Sinopse:
Genly Ai foi enviado a Gethen com a missão de convencer seus governantes a se unirem a uma grande comunidade universal. Ao chegar ali, o experiente emissário sente-se completamente despreparado para a situação que lhe aguarda. Na sociedade complexa de Gethen, homens e mulheres são um só e nenhum ao mesmo tempo. Os indivíduos não possuem sexo definido e, como resultado, não há qualquer forma de discriminação de gênero. Mas Genly é humano demais. A menos que consiga superar os preconceitos nele enraizados a respeito dos significados de feminino e masculino, ele corre o risco de destruir tanto sua missão quanto a si mesmo.
Fonte: Aleph
Diferente de muitas das ficções científicas que já li, A mão esquerda da escuridão apresenta a humanidade em uma situação utópica: alcançamos a paz e compreendemos como nunca a importância da cooperação entre os povos. A Terra está inclusa no grupo de planetas que alcançou esse nível de entendimento – um grupo chamado Ekumen, cuja missão é levar tais conceitos a novos mundos, expandindo assim a colaboração interplanetária.
Um emissário ekumênico chamado Genry Ai é o narrador da obra, que é composta de seus relatórios a respeito da missão de convidar um novo mundo para o Ekumen: Gethen, também chamado de planeta Inverno (por motivos climáticos, é claro). Intercalados a esses relatórios, registros de outros visitantes ao planeta, e também lendas e mitos locais, ajudam a descrever o cenário e o povo criados por Le Guin. A inventividade da autora é impressionante; seu mundo é complexo e completo. O povo de Gethen tem cultura e costumes bastante originais, e seu comportamento é descrito em detalhes que, unidos à narrativa rica e bem escrita, justificam a comparação com O senhor dos anéis que consta na quarta capa desta edição.
Não sou vendedor, não estou vendendo Progresso aos nativos. Temos de nos reunir como iguais, com entendimento mútuo e honestidade, antes que minha missão possa sequer começar.
A missão de Genry Ai tem ótimas intenções, e o Ekumen é o tempo todo muito respeitoso para com o povo de Gehen, que, até a chegada de seus emissários, nada sabia sobre a existência de vida em outros planetas. As regras ekumênicas limitam o contato a apenas um emissário, que só convida uma nave tripulada para o planeta quando seus governantes aceitarem se unir ao Ekumen. É uma regra bastante parecida com a Primeira Diretriz, da série Star Trek, e mostra como essa confederação de mundos é evoluída e paciente – sua abordagem é oposta à de uma colonização, pois o Ekumen não pretende impor nada aos nativos, e sim estabelecer um canal de trocas igualitárias.
Essa missão é bastante dificultada pelas políticas locais – as duas principais nações de Gethen, Karhide e Orgoreyn, vivem em uma constante e forte rivalidade que, somada à sua desconfiança em relação a estranhos, coloca Genry Ai em constantes apuros. Ao longo do livro, ele passa por situações extremamente difíceis, e é impressionante se imaginar em seu lugar – em um planeta estranho, com costumes muito engessados e ao mesmo tempo um tanto misteriosos, e que muitas vezes o condena por não aceitar e se sentir ameaçado por suas diferenças.
Entre os muitos assuntos tratados na obra, a questão de gênero tem a abordagem mais interessante. Os habitantes de Gethen não têm gênero definido. Ou melhor, têm os dois: durante a maior parte do tempo, são andróginos, mas periodicamente entram no chamado kemmer, que é sua fase reprodutiva. Então, dependendo dos estímulos que recebem (ou seja, da proximidade com outro indivíduo no kemmer), seus hormônios femininos ou masculinos são estimulados, e seu corpo se transforma no de um homem ou de uma mulher, ficando assim até o final dessa fase, quando voltam a ser andróginos.
