[Resenha] Anno Dracula

annodSinopse:

Conde Drácula não sucumbiu diante de Van Helsing e de seus destemidos companheiros. Ao contrário. O Rei dos Vampiros derrotou-os, desposou a Rainha Vitória, nomeou discípulos para funções burocráticas do Império e espalhou sua linhagem sombria por toda a Inglaterra. No coração da Londres vitoriana, um assassino está mutilando jovens vampiras e ameaçando a estabilidade do novo regime. Seu nome, Jack, o Estripador.

Fonte: Editora Aleph

Entrando no cemitério, não consegui evitar o retorno da lembrança, tão aguda e dolorosa como se tivesse ocorrido na semana passada. Disse a mim mesmo que tínhamos destruído uma coisa, não a garota que eu amava. Ao cortar seu pescoço, descobri minha vocação. Minha mão dói demais. Tenho tentado controlar o uso da morfina. Sei que deveria procurar um tratamento adequado, mas acho que preciso da dor. Ela me traz determinação.

Gosto de história alternativa e amo a era vitoriana, então coloquei esse livro na minha fila de leituras sem muita hesitação quando ele foi mencionado pelo Paulo Fodra em uma palestra na Steamcon. Eu já sabia que Kim Newman tinha se apropriado de personagens reais e de outras histórias (assim como Alan Moore, em A liga extraordinária, e Enéias Tavares, em Lição de anatomia do temível doutor Louison) para contar sua história, mas nada me preparou para a avalanche de referências que o autor traz.

Em Anno Dracula, a máscara vampiresca já não existe (bjs pros jogadores de Storyteller), premissa que me lembrou a série Ugly Americans – ambas as ficções abordam problemas sociais decorrentes da adaptação de espécies diferentes ao cotidiano humano. Drácula, o Príncipe Regente, tornou o vampirismo algo corriqueiro e por vezes desejável. No ponto em que a história começa, todas as camadas da sociedade já possuem vampiros – e imortais das classes mais baixas oferecem a transformação por um preço módico. Alguns quentes vendem seu sangue ou o de suas crianças, e a preocupação com as doenças que os vampiros podem contrair tomando esse sangue de qualidade questionável é significativa. A medicina tradicional não sabe como curar doenças em vampiros, inclusive aquelas decorrentes de linhagens conspurcadas (como a do próprio Drácula!).

Jack Seward é um médico que presenciou a chegada e ascensão do Príncipe Regente e que desenvolveu um ódio profundo por vampiros, embora seja obrigado a tratá-los quando vêm ao hospital em que trabalha. Geneviève Dieudonné é a vampira mais antiga de que se tem notícias, e atua na gestão desse hospital. Charles Beauregard é um homem a serviço do Clube Diógenes, um clube de cavalheiros que funciona como um serviço secreto não oficial da Coroa britânica.

Jack decide que matar prostitutas vampiras é uma boa ideia. A agitação que isso provoca nas massas, que já desconfiam que os vivos podem virar gado para a aristocracia vampírica, faz o governo direcionar todas as suas forças para pegar o Estripador – inclusive Beauregard. Os dois homens têm um forte traço em comum: ambos vivem em função de mulheres amadas e mortas. E um está em busca do outro. Geneviève possui uma percepção aguçada e a usa para ajudar alguns e julgar intensamente outros, enquanto tenta ajudar Beauregard a encontrar o temível Faca de Prata.

Gostei bastante de como os vampiros são retratados como seres quase naturais por Newman – o único fato sem explicação em seu universo é a falta de reflexo dos vampiros. Ele zomba de algumas fraquezas clássicas (como os crucifixos e água benta, que levaram Van Helsing ao fracasso) e reforça outras (como a luz solar e a prata). O mesmo acontece com as vantagens vampíricas: eles são fisicamente fortes, mas se machucam em brigas e podem ser feridos por humanos, e a força motriz que transforma a história é de cunho político – embora Drácula não seja nada diplomático.

O empréstimo de personagens ora atuou como um fator instigante, ora como um pequeno aborrecimento, quando figuras conhecidas aparecem sem que isso desenvolva o enredo. Essa edição da Aleph conta com um guia de personagens elaborado pela tradutora, que indica a origem de todos eles, em ordem de aparição. Eu teria preferido ordem alfabética, pois sou dessas que esquece fácil e quando quis procurar novamente um personagem precisei rever todos.

O estilo do autor é agradável. Ele consegue alternar bem entre as perspectivas dos personagens e insere um humor ácido em momentos inesperados, trazendo à tona várias risadinhas. Tive alguns problemas com o desenvolvimento da trama da Geneviève, que tem um conflito que ocupa a sua atenção e acaba subitamente (e por intervenção direta de Beauregard), ficando meio sem explicação.

A pesquisa histórica do autor é bem respeitável, e seu repertório cultural é invejável. O livro me deixou satisfeita e com vários acréscimos à fila de leitura. .

*

Anno Dracula
Autor: Kim Newman
Tradutora: Susana Alexandria
Editora: Aleph
Ano de publicação: 1992
Ano desta edição: 2009
371 páginas
Livro cedido pela editora 🙂
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Citações preferidas

“Ele é um louco desvairado, é isso que ele é” protestou Silkes. “Escuta, nenhum de nós é exatamente delicado, tá entendendo? Mas esse sujeito tá indo longe demais. Se uma puta começa a ficar briguenta demais, você passa a lâmina na cara dela, não na maldita garganta.”

*

“As cabeças deles deveriam estar fincadas em estavas antes do amanhecer.”

“General Iorga, nós trabalhamos sob o império da lei. Primeiro temos que estabelecer a culpa dos criminosos.”

Iorga abanou a mão, descartando a irrelevância.

“Puna todos eles e deixe Deus decidir quem é culpado.”

*

Bauregard tinha jurado que a morte não interferiria em sua lealdade à rainha, mas imaginara que isso significasse sua própria morte.

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