando enxergam de fato alguém que pede. É normal precisar de ajuda. Produzir arte é um trabalho. Existem muitas maneiras de contribuir com um artista.

Delirium refletindo sobre vulnerabilidade.

Delirium refletindo sobre vulnerabilidade [Foto por Foxximage]

Quanto à edição, a capa é muito bonita, aludindo não apenas à carreira de estátua viva de Palmer como também à prática de se colocar nua diante dos seus fãs e convidá-los a escreverem mensagens e desenharem em seu corpo. A tradutora também está de parabéns, sobretudo por recriar em português brasileiro o estilo conversante e descontraído do texto original. Por fim, entre cada uma das seções do livro há fotos e letras das canções da autora, o que auxilia o leitor a visualizar a persona da artista e empatizar com sua música – mesmo sem conhecê-la.

Por todas essas razões – e pelas muitas outras que não caberiam nesta resenha – A arte de pedir é um manifesto lúdico e divertido sobre os desafios da produção cultural, das relações afetivas, sejam elas românticas ou não, e da própria sobrevivência num mundo em que a comunicação facilitada muitas vezes torna mais difícil o simples ato de pedir. O que arremata tudo isso é o principal tema do livro de Amanda Palmer: conexão humana. Suas consequências (a arte, o compartilhamento da arte e o pedir ajuda para que essa arte seja compartilhada) apenas dão o tom para que a autora possa evidenciar seu talento, que, além de musical, é também literário.

*

A arte de pedir
Autora: Amanda Palmer
Tradutora: Denise Bottmann
Editora: Intrínseca
Ano de publicação: 2014
296 páginas

Livro cedido em parceria com a Intrínseca.

 

Citações favoritas

Às vezes, a fila de autógrafos me poupa de ter que ficar sozinha. Às vezes, a fila de autógrafos me relembra que esse ofício não é sobre mim, é sobre todo mundo. Na maioria das vezes, a fila de autógrafos me faz sentir conectada com as pessoas em volta da fogueira. Preciso ver o rosto delas. Às vezes, sinto que preciso da fila de autógrafos mais do que elas. Percebo uma diferença quando não autografo depois de um show. Pode ser algo profundamente solitário. Não autografar ou não ficar depois do show é como levar alguém para casa, dar uma trepada apaixonada sem compromisso e depois ficar na cama, olhando o cara se vestir e sair logo depois do orgasmo. Eu preciso do aconchego pós-trepada, aquela parte em que a gente passa a noite deitado de conchinha, um olhando o outro numa confirmação de que, sim, aquilo aconteceu. E aí vamos pelo menos tomar um café da manhã juntos e falar sobre as coisas normais da nossa vida, mesmo que provavelmente a gente nunca mais se veja. Detesto quando as pessoas não ficam para dormir.

*

Neil passou a me conhecer melhor. Eu tinha o mau hábito de querer sumir por completo durante alguns dias depois de qualquer despedida. Quando começamos a ficar juntos, eu não suportava o fato de ele querer ficar trocando mensagens de texto logo depois. Tipo, cinco minutos depois de dar tchau no aeroporto. Ele aprendeu a se adaptar à minha abordagem Fugir! Fugir! a cada vez que nos despedíamos, e eu estava tentando aprender a não desaparecer emocionalmente quando não estávamos juntos no mesmo espaço. Comecei a aprender como ele funcionava. Pensei em como poderia lhe assegurar que não o estava abandonando; apenas sentia uma vontade doida de ficar sozinha e poder trabalhar, pensar, fazer arte e mandar e-mails na solidão. Naqueles primeiros dias, a gente realmente se bicava, em escala monumental. Mas aos poucos fomos melhorando. Parei de achar que ele ia me aprisionar, e ele parou de achar que eu estava tentando fugir. A coisa era até poética: ele tinha problemas de abandono e eu tinha problemas de compromisso. Vai entender. Além disso, o sexo, que no começo da relação era meio desajeitado e atrapalhado, ficou realmente ótimo. Imaginamos que era um sinal promissor do avanço da relação como um todo. E, acima de tudo, percebermos que era uma questão de deixar as portas e janelas da relação bem abertas. Dessa maneira, ele podia olhar para dentro e eu, pra fora.

*

Coisas que você tem quando dorme na casa dos outros e não tem num hotel: O barulho dos pratos e talheres de manhã. Banheiros com queridas toalhas amassadas e que não combinam. Sobras de um bolo de aniversário. Corredores escuros com cheio de alguma coisa no forno. Ver as coisas esquisitas que as pessoas guardam no armarinho de remédios. Gatos para acariciar, que ficam arredios no início e descobrem que gostam de você às quatro da manhã, quando você finalmente dormiu. Paredes com pratos do Elvis. A sensação redescoberta de uma festa do pijama. Cobertores elétricos pouco confiáveis. Oportunidade de experimentar chapéus. Café numa taça de vinho por falta de xícaras suficientes. Crianças de todas as idades e temperamentos que fazem desenhos para você. A possibilidade de preparar as próprias torradas. Toca-discos. Grama úmida ao nascer do sol no quintal, onde as galinhas pernoitam. Pianos desafinados e outros instrumentos estranhos para afagar. Velas grudadas no aparador da lareira. A bela visão de desconhecidos de pijama. Chás esquisitos de todo o mundo. Máquinas de pinball. Aranhas de estimação. Trincos que não funcionam. Coisas no teto que brilham no escuro. Histórias de amor, morte, dificuldades e decepções amorosas, tarde da noite e de manhã cedo. A colisão da vida. Arte para o liquidificador. Os pontos se conectando.

*

Durante a maior parte da história humana, músicos e artistas têm feito parte da aldeia, com livre acesso entre si. São curandeiros, ouvintes, iluminadores – em contato com a comunidade, não astros intocáveis na tela e atrás de barricadas. Cresci acreditando que a distância do “verdadeiro” estrelato era glamorosa. Mas, na verdade, sentir amor a distância é uma coisa muito solitária. Talvez ainda pior do que amor nenhum, pois parece muito pouco natural. A internet mudou as coisas nesse aspecto e, de certa forma, nos fez completar o círculo: estamos outra vez em volta da fogueira, mesmo que às vezes usando smartphones. Os tipos de conexões que estabeleço com as pessoas no Twitter e no meu blog são reais, sinceros e afetuosos. Posso alcançar o coração e a mente das pessoas com segurança, deixar que elas alcancem os meus e – mais importante – oferecer um espaço no qual elas possam alcançar uns aos outros.

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