Além de ser alvo de grande curiosidade científica (o narrador relata que não há conhecimento de nenhum outro povo com essas características, em todo o universo), os gethenianos levam seus visitantes – e os leitores – a refletir. Apesar da situação utópica do resto da humanidade retratada, mesmo no universo criado por Le Guin, ainda não foi alcançada uma igualdade de gêneros como a vista na sociedade de Gethen, cuja androginia permitiu uma estruturação social muito diferente da nossa, como observado no relatório de uma visitante do Ekumen:
Considere: qualquer um pode trabalhar em qualquer coisa. Parece muito simples, mas os efeitos psicológicos são incalculáveis. O fato de toda a população, entre dezessete e trinta e cinco anos de idade, estar sujeita a ficar (como Nim definiu) “amarrada à gravidez” sugere que ninguém aqui fica tão completamente “amarrado” como, provavelmente, ficam as mulheres em outros lugares – psicológica ou fisicamente. Fardo e privilégio são compartilhados de modo bem igualitário; todos têm o mesmo risco a correr ou a mesma escolha a fazer. Portanto, ninguém aqui é tão completamente livre quanto um macho livre, em qualquer outro lugar.
As diferenças não param por aí, são muitas. Também é interessante observar que esse trecho, diferente do resto do livro, é relatado por uma personagem feminina. Genry Ai, o narrador principal, não tem uma visão apurada das consequências de se viver numa sociedade tão igualitária. Em muitos momentos, inclusive, seu ponto de vista masculino parece depreciar um pouco as características femininas dos gethenianos, considerando-as fraquezas. É com muita perspicácia que a autora constrói esse personagem acostumado à posição privilegiada reservada aos homens, mas Genry Ai também aprende muito em Gethen, e começa a rever seus preconceitos.
– [As mulheres do seu planeta] diferem muito do seu sexo no comportamento? Elas são uma espécie diferente?
– Não. Sim. Não, claro que não, não realmente. Mas a diferença é considerável. Acho que a coisa mais importante, o fator isolado de maior peso na vida de alguém é se nasceu macho ou fêmea. Na maioria das sociedades esse fator determina as expectativas da pessoa, suas atividades, seus pontos de vista, sua ética e conduta… Quase tudo. […] É extremamente difícil separar as diferenças inatas das aprendidas.
Como a autora coloca em seu brilhante prefácio, esta, como as outras ficções científicas, não é uma extrapolação imaginativa e sim uma descrição da realidade. Ela nos faz pensar sobre o que há de andrógino em todos nós e, mesmo que a história se passe em um planeta tão estranho, muitas vezes fala de verdades absolutas do mundo em que vivemos. Isso tudo numa narrativa envolvente e deliciosa – às vezes a leitura é um pouco lenta, devido aos muitos nomes e às descrições detalhadas, mas é uma experiência única e instigante.
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A mão esquerda da escuridão
Autora: Ursula K. Le Guin
Tradutora: Susana L. de Alexandria
Editora: Aleph
Ano de publicação: 1969
Ano desta edição: 2014
296 páginas
Citações favoritas
A única coisa que torna a vida possível é a incerteza permanente e intolerável: não saber o que vem depois.
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Era uma daquelas pessoas condenadas a amar apenas uma vez.
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Um amor profundo entre duas pessoas envolve, afinal, o poder e a oportunidade de causar mágoa profunda.
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E me perguntei, não pela primeira vez, o que é patriotismo, no que consiste verdadeiramente o amor pelo país, como surge a terna lealdade que deixara embargada a voz de meu amigo – e como esse amor tão real pode se transformar, com frequência, em intolerância tão vil e insensata. Em que momento ele se torna nocivo?
Encontrei a definição de livro inovador; perfeito para abrir horizontes.
É inovador de verdade. Vale a pena ler! 😉
Eu já falei hoje o quanto eu amo vocês?
Sabe, os livros e autores de que eu ouço falar e marco vagamente “to read” no meu Goodreads vão aparecendo gradativamente por aqui, em uma fonte confiável de informações e comentários. Parece magia! Tô meio clichê, puxando o saco e tal… mas… Babi e Isa, vocês merecem! ❤
Bia, você é uma linda! Também amo você! ❤ ^^
Achei linda essa nossa sincronia bibliográfica! Esse livro vale MUITO a pena, se você quiser eu te empresto!
Oi Bárbara!
Como não li O Senhor dos Anéis não saberia avaliar a comparação, mas tanto a premissa utópica quanto os personagens de gênero indefinido me pareceram interessantes.
Beijos
alemdacontracapa.blogspot.com
São muito interessantes mesmo, Mariana. Vale a pena ler! Aliás, também vale a pena ler O Senhor dos Anéis! 😉
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