Esta resenha foi escrita pela nossa querida amiga e colega de trabalho Isabela Norberto, formada na USP em Letras – Espanhol.
Lançado em 1948, este livro extraordinário foi escrito, segundo seu autor, “a partir de uma subjetividade total”. Em 1953, no livro Heterodoxia, Sabato comentou sua obra: “Enquanto eu escrevia esse romance […], muitas vezes me detinha, perplexo, para avaliar o que estava saindo, tão diferente do que havia previsto. E, sobretudo, me intrigava a importância crescente que iam assumindo o ciúme e o problema da posse física. Minha ideia inicial era escrever um conto, o relato de um pintor que enlouquecia ao não conseguir comunicar-se […] nem mesmo com a mulher que parecia tê-lo entendido por intermédio de sua pintura”. Ao final, “o desespero metafísico se transforma em ciúme, e a história que parecia destinada a ilustrar um problema metafísico se transforma em romance de paixão e crime”.
Fonte: Companhia das Letras
[Atenção: Resenha com spoilers.]
Era uma vez eu, no serviço, olhando livros que meu chefe estava doando. Vi a capa de um livro que me chamou a atenção. Toda preta e branca, com uma mulher sentada, sozinha. Até então nunca tinha ouvido falar Ernesto Sabato. Tinha percebido que ele provavelmente era um escritor falante de espanhol, só. Como também leio livros pela capa, peguei aquele sem dono e o fiz meu.
O túnel é uma leitura que eu diria impactante. Afinal, não é em qualquer livro que o narrador declara, nas primeiras linhas, que vai contar a história de como matou a mulher que amava. Sim, logo no primeiro capítulo Juan Pablo Castel confessa o assassinato ao leitor, mas não tentando se justificar ou fazer com que este se apiede de sua história. Não está emocionado, só precisa contar o que ocorreu, sem deixar que seus sentimentos interfiram na narração dos fatos. Mas não é bem assim que as coisas acontecem! O relato da personagem é todo pautado em sentimentos, mesmo quanto está aparentemente calmo e equilibrado.
Juan, pintor reconhecido, já na casa dos 40, conta como conheceu a “odiosa” María, uma desconhecida pela qual se apaixona perdidamente quando a vê admirando um pequeno detalhe de um quadro seu, ao qual ninguém dava atenção. Após esse episódio, ele fica obcecado por María e tenta encontrá-la de todas as formas. Juan conta ao leitor (eu e você, no caso) como sempre andava na rua em busca dela, pensando na possibilidade de terem conhecidos em comum e, caso tivessem, em diversas maneiras de criar uma situação para que fossem devidamente apresentados. Eventualmente, o improvável acontece: ele a encontra.
Após o susto de ter seu desejo realizado, o narrador pensa em uma abordagem que não pareça suspeita. Depois de inúmeras reflexões, decide que ela provavelmente sabe quem ele é, já que foi a uma exposição que tinha obras feitas por ele, e entra no prédio em que María trabalha. Lá eles se desencontram e se perdem outra vez. No dia seguinte, após muitos artifícios e espreita, ele encontra no prédio comercial a mulher cheia de mistérios que o enfeitiçou. Ele a pega pelo braço, arrasta-a para uma praça e ali mesmo confessa tudo o que sente por ela, o quanto ela o impressionou e o fato de já não ter sossego e sentir-se dominado por um sentimento que já denomina amor.
No decorrer da história Juan consegue se aproximar de María, e eles passam a trocar correspondências e a conversar por telefone. Nesse momento de maior intimidade, o narrador em primeira pessoa (sempre desconfie do narrador em primeira pessoa!) começa a atacar ferinamente o caráter da mulher. Certa vez telefona para a casa de María e pede para falar com a “senhorita María Iribarne” e diz que, ao ouvir essa denominação, a empregada hesita, mas acaba chamando a patroa. O casal passa a ter encontros amorosos no ateliê de Juan, mas, não satisfeito, o pintor decide pesquisar tudo sobre a vida da amante e acaba indo até sua casa. Lá acaba descobrindo que ela é uma mulher casada, e conhece Allende, seu marido. De fato havia um conhecido em comum entre María e Juan: Hunter, primo de Allende. Juan odeia Hunter, por considerá-lo um conquistador, algo que posteriormente incute ideias e desconfianças na cabeça do narrador: ele passa a desconfiar que Hunter e María têm algo mais do que apenas laços familiares.
Uma coisa interessante na narrativa é o seu tom “casmurresco”. Juan é um homem alucinado pelo ciúme, assim como Bentinho, que imagina existir uma relação amorosa entre Capitu e seu melhor amigo, Escobar. Assim como não se pode afirmar que Capitu e Escobar eram amantes, o mesmo ocorre com María e Hunter. Entretanto, o tempo todo Juan afirma veementemente que há algo entre eles. Há dúvida e questionamento constante com relação aos sentimentos da mulher, que sempre são postos à prova. Juan Pablo exige provas de amor, tanto com palavras como com gestos, incluindo o amor físico.
Devido a suas suspeitas, Juan passa a perseguir María, tentando de todas as formas controlar seus movimentos. Certa vez telefona para sua casa e descobre que ela foi à fazenda que pertencia a Hunter, o que o deixa desesperado e cego de ciúmes. De tão alucinado, parte para lá atrás da mulher que tira seu sossego e, na beira de uma praia próxima, os dois vivem um momento de epifania conjunta: ele decide que a única saída para solucionar aquela situação e acabar com seu desespero, causado por ela e pelos homens em sua vida, é dar fim à própria vida. Ele pensa que deveria se jogar de um precipício para o mar. María conta uma longa história, que provavelmente revelava algum segredo de sua vida, entretanto não percebe que o fez, é como se ela estivesse contando algo em um momento de delírio, algo que não contaria em outra ocasião. Ele não faz ideia do que ela lhe diz. Só sente que eram palavras importantes, às quais ele sequer ouviu.
Após sua decisão, Juan escreve uma carta para a amante dizendo tudo o que sente e pensa sobre ela. Fala sobre o quão má e fingida ela é, fazendo questão de dizer palavras que a machuquem e a façam se sentir humilhada. Após deixar a carta no correio, decide voltar à fazenda para ver qual seria a reação dela ao ler suas palavras. Lá ele a vê com Hunter, homem que abomina e desperta nele ciúmes maior do que o próprio Allende lhe causava. Ao espiar María e Hunter, Juan conclui que, quando saem da sala de estar e vão em direção aos quartos, não o fazem com o intuito de dormir.
Tomado de ciúme, decide que, em vez de acabar com a própria vida, deve acabar com a de María, mulher má e causadora de tanto sofrimento ― não só o dele como o de tantos outros homens. O narrador dá a entender, desse modo, que está fazendo justiça com as próprias mãos, e cometendo uma ação nobre ao livrar outros homens de cair nos encantos daquela mulher que julga ser pérfida. Ele invade o quarto dela e, sem chance de se defender, a mulher é assassinada a facadas.
Ao fim do relato, a personagem menos relata o assassinato do que o revive, pois passa a contar detalhadamente o que aconteceu. Envolve o leitor de tal forma que me senti transtornada, sem saber direito o que estava acontecendo, mesmo sabendo perfeitamente o rumo que a coisa tomaria. A cena do assassinato de María é tão intensa, que é como se o leitor desse os passos de Juan até o quarto em que ela estava, sentisse a raiva do homem que era amante e era “também traído”. O desespero do narrador contagia e marca, algo muito bem expresso na cena em que Juan conta a Allende, aos gritos, que assassinou María, e mostra sua revolta por ele, o marido, não ter reação ao saber do caso dos dois. Este, também transtornado, diz palavras sem sentido e o chama de insensato diversas vezes, o que faz o leitor ter dúvidas, afinal o marido traído diz que o amante de sua mulher foi insensato ao matá-la (?). A impressão que fica é a de que Allende sabia de algo que nem nós, leitores, nem Juan Pablo sabia, algo que pode ter relação com a confissão de María na praia, mas não nos é revelado.
Enfim, O túnel é um livro que gerou mais dúvidas que esclarecimentos. Mais de uma semana depois de ter terminado a leitura, e tentado digerir a história, não consigo afirmar com certeza que o túnel do título é o túnel no qual Juan se entranha ao se colocar naquela situação e ao tomar, “conscientemente”, todas as decisões que toma ao longo de sua história com María, já que sempre deixa bem claro que suas ações são tomadas pautadas na razão, não em emoções. Não sei se é a loucura sem saída, ou a dor que o fulmina. Não sei. Apenas sei que não havia escapatória para ele e que toda aquela situação devia ser vivida pelas personagens do romance. É como se tudo aquilo que aconteceu com Juan estivesse apenas esperando a chegada de outra personagem, María, no caso, para que os fatos pudessem se desenclausurar e seguir seu curso natural.
Gostei bastante do livro e do estilo de Ernesto Sabato, a leitura flui muito, já que os capítulos são curtos e sempre tem fatos muito impactantes neles. Não posso dizer que odiei Juan Pablo, digamos que ele tem um tom de ironia e desgosto com a vida que me fazem entender um pouco de sua loucura. Não justifico seus atos, só achei que a caracterização da personagem ficou muito boa e admito: gosto de gente ranzinza e Juan o é o tempo todo. Fica claro que o narrador é um homem muito inteligente, algo que colaborou para que eu não o odiasse por ser um maluco, já que um ser humano que persegue o outro, coage e por fim assassina não é uma pessoa que pode ter suas qualidades louvadas… Com relação à interação narrador-leitor, acho interessante o fato de a personagem tratar quem lê da mesma forma que trata a pessoas a seu redor. Há sempre um tom de arrogância, mas também de obviedade em seu discurso.
Ele envolve o leitor de tal forma que o faz entender o porquê de o narrador ser pouco sociável e tão introvertido. Devido a essas características María se torna uma obsessão para Juan Pablo, ela é a única pessoa que o entendeu e a única que parece ter novidades a acrescentar em sua vida. Repito: não estou justificando as atitudes de Juan, mas também não o julguei o tempo todo. Apenas discordei fortemente da forma como ele viveu seu romance com María e de ter encontrado em seu assassinato a única solução para aquela relação conturbada. Não li nada parecido com este livro, acho que por isso gostei dele, foi uma narrativa inovadora para mim. O fato de eu ter me recordado do ciúmes de Bentinho foi apenas uma feliz coincidência, não faço ideia se Sabato conhece o trabalho de Machado de Assis, mas a referência que tenho de homem ciumento e delirante vem da personagem de Dom Casmurro. Não vi semelhança entre essas personagens pois Juan não tenta conquistar a simpatia do leitor para que ele acredite em sua história, diferente de Bentinho. Enfim. Recomento a leitura de O túnel, gostei bastante do estilo do autor e pretendo ler mais coisas dele. Além de a leitura fluir, a narrativa é envolvente e de qualidade.
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O túnel
Autor: Ernesto Sabato
Tradutor: Sérgio Molina
Editora: Companhia das Letras
Ano desta edição: 2000
152 páginas
Citações favoritas:
“A vaidade se encontra nos lugares mais inesperados: ao lado da bondade, da abnegação, da generosidade.”
“Precisava de detalhes: emocionam-me os detalhes, não as generalidades.”
“Longe de tranquilizar-me, o amor físico perturbou-me mais, trouxe novas e torturantes dúvidas, dolorosas cenas de incompreensão, cruéis experiências com María.”
“A felicidade está rodeada de dor.”
“Que implacável, que fria, que imunda besta pode viver emboscada no coração da mulher mais frágil!”